Microfísica de um golpe de estado

27/05/2016

Por Tânia M. S. Oliveira – 27/05/2016

Para o filósofo francês Michel Foucault devemos enxergar o poder como algo que se encadeia e é exercido em redes, em variados níveis. As microestruturas de poder - não necessariamente ligadas ao Estado – são operadas em diferentes níveis. Em sua concepção negativa, o poder vinculado ao Estado se afirma no aparelho repressivo que castiga para dominar.

A dinâmica da sociedade contemporânea brasileira dá mostras de que não é possível estruturar uma mudança social brusca, uma ruptura que desrespeita os meios democráticos e constitucionais, sem que haja uma afetação dos micro-organismos de poder; sem que se pense em controle de agentes que estão em bases sociais ou escalas da burocracia do aparelho de Estado, e que possam influenciar comportamentos com tomadas de decisão em contraposição à nova forma de condução que se instala com a quebra.

Sendo o poder, inclusive, realizado por várias corporações e múltiplas representações, sua relação com um evento central requer uma intervenção social que vai muito além das grandes instituições.

O desenho estudado por Foucault para decifrar a microfísica do poder é revelador da perseguição que está sendo perpetrada contra indivíduos e entidades contrários ao processo de impeachment da Presidenta eleita Dilma Rousseff, em suas mais variadas esferas de atuação. As ações ocorrem dentro da institucionalidade formal e, tal qual o golpe de Estado contra a Presidenta, veste uma roupagem de legalidade, com a participação ativa de autoridades investidas de comando e poder de decisão.

A partir da deflagração do processo, com o estabelecimento da disputa de convencimento da sociedade, houve ações judiciais com deferimento liminar para impedir centros acadêmicos de universidades públicas de promoverem debates, abertura de representação contra membros do ministério público e da magistratura, por terem participado de atos em defesa da democracia e contra o processo de impeachment, perseguições a professores, ataques a advogados, culminando com o pedido de sindicância feito pelo atual Advogado-Geral da União, Fábio Medina Osório, contra o ex-AGU José Eduardo Cardozo sob o “fundamento” de defesa criminosa da Presidenta Dilma, diante da afirmação de se tratar de um golpe de Estado.

Procedimentos intimidatórios, que violam preceitos óbvios e direitos constitucionalmente previstos um Estado democrático, que vão desde a liberdade de expressão e de associação, até prerrogativas de exercício de profissão; atos que visam a impor o medo, a regulação do comportamento, a busca da uniformização do discurso com a eliminação da divergência. Tudo feito dentro de determinado padrão de legalidade, tal qual no próprio processo de impeachment  ora em curso. Uma forma de golpe sutil, dentro da formalidade, sem, contudo, obedecer às regras de sustentação e embasamento a lhe conferir legitimidade, e que, nada obstante, produz o mesmo resultado que teria a tomada de poder pela força: a deposição de um governo eleito democraticamente.

Quando se diz que vivemos tempos obscuros de retrocesso, há os que costumam questionar a carga semântica das palavras. Contudo, a observação, mesmo que superficial, de como as autoridades adornadas do poder formal e institucional - seja esse tomado de assalto que é o Poder Executivo sejam outros - estão se comportando, em franca interpretação mais conveniente e politiquesca, pouco resta a ponderar sobre o fato de que estamos em um período aterrorizante e revelador de negação da liberdade de pensamento, situação densamente opressiva, cujas repercussões são imprevisíveis não apenas no momento imediato, mas para as futuras gerações.

Os argumentos usados nas tomadas de decisões para cercear atitudes e palavras transitam em nome de supostos interesses coletivos e defesa das instituições, quando se mostram, de fato, como posições adotadas em nome de conveniências, em um círculo vicioso de mesquinharia, pronto a eliminar o outro do mesmo espaço público.

As ações contra entidades, grupos e pessoas fazem parte da agenda do golpe de Estado em curso, com a prática de poder que leva a objetivos que contrariam seus desígnios iniciais. Nesse trajeto, passam pelos mais diversos campos de intervenção social, como o campo jurídico propriamente dito e os chamados interna corporis, com as sindicâncias e representações. Não importa a forma, desde que signifique a coação sob algum mecanismo de controle com vistas à exclusão, senão física, mas política, de indivíduos ou coletivos expostos à fragilidade e ao estado de constante temor de perderem suas carreiras, seus empregos, seus direitos de cidadãos e, no limite, sua liberdade.

As denúncias à engenhosa arquitetura da sustentação microfísica do golpe são imperiosas. As intervenções não podem ser toleradas. Ao oposto, devem ser confrontadas e expostas, para que a verdade flua e torne caricatos seus autores, figuras lamentáveis e certamente com pouco apreço pela democracia.


Notas e Referências:

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 11ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1997.


Tânia M. S. Oliveira. . Tânia M. S. Oliveira é Mestre e Pós-graduada em Direito. Pesquisadora do GCcrim/Unb. Assessora jurídica no Senado. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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