O PLEA BARGAIN E O PACOTE ANTICRIME DO GOVERNO BOLSONARO  

15/03/2019

 

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

Ao analisar o “Pacote anticrime”[1] apresentado pelo atual Ministro da Justiça, Sérgio Moro, uma das medidas que mais chama a atenção atine à introdução de soluções negociadas no Código de Processo Penal e na Lei de Improbidade, conhecida no direito norte-americano como plea bargain.

De forma breve, o instituto do plea bargain[2] [3] consiste no acordo de não persecução penal, a ser celebrado entre o acusado e o órgão acusador tanto na fase de investigação como durante o curso da ação penal. A sua celebração implica na imediata aplicação da pena, com a dispensa de produção de provas e renúncia ao direito de recorrer, possibilitando o encurtamento da persecução penal por meio da remoção de um processo com a necessária dilação probatória e permitindo a antecipação da culpa do acusado mediante a sua confissão.

O grande problema em torno desse tipo de acordo é a coação sofrida pelo acusado, que pode se declarar culpado diante da possibilidade de uma eventual condenação mais gravosa, ainda que seja inocente, ou mesmo diante de ameaças de ter de cumprir longas penas.

A implementação do instituto norte americano, parece-nos que contraria flagrantemente a vedação de imposição de pena sem o devido processo (nulla poena sine iudicio). A supressão de direitos e garantias, em prol da celeridade processual, enfraquece mais ainda a parte hipossuficiente, qual seja, o réu.

A situação brasileira é peculiar, já que a insuficiência de nossas instituições seguramente impedirá o êxito pretendido quando da proposta de introdução das “soluções negociadas”, dado que, no Brasil, grande parte dos encarcerados são condenados por presunções, ou sem que existam fortes lastros probatórios a embasar o decreto condenatório[4].

Aliás, a prática de abusos e legalidade por parte de agentes públicos é recorrente no país, sobretudo nas hipóteses de prisão em flagrante, oportunidades recorrentes em que os flagranteados, em manifesta situação de coação moral, “franqueam” a entrada destes em seus domicílios, ou mesmo permitem que os agentes tenham acesso aos dados constantes de aparelho celular sem a prévia e necessária autorização judicial, em manifesta violação ao direito fundamental constitucional à inviolabilidade da vida privada.

Essa situação de manifesto constrangimento situacional é ilustrativa de um provável cenário institucional superveniente à eventual aprovação desta proposta, em que os indiciados/denunciados em geral provavelmente consentirão com a imediata imposição de penalidade, muitas das vezes sem que exista sequer justa causa para o oferecimento de ação penal, de modo que a introdução destas “soluções negociadas”, portanto, certamente culminará na reiterada celebração de acordos viciados[5], já que muito dos acusados, logo após o flagrante, e movidos por manifesta coação psicológica (inerente[6] a estes tipos de constrangimentos flagranciais ou processuais), confessarão os crimes que lhe imputados, e irão cumprir de imediato a reprimenda que imposta pelo Ministério Público, e homologada pelo juízo competente, como ocorre diuturnamente[7], à semelhança dos exemplos ilustrativos alhures colacionados.

Estes acordos, por certo, irão prejudicar a pretensão punitiva da sociedade, de que a reprimenda penal seja correta e adequadamente aplicada, já que a dilação probatória, inclusive o interrogatório em juízo, são pressupostos da aplicação correta da dosimetria da pena, do mesmo modo que o projeto irá tolher do próprio acusado o direito fundamental constitucional à individualização efetiva de sua pena, na medida em que acordos serão celebrados sem que provas judicializadas tenham sido produzidas, restando, apenas, os elementos inquisitoriais produzidos sem que subsista o crivo do contraditório efetivo, da paridade de armas, e da ampla defesa.

Em recente manifesto crítico ao projeto, a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) alerta[8] para as prováveis mazelas sociais que decorrerão da institucionalização destas soluções negociadas em um país em que a Defensoria Pública (instituição representativa dos interesse dos hipossuficientes processuais, ou custus vulnerabilis[9]) está presente em apenas 40% das comarcas do país[10], manifestação esta que corrobora a necessidade de que este projeto de lei seja submetido a um amplo e minucioso debate em nossas casas legislativas, mediante audiências públicas, em que representantes de nossas instituições democráticas e de entidades representativas, sobretudo dos mais pobres, possam contribuir com suas necessárias opiniões sobre o tema.

Não obstante o plea bargain ser um "sucesso" em terras norte americanas, eventual importação do instituto ao direito brasileiro deve advir de forma integral, e não parcialmente, para que a tutela dos direitos fundamentais e da dignidade efetivamente norteie estes acordos de não persecução penal.

Oportuno citar a proposta[11] exarada pelo constitucionalista Lenio Streck, veiculada pela revista consultor jurídico no dia 21/02/2019, quanto à obrigatoriedade de que o membro do ministério público, ao formalizar a proposta do acordo de não persecução penal, colacione também aos autos todos os elementos favoráveis à defesa, sob pena de responsabilização pessoal do membro do parquet, para evitarmos a vexatória situação em que, mesmo havendo elementos a favor do indiciado/denunciado, este aceite o acordo de não persecução diante de seu desconhecimento de elementos que poderiam levar ao arquivamento da ação penal, ou mesmo à sua absolvição, à semelhança do que ocorre no país norte americano, e à semelhança do que já é exigido pela suprema corte estadunidense:

É o mesmo que exige a US Supreme Court desde 1963: por uma questão de due process, a promotoria tem um dever constitucional de trazer aos autos tudo que puder inocentar o réu. Ah, vejam o alerta do editorial do NY Times:não basta reconhecer a obrigação; se a regra não for imposta, se não houver responsabilização a quem não a seguir, o negócio não funciona. Para bonito não serve.

Detalhe. O Estatuto de Roma copiou esse mecanismo “anti-agir-estratégico do MP” lá da Alemanha. Querem ver? Leiamos o que diz o parágrafo segundo da seção 160 do CPP da Alemanha. O dispositivo diz, e traduzo livremente, que

“[o] ‘Ministério Público’ deve buscar [no sentido de investigar] não apenas as circunstâncias incriminatórias como também as que exoneram[o réu].” („Die Staatsanwaltschaft hat nicht nur die zur Belastung, sondern auch die zur Entlastung dienenden Umstände zu ermitteln und für die Erhebung der Beweise Sorge zu tragen, deren Verlust zu besorgen ist.“

Está aqui, e já falei sobre isso aqui. Insisto. E insisto. Aqui está a maior salvaguarda.

Portanto, trazendo às claras: uma das medidas de accountability seria, além da exigência de que qualquer investigação do MP também deva ser feita para buscar a verdade inclusive a favor da defesa, seria a de punir ao agente que, de algum modo, deixasse de apresentar elementos objetivos a favor do réu (ou do barganhante, no caso de a ação não ser instalada por efeito do plea). Sabem por que isso? Imagine um caso em que, havendo elementos a favor do indiciado, este aceita o acordo porque desconhece os elementos que poderiam levar ao arquivamento ou à sua absolvição. Deu para entender?

Não se tem tentado importar institutos? Pois é. Não estou inventando nada. O que eu digo está baseado na Constituição do Brasil e o papel que deu ao MP, no CPP Alemão, na Suprema Corte dos EUA e no Estatuto de Roma – já reconhecido pelo Brasil.

Se é para se importar, que se importe direito. Importar pela metade, importar só a parte que se encaixa no discurso dominante que atende à reivindicação “da sociedade” (essa abstração...), da “voz das ruas” (quem disse que é essa “a voz das ruas”? E mesmo que seja, ela vale mais que a Constituição?) ... essa importação não serve.

Porque, ora, se for assim, que segurança nós teremos com relação ao tipo de importação que se fará de qualquer outra coisa? Esse é o ponto, e é isso que não se entende quando critico ativismos, subjetivismos, e outros ismos que são aceitos quando nos favorecem.

Reiteramos, portanto, a nossa sugestão, já exarada neste sucinto trabalho, para que o mais minucioso e extenso processo legislativo seja aplicado ao caso, diante da delicadeza do tema, de modo a suscetibilizar a presença de entidades representativas de direitos fundamentais, dos acusados em geral, assim como da democracia, em audiências públicas, tais como o Instituto Popperiano de estudos Jurídicos[12]; Instituto de Ciências Penais (ICP)[13]; Defensorias públicas estaduais, do DF, e da União (que contribuirão com conhecimento empírico e aprofundado sobre as mazelas do processo cognitivo penal); e de entidades que advogam pelo amplo direito de defesa, como o IDDD[14], o IBADPP[15], o IBCCRIM[16], dentre inúmeros outros, já que não se pode combater, a morosidade do procedimento com a supressão da cognição a partir da eliminação dos princípios do contraditório, isonomia e especialmente da ampla defesa, sob pena de mitigar o devido processo legal concebido na perspectiva do estado democrático de direito.

Por derradeiro, renovamos nosso comprometimento com a democracia, para insistir na primazia da Constituição Federal, da dignidade da pessoa humana, da substância do devido processo legal, e da mais ampla participação popular nos provimentos jurisdicionais e legislativos, para que o resguardo as garantias individuais e vontade soberana constitucional não sucumba perante propostas autoritárias que busquem por suplantar a ampla defesa por uma fajuta celeridade processual, em que os princípios jurídicos individuais básicos são mitigados em prol de um pseudo-anseio popular difuso pelo combate à impunidade.

 

 

Notas e Referências

[1]https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/leia-o-projeto-de-moro-contra-a-corrupcao-o-crime-organizado-e-a-violencia/

[2]‘Plea Bargaining’ can be defined as pre-trial negotiations between the accused and the

prosecution during which the accused agrees to plead guilty in exchange for certain

concessions by the prosecution. Acessível em:

http://www.legalserviceindia.com/articles/plea_bar.htm

[3]O plea bargaining é instituto de origem na common law e consiste numa negociação feita entre o representante do Ministério Público e o acusado: o acusado apresenta importantes informações e o Ministério Público pode até deixar de acusá-lo formalmente.

Não há essa possibilidade no ordenamento jurídico brasileiro. O réu no sistema norte-americano pode confessar ou não confessar. Se confessar, pode reivindicar a negociação ou não. Quando faz o pedido de negociação é que ocorre o plea bargaining. Acessível em: https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121924834/o-que-se-entende-por-plea-bargaining

[4]https://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-policiais-testemunhas

[5]Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens.

Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação.

[6]https://fabriciocorrea.jusbrasil.com.br/artigos/121941507/as-mazelas-do-processo-penal

[7]https://www.conjur.com.br/2018-ago-10/limite-penal-agente-publico-faz-nao-causa-impunidade

[8]https://www.conjur.com.br/2019-fev-20/defensores-publicos-criticam-propostas-anticrime-governo

[9]https://emporiododireito.com.br/defensoria-publica-custus-vulnerabilis

[10]https://www.conjur.com.br/dl/defensores-publicos-criticam-projeto.pdf

[11]https://www.conjur.com.br/2019-fev-21/senso-incomum-proposta-seria-plea-bargain-serio

[12]http://inpej.com.br/

[13]http://www.icp.org.br/

[14]http://www.iddd.org.br/

[15]http://www.ibadpp.com.br/

[16]https://www.ibccrim.org.br/

 

Imagem Ilustrativa do Post: Descubrir / Discover // Foto de: Hernán Piñera // Sem alterações

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