Do que realmente se fala quando se fala em excludente de ilicitude?

13/12/2019

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

Na última semana o Brasil protagonizou mais uma vez um episódio de barbárie. Após uma ação da Polícia Militar em um baile funk na favela de Paraisópolis, zona sul de São Paulo, nove jovens foram mortos em meio a confusão. A versão dada pelos policiais ali presentes, colocada frente a versão de testemunhas que estavam presentes no momento da correria, é dissonante.

De acordo com a reportagem do G1, jornal online do grupo Globo, e vídeos feitos durante a abordagem policial, tal ação dos PMs teria desencadeado uma ação de manada nas pessoas que se encontravam ali presentes. As vítimas foram mortas por terem sido pisoteadas e sofridos ferimentos graves, levando-as a óbito. Também é de conhecimento através dos vídeos, o uso desproporcional da força, agressões arbitrárias e condutas que extrapolam o protocolo da polícia militar. Segundo o advogado Ivan Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a PM de São Paulo recebe um treinamento de qualidade, sendo assim possível concluir que nenhum protocolo foi seguido. Marques também afirmou em entrevista dada à Folha de São Paulo que é possível caracterizar a ação dos policiais como criminosa no momento em que eles confinam jovens em uma viela. No vídeo disponibilizado na internet, também é possível ver violência física dos policiais contra os jovens de forma abusiva e completamente desnecessária.

No ano de 2019, em 10 meses, seis crianças foram mortas por balas perdidas somente na cidade do Rio de Janeiro. Nenhuma das famílias tive qualquer tipo de resposta conclusiva segundo os inquéritos abertos. Em relação, essas crianças também foram mortas na periferia da cidade.

Em 2012, o relatório do Conselho de Direito Humanos da ONU recomendou o fim da polícia militar, sendo classificada por membros do CDH como “esquadrão da morte” e responsável por execuções extrajudiciais. Tais dados foram retirados do Exame Periódico Universal (EPU) do Brasil. O fim da polícia militar se daria pela sua desmilitarização, o que já se tornou a PEC 51 de 2013. Segundo Mateus Afonso Pereira, a atual preocupação da população com a criminalidade urbana é um processo atual que não está diretamente ligado com a criação das polícias, o que levaria a crer que a atuação da polícia se intensificou com os atuais desafios da segurança pública, intensificando-se assim o nível de repressão. Segundo a PEC 51/2013, a desmilitarização se daria em um processo de reestruturação da polícia e sua desmilitarização, trazendo-a para uma esfera mais próxima dos civis.

Atualmente uma pauta muito crítica foi levantada pelo atual governo, o excludente de ilicitude dentro do pacote anticrime apresentado pelo atual Ministro da Justiça Sérgio Moro. Se discorre no artigo 23 do Código Penal que não há crime quando o agente público pratica o fato em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. É posto, também, em parágrafo único do mesmo artigo que o agente, em qualquer desses incisos supracitados, responderá pelo excesso doloso ou culposo.

No pacote anticrime, PEC 882/19, foi aditado ao artigo 23 o seguinte parágrafo “o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Tal adendo se mostrou perigoso para o atual cenário nacional no que diz respeito a políticas públicas de segurança, que tem visado uma maior repressão, especialmente nas periferias.

Pensando na atual lógica nacional, é inconcebível pensar em tal escusa para excessos, onde o agente representa diretamente o Estado. Segundo a Fundação Abrinq/SIM-Ministério da Saúde, de 1997 a 2017, o número de jovens negros mortos por arma de fogo cresceu 428%, de 1.450 para 7.670, enquanto o número de jovens brancos passou de 772 para 1.563, um aumento de 102%. Neste estudo, também se verificou a diferença entre os dois últimos anos, 2016 e 2017, onde o número de negros mortos por arma de fogo cresceu 8%, indo de 7.083 para 7.670, e de brancos, 1.708 em 2016 e 1.563 em 2017, marcando assim uma queda de 9%.

Ainda segundo o mesmo estudo da Abrinq/SIM-Ministério da Saúde, em todo Brasil, a diferença na proporção entre jovens negros e brancos mortos em 2017, em todo o país, os negros mortos representavam 80%, enquanto os brancos representavam 17,5%.

Na lógica acrescida ao artigo 23 do código penal, muito se fala em licença para matar, uma vez que os casos de abuso policial não são novidade no país. Ainda em 2019, um homem foi morto após ter seu carro alvejado com mais de 80 tiros por militares do exército. Também vivenciamos o caso de Rodrigo Alexandre da Silva Serrano que foi morto com 3 tiros após ter seu guarda-chuva confundido com um fuzil no Rio de Janeiro. Ambos negros, o que se pode levar a pensar no racismo institucional e estrutural no qual vivemos no Brasil.

Pensando na lógica carcerária brasileira, segundo o relatório do INFOPEN, em 2017, o número de presos no Brasil era de 730 mil pessoas, tendo São Paulo o maior número de presos, com 240.061. De todos esses presos, 40% não tem condenação, um número alarmante tendo em vista um possível arrocho penal nos próximos anos.

É explícito que o atual governo se coloca contra os direitos humanos, com declarações presentes e passadas que mostram o recrudescimento penal verso às margens, onde a lei, que deveria ser para todos, não chega. A ascensão do populismo no Brasil, assente a uma política penal extremamente punitivista, não servirá de solução, mas sim de um extremo distanciamento de onde o diálogo é mais necessário. Da ida às periferias, que sofrem diariamente com o Cripto Estado, como bem coloca Bobbio. Os pilares democráticos se encontram abalados por um processo anti-civilizatório de exceção, com um avanço apoteótico do fundamentalismo, passos claros que colocam a democracia em vertigem.



Notas e Referências

BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade para uma teoria geral da política. 14ª ed. Paz e Terra. 1985. p. 53-126.

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 1ª ed. Paz e Terra. 2015. p. 223-278.

MEDEIROS, Mateus Afonso. A desmilitarização das polícias e a legislação ordinária. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 42 n. 165, p. 239-254. jan./mar. 2005

Sem autor: ONU diz que polícia brasileira mata 5 por dia; maioria é afrodescendente. UOL Notícias 2019. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2016/03/10/policia-brasileira-mata-5-pessoas-por-dia-diz-onu.htm> Acesso em 04/12/2019.

SANTOS, Guilherme: Em 10 meses, Rio tem 6 crianças mortas por bala perdida e poucas respostas para as famílias. Portal G1 Notícias, 2019. Disponível em <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/11/13/em-10-meses-rio-tem-6-criancas-mortas-por-bala-perdida-e-poucas-respostas-para-as-familias.ghtml> Acesso em 04/12/2019.

 

 

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