Quem tem medo do lobo mau - O direito de não ter medo

26/07/2016

Por Simone Nacif - 26/07/2016

O medo é um velho conhecido de todos nós desde tenra infância. Sempre que nos deparamos com o desconhecido, a primeira sensação que temos é de medo, ainda que aliado à curiosidade, à atração, ao desejo.

Na Mitologia Grega, o medo é representado por Deimos e Fobos, irmãos gêmeos e filhos de Ares, deus da guerra, e Afrodite, deusa do amor. Eles acompanhavam o pai nas batalhas. Deimos incutia o terror nos inimigos que, ficavam paralisados e vulneráveis, enquanto Fobos transmitia o medo e a covardia, fazendo com que fugissem.

O medo é um estado de progressiva insegurança e angústia ante a impressão iminente de que acontecerá algo que queríamos evitar. À medida em que esse estado avança, cresce uma certeza de que seremos incapazes de evitar o mal que se aproxima.

O medo vai muito além do compreendido e do manifesto e, não raro, se volta para o desconhecido: o temor daquilo que não se pode controlar nem compreender.

Mas o medo, que apavora, paralisa, impede e angustia, também impulsiona e auxilia na autopreservação.

É esse encontro entre o poder aniquilador e o propulsor do medo que nos interessa.

Na literatura, é vasta a menção ao medo nas histórias narradas até como ingrediente desafiador na trama.

Em “Os Lusíadas” de Luiz Vaz de Camões, por exemplo, um poema épico que narra a conquista grandiosa do povo português nas navegações para as índias e, apesar de ser um poema voltado a engrandecer os feitos lusitanos, o autor não pôde se furtar a descrever os pavores que o mar evocava: desde monstros e sereias a tempestades aterrorizantes.

E Fernando Pessoa, já no século XX, ao revisitar Camões, descreve exatamente o caráter dúplice do medo no poema “Mar Português”:

“Quem quer passar além do Bojador, tem de passar além da dor.

Deus, ao mar, o perigo e o abismo deu,

Mas foi nele que espelhou o céu”

Segundo Marilena Chauí, nas sociedades aristocratas, o medo, vício dos covardes, era natural e essencial à plebe, contrapondo-se à coragem aristocrata.

O medo e a coragem (que até pode ser considerada como a face propulsora do medo), ideologicamente, são identificado com classes sociais distintas e hierarquizadas numa sociedade fechada e, até então, imutável.

Tal concepção sofre uma transformação histórica com o advento da sociedade burguesa e a ideia de igualdade natural entre os indivíduos, tornando-se o medo um sentimento comum a todos.[1]

Explica Chauí que o surgimento da modernidade,

“Confirmando o homem como sujeito social, político e histórico, desloca o medo fundamental para o interior da sociedade, e faz com que nasça, simultaneamente, o pensamento moderno sobre os direitos do homem.”[2]

E é em situações precisas com pretensões revolucionárias que nascem as declarações de direitos (Revoluções inglesas, independência norte-americana, Revolução Francesa, Russa...), daí se afirma que os direitos do homem se tornaram uma questão sócio-política, uma vez que as declarações surgem em momentos de transformação social.

Nesse passo, as teorias modernas concebem o direito como garantia jurídica, social e política contra o medo que os sujeitos sociais têm dos outros sujeitos sociais.

E nesse contexto de medo sócio-político, nasce a teoria do direito natural que concebe o homem como sujeito de direito por natureza e afirma que os direitos naturais são: 1) o direito à vida, 2) o direito à autoconservação, 3) o direito ao pensamento e 4) o direito à palavra. Mas em estado de natureza, o homem não consegue garantir seus direitos e recorrem ao contrato social.

A professora Vera Malaguti Batista ensina que, com o cercamento das terras comuns, o estado confiscou o conflito o que deu fim às soluções comunitárias.[3]

A reorganização social traz uma redefinição da tirania que deixa de ser considerada a ação de um ser demoníaco e perverso e passa a se apresentar como uma política de apropriação privada do que é público e comum a todos. a tirania passa a ser praticada não necessariamente pelo governante, mas certamente por instituições sócio-políticas.

Desde a antiguidade, o medo sempre foi ingrediente essencial em todas as formas de organização da sociedade, sempre presente nas tensões sociais e até, como já afirmado antes, como impulsor da própria definição dos direitos do homem.

Aliás, não é exagero dizer que o medo chega a ser determinante para a própria forma de relacionamento interpessoal e social.

Com efeito, as sociedades guardam, ao longo do tempo, tradições e costumes impregnados de lendas, mitos e personagens fantasmagóricos e monstruosos que compõem contos e cantigas de ninar com a intenção de amedrontar e manter a criança sob controle, assegurando-se que ela não fará travessuras com medo de ser castigada pelos entes fantásticos.

É evidente o intuito de amedrontar para conter, controlar, disciplinar, “educar”, introjetando no inconsciente da criança personagens que a acompanharão em todo o processo de crescimento e amadurecimento, influindo decisivamente em sua atitude nas relações sociais.

De tão presente na tradição e na cultura, desde muito cedo, na história das sociedades, o medo sempre teve um papel de instrumento de controle social.

Isso se apresenta muito evidentemente na sociedade capitalista que é permeada pelo medo. os capitalizados têm medo de serem desapossados dos bens que lhes definem sua posição social e estigmatizam os decapitalizados como aqueles que querem lhes tomar esses bens. personificam esse medo nos descapitalizados e se articulam e organizam em relações de poder e força ameaçando com violência para reprimir qualquer movimento que possa desorganizar esse estado de coisas que apenas a eles interessa.

O estigma, nesse cenário, é o elemento caracterizador do destinatário do medo e até do ódio que leva ao desejo de apartar e aniquilar. E esse apartheid e esse aniquilamento se fazem através das prisões. Com nosso histórico escravocrata, não é nenhuma surpresa a população predominantemente negra de nossos presídios.

Segundo o professor José Geraldo de Souza Junior:

“Goffman descreveu pormenorizadamente o processo de estigmatização, caracterizando a sua funcionalidade, não apenas enquanto formas de classificação de indivíduos em agrupamentos manipuláveis, mas porque, ao produzir estereótipos, cria bodes expiatórios e lhes atribui papel sacrificial.”[4]

O medo também funciona como um instrumento de entorpecimento da percepção da dimensão social dos abismos criados pelo capitalismo, deslocando para a perspectiva individual essa tensão que posiciona em lados opostos as classes sociais.

A professora Vera Malaguti Batista deixa muito claro, ao escrever sobre “O medo na cidade do Rio de Janeiro”, que há “um embate entre uma proximidade espacial extrema e projetos de distanciamento social.”[5] E menciona que o professor Nilo Batista desvela o fetiche criminal como uma grande metáfora que encobre os conflitos sociais.

Ou seja, a conflitividade manifestada nas questões de posse, moradia, mobilidade urbana que têm inegável dimensão social e, portanto horizontal, é transferida para uma perspectiva individual através da criminalização de condutas que se inserem no âmbito da resistência, verticalizando a solução do conflito.

Exemplifico com as desocupações para as obras das olimpíadas em que famílias inteiras, inclusive crianças e idosos cuja proteção é uma imposição constitucional para a família, a sociedade e o Estado, foram desalojadas contra sua vontade. Expulsas do local onde viviam há anos, em que construíram um modo de se relacionar, uma identidade territorial e cultural.

Há relatos de casas demolidas sobre os pertences e tudo o que a família conseguiu obter por toda a sua vida.

Mas as obras seguiram.

Agora, já a permanência do morador no local, o desforço imediato que o ordenamento jurídico assegura àquele que se vê ameaçado ou agredido em seu direito, os atos de resistência são criminalizados ao ponto de ser perdida, além da casa, também a liberdade em muitos casos.

Ora, se o medo é um instrumento de controle social e o direito emanado do estado privilegia apenas uma parcela da sociedade (não podemos esquecer que nossa constituição federal é capitalista, estabeleceu o direito de propriedade como garantia fundamental), criminalizando os atos de resistência, pode-se dizer que há uma crise de legitimidade do direito.

José Geraldo de Souza Junior, mencionando Boaventura de Souza Santos, afirma que “Compreender, pois, a estrutura de um ordenamento como unidade hierarquizada de uma ordem jurídica sujeita a um monopólio de jurisdição (ou designá-la a partir da competividade de padrões em permanente negociação) resulta, em todo o caso, em opção teórica e política de reconhecimento da validade e da legitimidade normativa desse modo produzida.”[6]

E, como ensina o professor, é possível conceber a constituição de normatividade como uma produção espontânea do direito nascido em outros lugares além daqueles usuais e obrigatórios, relacionados com o poder social, econômico, político e institucional.

Nas magistrais palavras do professor Juarez Tavares na sentença por ele prolatada no Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil, realizado nos dias 19 e 20 de julho de 2013, na cidade do Rio de Janeiro:

“La democracia, por otro lado, según la moderna concepción de Estado, no puede estar limitada exclusivamente a la representatividad parlamentar, muchas veces divorciada de las bases reales de la populación, sino de la capacidad de posibilitar la integración de todos los ciudadanos en los procedimientos políticos y administrativos, inherentes a su desempeño. Integran también el orden democrático todas as fuerzas y segmentos sociales, aunque no representados en el parlamento, y cuyo pensamiento, voluntad, formas de vida y opciones de conducta se vean manifestados en los sectores variados de la esfera pública. En una sociedad reglada por normas, nadie puede ser despojado de la iniciativa de, al mismo tiempo, realizarse a sí mismo – y nadie puede abrir mano de la misma iniciativa”.”[7]

Há uma densa legitimidade do direito nascido como rebeldia contra aquele que vem de uma fonte que reivindica para si o monopólio de dizer o direito.[8]

Então, sendo o medo um elemento estruturante de uma sociedade hierarquizada que apenas se sustenta em razão das exclusões, constata-se que a única alternativa é a resistência organizada em movimentos sociais funcionando como fonte legítima do direito para instituir materialmente o direito de não ter medo.

Afinal, como disse Roberto Lyra Filho: “quando o sistema é injusto, se quisermos ser sérios temos que ser marginais.”


Notas e Referências:

[1] http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/humanismo/chaui.html

[2] Idem

[3] http://oolhodahistoria.org/n14/artigos/vera.pdf

[4] SOUZA JUNIOR, José Geraldo de. 2008. Direito como liberdade: o direito achado na rua. Experiências populares emancipatórias de criação do direito. Tese de Doutorado apresentada à Banca Examinadora como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da UnB. Orientador: Professor Doutor Luis Alberto Warat. Pág. 246

[5] http://oolhodahistoria.org/n14/artigos/vera.pdf

[6] SOUZA JUNIOR, José Geraldo de. Obra citada. Pág 280 e 281

[7] file:///C:/Users/User/Downloads/SENTENCIA.pdf

[8] Idem

http://oolhodahistoria.org/n14/artigos/vera.pdf

http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/humanismo/chaui.html

SOUZA JUNIOR, José Geraldo de. 2008. Direito como liberdade: o direito achado na rua. Experiências populares emancipatórias de criação do direito. Tese de Doutorado apresentada à Banca Examinadora como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da UnB. Orientador: Professor Doutor Luis Alberto Warat.

Sentença prolatada pelo professor Juarez Tavares que presidiu o Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil, realizado nos dias 19 e 20 de julho de 2013, na cidade do Rio de Janeiro. file:///C:/Users/User/Downloads/SENTENCIA.pdf


Simone Nacif. . Simone Nacif é Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. . . .


Imagem Ilustrativa do Post: Horror // Foto de: Jon Seidman // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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