ENTRE A LEGALIDADE E IGUALDADE TRIBUTÁRIA: O PESO DA LENTIDÃO

08/10/2019

Em vez de hiato, a instigante relação entre os pares ficção/realidade e direito/literatura possui um laço inextricável. Sirvo-me da “insustentável leveza do ser”[1], de Milan Kundera, como um modelo exemplar para apresentar essa investigação filosófica, sociológica e psicológica, em virtude de sua enorme atroz desnudez. Sua sútil perspicácia é cruel e, inadvertidamente, cortante. O próprio título da obra já sinaliza a dinâmica entre os opostos que se incursionaria, pois, pelo senso comum, o adjetivo insustentável não serviria como predicado do substantivo leveza, ao menos à primeira vista. Nem sempre o peso é pesado ou negativo; e nem a leveza é assim tão leve ou positiva.

A partir dos duplos contrários, desde muito posto por Parmênides, o autor amplia-os para lhes dar ares de uma dramaticidade anímica, ao se debruçar sobre a indagação acerca do que é viver dentro da verdade. Esse é um (dos possíveis) enredo que embala a vida de dois dos seus personagens e, ao mesmo tempo, caracteriza suas personalidades. O mais “leve” deles acredita que seria imergir na sua própria intimidade, desprendendo-se do disfarce que se veste em meio uma vida jungida às práticas sociais ensaiadas. Enquanto para o mais “pesado”, seria justamente abolir a barreira entre o público e privado, tal qual se morasse em uma “casa de vidro”. Se não bastasse suas perspectivas se desmentirem reciprocamente, a ironia reside no fato de que ambos são amantes, que se comple(men)tam.

Todas essas conjunturas e conjecturas levantada na obra não são meramente verbais, na forma como normalmente damos sentido prévio às palavras, mas reais, cujas respostas não são encontradas nas estrelas, nem de antemão nos primeiros capítulos e, talvez, nem ao final. É, de fato, a dúvida, o estranhamento e a desconcertante incerteza sobre o ser, não-ser e o vir a ser o elo que une suas indagações. Com efeito, representa a sede pela liberdade de não se contentar com aquilo que se tem como habitual, aprofundando-se no que se tem de mais oculto ou escondido. Quiçá, é a busca pelo entendimento das antíteses e paradoxos inconspícuos que nos circundam.

Como o Direito, sem nos darmos conta, vem se liquefazendo rapidamente em virtude dos agentes de efeito estufa (política, economia, contabilidade, T.I. etc.), permito-me seguir com “a lentidão” [2], também de Kundera, pois julgo que as coisas caminham rápidas demais. Nela, o combate entre peso e leve volta à cena novamente, ainda que sob outras vestes.

Agora, sob a perspectiva da velocidade e lentidão, o tempo e a verdade irão tomar corpo no entroncamento entre ficção e realidade. Isso fica evidente no estilo da narrativa iniciada em primeira pessoa, mantendo-se o autor, ora como participante, ora como observador, em constante alternância que dificulta distingui-la ao longo do livro. Com a lentidão, o conto convive dentro da individualidade do autor, que possui o olhar atento para a história não mediatizada da qual ele participa e contempla. Na velocidade, avança sobre outras histórias, que se entrecruzam, não sendo mais possível precisar qual delas é real ou ficção. Cada qual a seu modo, traz algo novo para a outra, misturando-se, para formarem juntas uma amálgama que se transforma na mensagem transmitida pelo livro. Uma dessas múltiplas camadas é trazida pela lembrança do romance As ligações perigosas, de Choderlos de Laclos, cuja intertextualidade funciona exatamente para criar um elo entre todas, metonimicamente.  Sua ambientação, em um “mundo dos segredos, onde não existem nomes”[3], calha para mostrar o papel que as interdições morais exercem na forma como lidamos com o mundo linguisticamente apreendido.

Em síntese, a duas obras de Kundera se preocupam com o insólito, com o léxico de palavras incompreendidas e com o não dito. Nas sutilezas não evidentes do indizível, busca a essência da verdade -- e não a verdade da essência, eis que desde sempre já ultrapassada --, que é sempre um porvir[4]. E este oculto, por vezes, recebe o nome de hipocrisia.

Uma pausa rápida.

Pois bem, o Direito está cada vez mais veloz.

No direito penal, há especialistas estudando a sua velocidade. Dizem, inclusive, já ter ultrapassado a 4.0.!

Outra pausa.

No processo civil, enunciados de súmulas, repercussões gerais, re-pe-ti-ti-vos etc. podem finalizar casos mecânica e liminarmente, mediante estatísticas. É a era dos matches, tempos em que se relega para a máquina o peso de julgar, quase como um culto à eficácia, cujo atributo de aferição é, tão somente, o quantitativo. Não há mais o sentir, apreciar, experimentar, tocar e interpretar. Toda essa atmosfera inebriante, que se processa e se saboreia na-e-com “a lentidão”, cede lugar para a velocidade, que é o prazer confundido com o puro êxtase. Todo o enlace romântico do Juízo Natural com a causa, bem como a conversa sedutora e organizadora do tempo do processo, andam rumo ao esquecimento, pois o não falado, o indizível e o incompreendido, certamente, serão dizimados pela “fria impessoalidade da técnica”. Já imagino as “cias” de “apps” desenvolvendo o Uber Justice, IJustice e semelhantes. Seus leiautes serão cool e clean, e incluirão funcionalidades como a seleção de temas com as respectivas teses, sendo possível combiná-las, tirar ou trocar ingredientes etc. Totalmente integrados aos Tribunais, os aplicativos entregarão, aos comensais, a Justiça por delivery, sempre com promoções imperdíveis. Será a era da não-verdade do pós-processo.

Outra pausa, mais demorada.

Enquanto no direito tributário, bem, velocidade e lentidão convivem pacificamente. Rapidez com que se multiplicam teses mirabolantes e propostas de reformas; e lentidão (minuciosa, porém, fugaz) nos julgamentos das causas.

O caso do PIS/COFINS é um exemplo emblemático, especialmente em virtude da atualidade do RE 574.706/PR, bem assim dos aclaratórios liberados para julgamento. Recapitulando-se, a discussão não me parece tão distinta daquela que foi objeto da vetusta ADC n.1. Na ocasião, julgou constitucional a norma instituidora da materialidade da COFINS, veiculada pela LC 70/91, sendo, inclusive, rebaixada a inclusão do mesmo ICMS -- agora discutido -- ao foro infraconstitucional. Da mesma forma, pouco se difere da temática do RE 346.084/PR, também incapaz de solucionar o problema, suspostamente relacionado à estabilização de um conceito da materialidade do tributo em voga. Nem tampouco, a alteração do texto da Constituição que os sucederam, na dicção da EC 20/98, conseguiu dar sustentáculo às expectativas de condutas vindouras. Pelo contrário, a enxurrada de teses não só não parou, como se tornou caudalosa, tendo os utentes interpretado o recado da Suprema Corte como uma sinalização para se apostar na univocidade (acrítica e incoerente) das palavras (aprisionadas) em matéria de tributação[5].

Então, o RE 574.706/PR é só a ponta do iceberg, inserido na base da (pré)compreensão encrustado na história dos fatos precedentes, bem assim seus efeitos (supostamente) projetados. Somente ao resgatar seu passado, podemos ligar uma ponte com o presente, pavimentando-a para o futuro, no sentido de um caminho mais previsível, coerente e lógico. Com efeito, o aclaratório que se originou no seu iter apenas põe o dedo na ferida, escancarando quão vã é a busca por conceitos ideais, eis que sempre inatingíveis. Definitivamente, não é a produção em escala e massiva de mais textos (inclusive, na forma de acórdãos) que se pacificará (ou eliminará) as (múltiplas) “interpretações”. Reaviva-se o alerta do Min. Eros Grau, no corpo do RE346.084/PR, que “o direito, instância da realidade social, é movimento, e não linguagem congelada”. Seus pares, contudo, querem (in)escapar velozmente do tempo, por não aguentarem o peso de um exame mais acurado.

O eterno retorno.

Ufa. Só com muita pausa para recuperar o fôlego e poder articular searas diversas num só texto. Mas, como tudo corre ligeiro demais, receei não ter mais tempo para flanar. Em verdade, até existe um elo que as (des)enlaçam. Todas se esforçam para fornecerem respostas, sem, contudo, compreenderem o nó górdio a ser desfeito. A raiz, portanto, reside no (falta de) paradigma sobre como concebemos e lidamos com o nosso Direito, bem como o que pretendemos para e com ele[6].

Com a argúcia peculiar, Lênio Streck afirmou que faltam palavras ao nosso Direito[7], todavia, peço vênia para inverter sua fórmula original, sem prejuízo de se transbordar a resistência de seu sentido: sobram palavras, que vêm aos montes, vendidas no varejo; mas, faltam coisas. São, assim, “só-palavras-à-sós”, ou, na linguagem ‘contemporânea’ da moda, embalagens customizadas vazias.

Nos dias atuais, dizendo-se mais, a linguagem deixou de ser o acontecimento de um povo, para se tornar seu ópio. Antes que desveladora, tornou-se reveladora de idiossincrasia e, portanto, ocultadora da verdade. Não é mais poemática, limitando-se a ser performática. A origem da obra do direito brasileiro -- ouso parafrasear Heiddeger para esse fim --, é o pôr-em-desordem-da-não-verdade.

Tenho que essa afasia geral incômoda é, de certo modo, cínica, indiferente às mudanças; e de outro, cética, certa, apenas, ser impossível qualquer espécie de juízo racionalmente fundado, facilitando discursos sedutores, porém, que não passam de apostas superficiais e insensatas. Em ambos os casos, lambuzam-se os preguiçosos. De fato, a humanidade não quer o peso de enfrentar o passado, fingindo que ele não nos acompanha, enquanto cede lugar às incessantes explosões fugidias que arroubam e entorpecem. Pouco importa viver (n)a mentira, se ela for mais prazerosa e eficaz. Aliás, tal indolência me faz lembrar, novamente, como Kundera inaugura sua “insustentável leveza”, quando evoca o mito nietzschiano do “eterno retorno”, segundo o qual “um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido e que essa repetição ainda vai repetir indefinidamente!”.

À guisa (in)conclusiva, foi assim que Chronos (o Tempo), olvidando-se ter praticado parricídio, teve-lhe reservado o destino -- sempre terrível e inevitável -- de ser morto pelas mãos de seu filho. Essa ideia do círculo vicioso que se repete e se avoluma na (a-)história, mas que nada serve de aprendizado, só agiganta nossa estupidez.

 

Notas e Referências

[1] Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fosenca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

[2] Tradução de Maria Luiza Newlands da Silveira e Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

[3] Idem, ibidem, p.9.

[4] HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Tradução de Maria da Conceição Costa.

[5] Busco adentrar nas razões que lhes subjazem em https://emporiododireito.com.br/leitura/entre-a-legalidade-e-igualdade-tributaria-kitsch-e-kelsen.

[6] Em recente coluna, Gilberto Morbach esquadrinha a crise instaurada pela falta de uma matriz teórica in:  https://www.conjur.com.br/2019-set-07/autonomia-direito-teoria-decisao-chd-streck

[7] In: https://www.conjur.com.br/2018-abr-05/faltam-palavras-liquidacao-duas-colegialidade-presuncao

 

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