Processo penal no país do futebol: que o clássico seja jogado em campo e o juiz não atrapalhe o protagonismo dos jogadores - Por José de Assis Santiago Neto

27/10/2017

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

Nascer e viver no País do Futebol, já que, nas palavras do mestre Chico Buarque de Holanda “na barriga da miséria, nasci brasileiro”, faz compararmos tudo ao esporte mais popular do planeta. Áreas são comparadas à campos de futebol, o futebol está presente em quase tudo na vida. Se o juiz, em uma partida de futebol erra contra nosso time já definimos seu destino, “juiz ladrão”, “o juiz torce para o adversário”, entre outras coisas que não podemos publicar nesta coluna.

Contudo, por mais que um juiz “roube” nosso time, uma cena nos é inimaginável, perder o jogo com um gol do árbitro da partida. E por que ele não poderia decidir um jogo? Simplesmente porque no futebol são os jogadores que são os protagonistas, a eles foi dada a missão de decidir o jogo, fazer gols, impedir gols, driblar, armar jogadas, atacar e defender. É comum ouvirmos dizer que quanto menos o árbitro da partida aparecer, melhor será a arbitragem, eis que os protagonistas terão brilhado no quadrilátero verde das arenas. Porém, no futebol o papel do juiz não pode ser desprezado, pois a ele compete assegurar que as regras do jogo sejam cumpridas pelos jogadores, cumprindo ele também as regras. Assim, ele controla o tempo de jogo, marca faltas anulando lances ilegais, valida ou invalida gols.

No campo de jogo, as equipes se enfrentam, cada uma buscando a vitória, como cantou a banda mineira Skank “O meio-campo é lugar dos craques / Que vão levando o time todo pro ataque / O centroavante, o mais importante / Que emocionante, é uma partida de futebol / O meu goleiro é um homem de elástico / Os dois zagueiros tem a chave do cadeado / Os laterais fecham a defesa / Mas que beleza é uma partida de futebol” (É uma partida de futebol, Samuel Rosa De Alvarenga / Jose Fernando Gomes Reis, veja o clipe aqui).

No processo não deveria ser diferente, o protagonismo deveria ser das partes, acusação e defesa, que em um debate dialógico construiriam conjuntamente a decisão, eis que partimos da premissa de que processo deva ser o procedimento desenvolvido em contraditório entre as partes[1]. Assim, em um processo democrático, a decisão não compete ao juiz, não é o magistrado o protagonista solitário da decisão, mas, tal qual no futebol, exerce a função de assegurar que as regras do jogo sejam cumpridas e que os jogadores tenham iguais condições de participar.

Porém, quando o assunto é processo penal muitos acabam aceitando que o juiz substitua as partes e acham normal que o julgador assuma o protagonismo processual, adotando modelos incompatíveis com as exigências do Estado Democrático de Direito. Aceita-se com facilidade que o juiz deixe seu papel de julgador imparcial para assumir lugar de partes, ou em outras palavras, de acusador.

O processo penal, já dizia Goldschmidt[2] é um termômetro entre os elementos corporativos ou autoritários de uma nação, assim, segundo o processo penal de uma nação é possível vermos o quão democrática ela será.

Em um processo penal democrático, como já afirmamos[3], a presunção de inocência deve sempre estar no horizonte de quem se mete a estudar ou aplica-lo, sendo assim, o intérprete / aplicador deve sempre analisar o processo penal visando a máxima proteção à presunção de inocência, que, nas palavras de Amilton Bueno de Carvalho[4] é um pré-juizo constitucional, sendo dever do juiz ingressar no caso penal convencido da inocência do acusado. Assim, não se trata de favor ao acusado ou de qualquer benefício ou brecha da lei, mas de uma garantia constitucional, que tem por objetivo a proteção do sujeito mais fraco, eis que o processo penal tem de um lado o Ministério Público (órgão do Estado) e de outro o indivíduo. Visa assim, o processo penal reduzir a desigualdade, para que não se revele uma forma de vingança de todos contra um.

Ao se colocar a presunção de inocência como eixo interpretativo, que deve permanecer no horizonte sempre, algumas consequências são inevitáveis, a primeira delas será sempre atribuir à acusação toda carga probatória, não se dividindo o ônus da prova, quem acusa, que prove a culpa, sendo que a falta de provas levará à manutenção da inocência do acusado. “A derrubada da muralha da inocência é função do jogador acusador.[5]

Assim, ver o processo penal pelo prisma da presunção de inocência, demandará colocar os sujeitos processuais no lugar que lhes foi determinado pela constituição, como apontado por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, veja aqui. Dessa forma, a acusação deve acusar e a defesa defender, devendo o juiz a relevante função de assegurar as regras do jogo processual e a participação de cada uma das partes de forma isonômica.

Se, como dissemos o processo penal é o termômetro de democraticidade de um povo, a história nos mostra que governos autoritários sempre privilegiaram a adoção de sistemas inquisitoriais, onde o Juiz tem o papel de protagonista; enquanto regimes democráticos preferiram o sistema acusatório, onde as partes exercem papel de protagonistas e ao juiz é atribuído o papel de garante das regras do jogo e dos direitos fundamentais.

A opção por um sistema acusatório ou inquisitório é sim uma opção política, que acaba sendo acompanhada de uma decisão maior sobre o próprio modelo de governo que se adotou. Modelos que presam pelo autoritarismo, acabam privilegiando modelos inquisitórios, modelos democráticos pelo acusatório.

Assim sendo, dispostas as equipes em campo, o papel do juiz será primordial para sabermos como será a partida. Se o juiz for protagonista, for atrás de provas, minada estará a presunção de inocência. De outro giro, se as partes protagonizarem o processo, a elas competirá a prova e a construção do provimento, devendo ao julgador assegurar que a presunção de inocência seja o a muralha que assegure que o acusado somente seja condenado se derrubada pelo acusador, sem ajuda do próprio julgador.

Muitos podem pensar que dessa forma ninguém seria condenado. Porém, o papel do processo penal não é condenar ou absolver, é julgar e julgar conforme as regras do jogo. Se pretendemos viver em democracia, segundo as regras do jogo democrático.

Garantir a presunção de inocência significa exigir que cada parte ocupe seu lugar constitucionalmente demarcado. Que o julgador não se meta no lugar que a Constituição reservou a outra parte. Porém isso passa pela assunção do papel de parte reservado ao Ministério Público, acabando vez por todas com o perigoso discurso de ser uma parte imparcial, afinal, uma parte não pode jamais ser IMparcial, ou se é parte ou não se é parte, os dois jamais podem ser exercidos ao mesmo tempo.

Porém, assegurar a presunção de inocência no processo penal brasileiro, é uma tarefa que exige do intérprete uma certa dificuldade, sobretudo porque nosso código vigente é fruto do regime autoritário de Getúlio Vargas, que, como bom ditador não se prendia muito à democracia e buscou no regime fascista sua inspiração para o processo penal. Como é evidente não poderia ter nascido nada menos que uma legislação autoritária, inspirada no inquisitorial modelo italiano que, por sua vez teve como fonte de inspiração o Código Napoleônico de 1808.

O problema é que esse mesmo código de inspiração fascista segue vigente, mesmo após o nascimento da Constituição de 1988 que adotou expressamente o modelo de Estado Democrático de Direito e, portanto, incompatível com o inquisitivo CPP. A vigência por mais de setenta anos do CPP produziu efeitos nefastos, muitos resistem aplicar o código à luz da constituição e dos tratados internacionais de direitos humanos preferindo aplicar a Constituição ao breu do código de processo penal, passando ao largo dos tratados internacionais.

Nesse contexto, o CPP pátrio coloca o juiz em papel de protagonista, permitindo a ele que produza provas de ofício (art. 155 e 156), decrete prisões de ofício (art. 311 e 312), condene mesmo que sem pedido condenatório da acusação (art. 385) entre outras peripécias que somente podem ser combatidas através da hermenêutica constitucional e da filtragem do texto infraconstitucional com a Constituição e com os tratados internacionais de direitos humanos.

Dessa forma, deve-se assegurar que as partes possam desempenhar cada qual seu papel constitucionalmente estabelecido, sem que uma se meta no lugar da outra. Juiz não é membro do sistema de segurança pública, em democracia, compete ao juiz a função de ser o garantidor mor dos direitos fundamentais de todos cidadãos e, no processo penal principalmente do acusado, que é a parte mais frágil no embate contra as forças do Estado.

É preciso, ao menos, igualar a mentalidade dos cidadãos do país futebol do processo penal com o esporte bretão, se nas arquibancadas jamais aceitaríamos um gol do juiz, nem mesmo que fosse de bicicleta, porque nos fóruns se aceita, alguns até aplaudem, um gol de mão do juiz? E olha que na idade média tentaram convencer que era com a mão de Deus. Mudamos a forma da inquisição, porém, a fogueira continua acesa[6].

Assim sendo, que o jogo processual seja jogado no campo do processo e dos argumentos, tendo como protagonistas as partes. E que cada um possa ocupar o lugar que a Constituição lhe determinou, colocando o juiz no lugar de juiz e o centroavante no lugar de centroavante, cada um desempenhe sua função sem que se misturem, pelo bem da democracia no país do futebol.


[1] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo.  2ª edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.

[2] Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal, p.67.

[3] SANTIAGO NETO, José de Assis. Estado Democrático de Direito e Processo Penal Acusatório: a participação dos sujeitos no centro do palco processual. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

[4] CARVALHO, Amilton Bueno de. Eles, os juízes criminais, vistos por nós, os juízes criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 7.

[5] DA ROSA. Alexandre de Moraes. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3ª edição. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 217.

[6] Paráfrase do texto de Aury Lopes Jr. A opacidade da discussão em torno do promotor investigador. Publicado no boletim do IBCCRIM nº 142, Setembro de 2004.

Imagem Ilustrativa do Post: Torcedor (Arena Pantanal, Cuiabá, MT, Brasil) // Foto de: paulisson miura // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/paulisson_miura/14225228565

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura