No caminho com Maiakóvski: Lula e a condução coercitiva

21/03/2016

Por Bheron Rocha – 21/03/2016

Num artigo anterior, publicado em Jornal de grande circulação no Ceará, escrevendo acerca da possibilidade de execução provisória da pena após condenação do acusado em segundo grau, sem trânsito em julgado, alertei que os recursos processuais não existem “para beneficiar criminosos ou favorecer a impunidade, mas para proteger o cidadão contra o mais frio dos frios monstros (Nietzsche).

É claro que essa afirmação não se relaciona apenas à existência dos recursos processuais, mas à existência do próprio Direito penal e do processo penal, limitadores que são do poder punitivo do Estado, regulamentando as hipóteses e a forma com que poderá o cidadão ter seus bens jurídicos (vida, liberdades, patrimônio, etc) retirados ou restringidos.

É aqui que entra a determinação de condução coercitiva expedida pelo Juiz Sergio Moro e cumprida pela polícia federal no último dia 04 de março contra o ex-presidente Lula (leia a decisão aqui).

Há, sim, a previsão normativa da figura da condução coercitiva na seara criminal, entretanto, a lei é clara ao determinar que se dará apenas no caso de o réu não comparecer imotivadamente a ato do processo (ou da investigação), quando regularmente intimado (art. 260, CPP). Bem, ao que consta, o ex-presidente não se recusou a comparecer a ato judicial ou investigatório, especialmente perante à 13ª Vara Federal de Curitiba (fundamento este sequer ventilado na decisão citada), razão pela qual não caberia a condução coercitiva, sendo esta, portanto, ilegal por não observar as normas jurídicas regentes. Neste ponto, remeto à leitura do artigo do articulista Lenio Streck e tantos outros (v.g Gustavo Badaró, Aury Lopes Jr, Geraldo Prado, Rubens Casara).

Não cabe, igualmente, sofistas alegações de que conduções coercitivas, como a de Lula na 24ª fase da Operação Lavajato, já teriam ocorrido anteriormente, nos mesmos moldes, com uma centena de pessoas investigadas na citada operação, e que, não tendo havido nenhuma crítica por parte do meio jurídico ou político, não existiria qualquer ilegalidade. Ora, esgrimir este argumento equivaleria a dizer que, tendo havido corrupção antes deste Governo, por outros Governos, e não tendo sido apurada pelo meio jurídico ou político, não existiria qualquer ilegalidade a ser averiguada.

Como diz o bordão tantas vezes repetido: dois erros não fazem um acerto.

Por outro lado, o convite que o Juiz Moro, em sua decisão, determina que seja feito ao ex-presidente, para que este acompanhe a autoridade policial para prestar esclarecimentos, e que deveria anteceder a própria condução coercitiva, é claramente um jogo de palavras, um engodo, um verniz que não resiste a um simples arranhar hermenêutico de unha. Até porque a decisão é clara ao dizer que “o mandado só deve ser utilizado e cumprido, caso o ex-Presidente, convidado a acompanhar a autoridade policial para depoimento, recuse-se a fazê-lo”. Assim, o convite para realizar o depoimento sequer faz parte da determinação judicial, seria um ato exclusivo da autoridade policial.

Ora, usualmente o convite para acompanhar a autoridade policial faz parte imanente de um  condução coercitiva, e sempre deve ser proposto antes de qualquer ato de força. Relembrando que a utilização de força só se justifica em “caso de resistência ou de tentativa de fuga” (Art. 284, CPP) e que o uso de algemas está disciplinado pela Súmula Vinculante nº 11 do STF, só sendo permitido “em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros”.

Verifique-se que o convite feito pela autoridade policial ao ex-presidente Lula não serve como intimação anterior para fundamentar, com sua recusa, a condução coercitiva, uma vez que, por determinação do mandado expedido pelo Juiz Moro, aquele (convite) se converte imediatamente nesta (condução sob vara), sem qualquer espaço de tempo onde deveria se localizar a apreciação judicial acerca dos motivos da recusa.

Bem, a boa técnica judicial parece ser aquela em que a decisão pela condução coercitiva tomada pelo julgador deve se dar temporalmente após a recusa, e não num juízo de antecipação desta – puro exercício de futurologia. E por quê? Porque a própria ausência ou os fundamentos da recusa deverão ser analisados pelo juiz, se justa ou injusta sua motivação.  Ausência ou recusa imotivada ao ato são aquelas as quais não se dá justificação ou, ainda, se esta justificação não é plausível ou proporcional. Não comparecer porque foi a um jogo de futebol ou porque tinha uma reunião de condomínio são exemplos de ausências imotivadas. Já o fato de o intimado estar enfermo, por exemplo, é um motivo proporcional e justo.

Também não é imotivado o não comparecimento que se encontra amparado em provimento judicial, como ocorreu com o próprio ex-presidente, que obteve uma liminar na 10ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, que impedia que fosse conduzido coercitivamente para prestar depoimento no Ministério Público daquele Estado.

Apenas a recusa ou ausência injusta pode fundamentar uma determinação de condução coercitiva. E esta análise da justiça e da injustiça da recusa ou ausência não pode ser delegada pelo juiz à pessoa que realizará a intimação, ou seja, não pode o juiz determinar a intimação do investigado/réu e, no mesmo mandado, determinar a condução coercitiva em caso de recusa injustificada. Não é, e não pode ser, o cumpridor do mandado investido na competência/atribuição/jurisdição de apreciar a justeza ou injusteza da recusa do intimado. Este exame é ato jurisdicional indelegável.

Ademais, a intimação do investigado ou do acusado para praticar (ou, ainda, acompanhar a realização de) atos processuais, deve se dar com uma antecedência mínima de 48 (quarenta e oito) horas, em observância ao art. 552, § 1.º, do Código de Processo Civil, aplicado subsidiariamente aos feitos criminais, por força do art. 3º do Código de Processo Penal, tendo sido decidido neste sentido pelo STJ no HC 109967 RJ, sob a relatoria da Ministra Laurita Vaz. O que não ocorreu no caso do ex-presidente, mesmo se considerarmos o convite como uma primeira intimação ao ato.

O (suscitado) poder geral de cautela do Juiz não dá ensejo a que se criem novas hipóteses para a aplicação da condução coercitiva, tendo em vista que, em se tratando de cerceamente do status libertatis do investigado  ou réu, a interpretação deve ser sempre restritiva.

O respeito à legalidade na expropriação de bens e na restrição da liberdade foi o resultado de uma longa luta contra as arbitrariedades cometidas pelo Estado, ou por quem o representava, que culminou com a Magna Cartha Libertatum de 1215, na Inglaterra, e se fortaleceu ao correr dos séculos nas Constituições de diversos países.

Devemos exigir que a liberdade de alguém (quem quer que seja, Lula ou o vizinho) só possa ser retirada, mesmo que por poucas horas, quando e como a lei prescreve e determina.

Eduardo Alves da Costa escreveu o célebre poema “No caminho com Maiakóvski” em meados dos anos 60, em plena Ditadura, após o Golpe Militar (eu disse: Ditadura e Golpe, e não regime e revolução), e retrata de forma poética as consequências da não indignação e do silêncio diante das constantes violações sofridas, ou porque parecem pequenas à primeira vista, ou porque foram com o outro, até que se torne impossível lutar contra elas, por terem se tornado maiores que as nossas forças ou por nos ter tolhido frontalmente o direito de manifestação.

Se permitirmos que o vizinho seja privado hoje de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, sem o estrito respeito às leis, amanhã a restrição pode bater-nos à porta, e porque não dissemos nada, “já não podemos dizer nada”.


Bheron Rocha. Jorge Bheron Rocha é Defensor Público do Estado do Ceará. Mestre em Ciências Jurídico-criminais pela Universidade de Coimbra. Sócio Fundador do Instituto Latino Americano de Estudos sobre Direito, Política e Democracia – ILAEDPD. . .


Imagem Ilustrativa do Post: my way // Foto de: Marc Brüneke // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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