O poder punitivo e o limite da crítica: no mosteiro dos sábios, quem não bebe do cálice é excluído ou sacrificado – Por Guilherme Moreira Pires

03/06/2015

"Es duro aceptar que el poder punitivo es el masacrador. 

[...]  Es duro aceptar que nunca se había reconocido que el agente de las masacres es el mismo al que supuestamente se le encarga la prevención de los homicídios, pese a que estaba a la vista. Se pensó siempre que la participación de las agencias ejecutivas del poder punitivo en las masacres era una suerte de patología institucional, pero lo cierto es que desdelos siglos XI y XII - en los que el poder punitivo reapareció en Europa - hasta el presente, siempre puso de manifiesto su tendencia a descontrolarse con el pretexto de combatir enemigos que generan emergencias de inminente riesgo para la humanidad. Llevamos ochocientos años de poder punitivo creando enemigos, erigiendo chivos expiatórios y cometiendo masacres. (Eugenio Raúl Zaffaroni, p. 490, 2012). 

O poder punitivo se apresenta - se auto-proclama - como uma espécie de transição lógica apta a encerrar o descontrole político do poder periférico e diluído, então austeramente controlado, atraído e convertido para si; para seu interior estrutural-estruturante absolutamente reducionista e simplificador, pautado pelo monopólio e sequestro da decisão (que difere de solução, como usualmente relembra Zaffaroni).

Irradiado e irradiando uma rede de discursos moralizantes, totalizantes, sacrificiais e coléricos canalizados na hegemonização dos discursos punitivistas, confere-se uma extraordinária capacidade de destruição, mas principalmente legitimação.

Legitimação asnaticamente (re)produzida não só por "leigos" imersos no senso comum criminológico, senão que também por muitos dos juristas mais "badalados" do país, que, em se tratando da questão criminal - claro, pensada criticamente -, não diferem muito dos "leigos" que tanto criticam; não raro, tornam-se sobremaneira piores do que os primeiros, após anos de (de)formação rasteira (ainda que com roupagens sofisticadas), anos de encarceramento mental-institucional, anos de ego alimentado e energizado por seus pupilos, fascinados pela mera interação com representantes do velho; pupilos obedientes e dóceis, reprodutores acríticos das vozes dos mestres (repetindo tudo sem questionarem nada).

No final, discípulos fascinados pelo poder,  que, conforme Bakunin e Nietzsche, também corrompe, degrada, brutaliza e imbeciliza; pupilos fascinados a ponto de congelarem o pensamento crítico com seus grilhões supressores, reféns dos limites das próprias críticas brutalmente limitadas (fragmentos de mundo que julgam representar o suprassumo da crítica).

Isso dito, lembremo-nos de que os imersos no senso comum criminológico não são somente os "leigos"; se estabelecêssemos um corte, se fácil fosse precisar a dimensão de tudo isso, seguramente abrangeríamos na equação listas inacabáveis de juristas, mentes consumidas, esgotadas, sem imaginação, desfilando de bengalas novas. Mística do cálculo, claro, que inexiste.

Há, todavia, quem recuse esse coro unívoco de simplificações colonizantes, esses termos de sequestro, como "crime e "pena".

Recentemente, foi divulgada uma notícia em que fora desconsiderada a decisão condenatória de um Júri acerca de uma determinada situação-problema, sendo construídos caminhos a partir de outros conceitos e referenciais. Os audaciosos? Índios macuxis.

É dizer, fora desenvolvida (e ativada) imaginação não punitiva, uma profundamente distinta da conjecturada pelo referido imaginário punitivo, naturalizador, institucionalizador e racionalizador das palavras "crime", "pena" e "cárcere"; legitima-dor da barbárie.

Uma imaginação, portanto, não colonizada por um reducionista imaginário punitivo de "Justiça" (im)posta, refletindo e edificando percursos dissociados  desses elementos punitivistas totalizantes, os quais visa impor o sistema penal, essa ficção retórica ativadora de massacres e sofrimento estéril, sofrimento nonsense.

Claro, não é fácil pensarmos para além do Castelo, da Fábrica e do Cárcere; tanto não é, que quem escreveu a notícia permanece falando em "punição" como ponto de partida, tamanho os danos em nosso imaginário, tamanhos os impactos dos discursos criminológicos do cotidiano, dos conceitos e sistemas incorporados e vislumbrados como (e enquanto!)  única realidade defensável.

Pois bem, retornando à citação do argentino, é logicamente inexplicável como Zaffaroni, mesmo após lancear tanto o cerne do poder punitivo, não acredita ser incumbência dos criminólogos superá-lo no formato e configuração organizacional por ele mesmo descrito; como não acredita ser função dos criminólogos superar a "vingança", e é precisamente o que se extrai de uma importantíssima parte do livro "La Palabra de Los Muertos", em capítulo acerca da "Criminologia Cautelar preventiva de masacres".

Zaffaroni (2012, p. 553-554), destaca: "Puede pensarse que el sistema penal es un caldo de cultivo de masacres, en el que inexorablemente aparecen las larvas, pero el símil sería falso. Las larvas no son entes extraños al sistema penal, sino que lo integran.   

[...] 

En otras palabras: el sistema penal es una masacre potencial

[...] es siempre un aparato peligroso [...]

Desde el abolicionismo se pregunta por qué conservar una máquina con semejante riesgo. La respuesta al desafío abolicionista requiere un enorme esfuerzo de sinceridad, pues lesiona seriamente nuestro narcisismo civilizatorio, que se presume de racionalidad." 

Basicamente, ele destroça (nessa e em centenas de passagens em seus escritos) a crença no sistema penal, oblitera a parca crença de que suas operacionalidades reais são defeitos reformáveis, e ilumina todo o estupor do nosso narcisismo civilizatório, ancorado em palavras como "racionalidade", "modernidade", "superação da barbárie", "superação da guerra de todos contra todos"...

Em seguida, todavia, Zaffaroni (2012, p. 554) sustenta que: "'nuestra cultura' (?) no ha encontrado hasta el presente otra vía de canalización de la venganza [...] no es tarea de los criminólogos - al menos en función detales - producir un cambio cultural tan enorme que elimine la venganza que, como vimos, está enraizada con la idea de tiempo lineal en el núcleo más profundo de la civilización actual, que no logra incorporar la muerte. [...] Por ello, ahora y aquí, es indispensable que el criminólogo se dedique a la tarea de indagar cómo se puede en el corto y mediano plazo manejar el aparato para procurar evitar que se desequilibre de mala manera."

Portanto, aqui, não resta outra opção senão tecer uma intensa ressalva: transcender esse imaginário punitivo é incumbência de todos, dos criminólogos e dos juristas, de toda a sociedade, do "leigo" ao pomposo opera-dor que se gaba do seu suposto conhecimento; e mais: soa intragável esse ideal de equilíbrio acerca de aparatos cujo equilíbrio pressupõe, precisamente, um brutal desequilíbrio, domínio, colonização, sequestro e imposição de categorias totalizantes, em termos do próprio argentino, que associa tais aparatos, inclusive, às pilhas de cadáveres e montanhas de mortos do poder punitivo, esse ativador de massacres.

Zaffaroni é brutal e devastador em inúmeras passagens. É estranho, no entanto, que se contenha tanto em outras; talvez algo próprio do jogo de sobrevivência, quem sabe.

De todo modo, é um gigante que tem muito a acrescentar, que dilacera a técnica pela técnica e sem a técnica, de estilo peculiar e marcante. Aprende-se muito lendo Zaffaroni, que tem limitações como qualquer pessoa, e que pode ser criticado por suas palavras, como qualquer outra referência planetária; é dizer: como qualquer um.

Sem um insensato coroamento que blinde críticas, mas também sem perseguição ilógica: essa me parece uma boa forma de ler (e compreender) seus escritos; extraindo o melhor dos caminhos construídos, transcendendo suas limitações e contradições.

Elencarem-no como inimigo é tão ilógico quanto figurões senis distribuindo tapas na imaginação não punitiva, distribuindo tapas no pensamento libertário, distribuindo tapas em abolicionismos.

Precisa existir mundo além da estabilidade, equilíbrio, desequilíbrio e alternância de agências, de inimigos, de discursos legitimantes, de riscos e emergências, que vão se amoldando conforme o contexto.

Nesse jogo de alternâncias, alguns elementos permanecem historicamente inalterados ao longo dos séculos; essas constantes, esses denominadores comuns, não desaparecerão sem uma oposição radical; não desaparecerão a partir dos discursos de auto-preservação emanados por burocratas almejando manter seus círculos e espaços de poder.

Para se entender a dinâmica do poder punitivo, resta imprescindível compreender suas constantes e variáveis; qual a extensão dos denominadores comuns, o que se mostra estrutural e o que se mostra conjuntural; que características dessa construção nos remetem (ou não) a constatações planetárias sobre os efeitos do Cárcere, e até que ponto podemos relativizar o sofrimento dos massacrados e vítimas reduzidas à condição de dado-sacrificial legitimante.

Nesse falacioso e degradante sequestro (do conflito, do tempo e do ser) cravado no cerne do poder punitivo, perceber a incompatibilidade entre o que é proposto e o que é perpetrado constitui importante pressuposto para se desmascarar todo o estupor e falsidade do leque de discursos legitimantes, que também vão se amoldando; que também são recicláveis.

Por fim, para ampliarmos um pouco nossa imaginação, vale relembrar Edson Passetti (2012, p. 24):

"Una breve pero atenta mirada hacia la sociedad actual nos enseñará que las prácticas abolicionistas suceden a diario. En este sentido, es necesario decir que la sociedad sin penas ya existe: la viven quienes se ven involucrados en una situación-problema y, prescindiendo de la mediación policial o judicial, encuentran soluciones conciliadoras."


Notas e Referências:

[01] BARATTA, Alesandro. Criminología Crítica y Crítica del Derecho Penal - introducción a la sociología jurídico-penal. Traducción de Álvaro Búnster. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011.

[02] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Palabra de los Muertos. Conferencias de Criminologia Cautelar. Prólogo de Juan Gelman. Buenos Aires: Ediar, 2012.

[03] PASSETTI, Edson. Ensayo sobre un abolicionismo penal. In: POSTAY, Maximiliano (compilador). El abolicionismo penal en América Latina. Imaginación no punitiva y militancia. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2012.

[04] Índios classificam 1º júri feito em aldeia de 'brutal' e refazem sentença.  Folha de São Paulo, 22/05/2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/1632330-indios-classificam-1-juri-feito-em-aldeia-de-brutal-e-refazem-sentenca.shtml>


 

Imagem Ilustrativa do Post: Vincent van Gogh - De Drinkers // Foto de: The Art Institute of Chicago, The Joseph Winterbotham Collection // Sem alterações

Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vincent_van_Gogh_-_De_Drinkers.jpg

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura