Crítica à hermenêutica do Conforto: a súmula (vinculante) como se imagem fosse

02/08/2016

Por Alexandre Morais da Rosa - 02/08/2016

Para que serve um livro sem imagens?Lewis Carrol, em “Alice no País das Maravilhas”

Por mais incompetentes que sejam os componentes de um poder judiciário, suas interpretações serão decisivas. Para além da ignorância, a paternidade a legitima e faz coisa julgada.Luis Alberto Warat

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Hermenêutica do Conforto – 3. Para entender a Súmula (vinculante) como se Imagem fosse. 4. Concluir para Resistir (constitucionalmente).

1. Introdução

O que irei enunciar aqui pode, de alguma maneira, ficar fora da ordem estabelecida. Se ficar, terei êxito. Veremos. Cada um ouve o que pode, ou o que quer. Isto porque há uma estrutura psíquica que condiciona o sujeito, não mais universal, por básico. Desde o “descentramento” do sujeito operado por Freud, com o desvelamento do “inconsciente”, indicado por Lacan, numa “estrutura como se linguagem fosse”, há um para-além do sujeito consciente que dialoga, sempre, com os significantes do inconsciente, dito Outro. Acrescente-se, também, que o “descentramento” do “Estado” para o “Mercado”, baluarte “Neoliberal”, demanda novas miradas sobre as (im)possibilidades de entrelaçamento entre Direito, Mercado e Sujeito. A consequência disto no campo da hermenêutica jurídica, apontada como “do conforto”, poderá se fazer ver. Por isso é necessário abordar-se a questão da “Eficiência”, da “Velocidade” e da “Súmula como se Imagem fosse”.

2. Hemenêutica do Conforto

No Brasil a filiação do “senso comum teórico dos juristas” (Warat) à “Filosofia da Consciência” é patente. Carlos Maximiliano, jurista com enorme influência na maneira pela qual se enfrenta a situação, em lição clássica, afirma: “A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito. (...) Para o conseguir, se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, extrair da norma tudo o que na mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito.

Com efeito, o sujeito clássico – cartesiano, uno –, titular absoluto da consciência, pretende-se o descobridor fundamental do sentido, por sua posição de ‘Um” diante do texto a ser enfrentado, legitimando retoricamente o caráter ideológico do discurso. Diante da verdade adrede existente, o intérprete irá, pelo método, reconfortar-se com a certeza de ter descoberto “A Verdade”. É um universo epistemológico pensado de forma “platônica” e “Metafísica”, hierárquico, piramidal, verticalizante e simplista, daí seu efeito cativante. O mundo das verdades eternas, pré-linguístico, situado desde antes da linguagem, com sua “Verdade verdadeira”, sua “Justiça justa”, sua “Equidade correta”, retiradas do “mundo ideal” pelo bom hermeneuta, claro, isto é, o reconhecido como membro (de carteirinha) do “Monastério dos Sábios”.

Um breve passeio pelos “Manuais de Direito” deixa evidenciada a banalização lógica das decisões judiciais, sem que se discuta a necessária fundamentação epistemológica. Em regra são de uma pobreza teórica assustadora. A sentença é tida como o resultado de um procedimento apto a autenticar a sua conclusão como “Verdade”. Tendo como princípio indiscutível a plena possibilidade da ‘Verdade’, os “Manuais” apenas dedicam – e quando dedicam – algumas poucas páginas para demonstração dos requisitos formais, consistentes na maioria da vezes no preenchimento, step by step, do ritual previsto em lei, sem discutir a hermenêutica, também domesticada desde antes. A facilidade aparente e eficiente do provimento judicial é que contam. Nem mesmo se discutem as possibilidades e, portanto, os limites do processo. A análise dos Manuais difundidos na graduação – até porque pouco variam, copiam-se – e que irão balizar a prática forense, evidenciam um pano de fundo de ignorância epistemológica e hermenêutica, muito em face da ausência de reflexão crítica e deficiência teórico-prática dos atores jurídicos, advindos de formação bancária (Paulo Freire). De qualquer forma, para manutenção do status quo são perfeitos ao “despolitizarem o ato” decisório.

Julgar, pois, pode ser um ato mecânico. Vista bem de perto, a teoria da decisão manejada pelo senso comum teórico é a maneira pela qual, “como se” um juiz decidiria – se porventura decidisse –, coisa que, todavia, não o faz, especialmente lançando mão da Imagem Sumular. Enfim, tudo é organizado de forma lógico-dedutiva, como se o simples caminhar processual concedesse a ‘Verdade’, livrando os atores jurídicos de qualquer indagação sobre si próprios, sobre seu “ser-aí-no-mundo” (Heidegger), “como se” desprovidos de “inconsciente” (Freud), bem como sobre os próprios limites do “processo como procedimento em contraditório” (Fazzalari). A leitura dos “Manuais” expressa a sensação de que a “receita para uma decisão” está previamente dada e que se ocorrerem erros, estes são do operador que não soube misturar, conforme a receita, os ingredientes. Puro embuste.

Ressalte-se, ainda, que a noção de “velocidade” é uma questão fundamental porque se constitui numa ameça tirânica. O condicionamento mercadológico opera uma impossibilidade de crítica impulsionada pela velocidade da intervenção, segundo a qual a possibilidade de assimilação, compreensão e resistência acabam, por básico. É impossível continuar aderindo ingenuamente a esta “obscena aceleração”. A velocidade implica, no caso jurídico, no estabelecimento de padrões, procedimentos cada vez mais uniformes, daí a “Súmula Vinculante”, baluarte do discurso da eficiência, atender, com folga, à demanda de “velocidade total”. A decisão judicial acaba se transformando em opções ba(na)lizadas, no estilo peça pelo número; ‘MacDecisões’ impostas pela matriz (STF e STJ). É preciso pensar nas diversas velocidades dos processos e seu prazo razoável. Evidentemente que a lentidão aparente do processo clássico recebeu os influxos das novas tecnologias. Contudo, longe de reflexos, estamos num padrão de velocidade incompatível com as possibilidades de construção de verdades (desubstancializadas, claro). O processo que era a garantia de construção de verdades de maneira intersubjetiva, no tempo, se transforma em um transtorno a ser superado em nome da eficiência. Nesta lógica, uns pretendem abreviar, outros mais fogosos, eliminar. Existe a ilusão de que a velocidade é salvadora na busca de uma inalcançável, por básico, “Verdade” e/ou “Felicidade” perene. Esta ilusão embala os bem intencionados atores jurídicos, cobrando, todavia, o preço da democracia. Logo, o estudo da economia da velocidade – dromologia –, com Virilio, Ost e Gauer é algo que não pode ser deixado a latere, sob pena de se encobrir o significante mestre da sociedade contemporânea. A “Justiça da velocidade” não respeita os tempos mortos, as limitações de compreensão, exigindo sempre e sempre um resultado mais eficiente vinculado à lógica do custo/benefício, como propugna a “Análise Econômica do Direito” (Posner).

3. Para entender a Súmula (Vinculante) como se Imagem fosse.

Jean-Luc Godard disse que palavra e Imagem são como cadeira e mesa: “para estar à mesa necessitamos das duas”. Desvelar – velando – as implicações de uma compreensão da “Súmula (Vinculante) como se Imagem fosse”, pressupõe reconhecer alguns pressupostos da mirada. Claro que esta mirada não é neutra; nem poderia (Joly). Parte da compreensão de um modelo – não compactuado – de “Justiça Eficiente” (que se alastra), na linha do modelo “Neoliberal” (Avelãs Nunes) e adubado pela “Análise Econômica do Direito”, como demonstra Aroso Linhares, bem como pela nova função e lugar dos magistrados brasileiros, nesta “Justiça por Imagens”.

O Neoliberalismo como lugar é um grande consumidor de novas teorias que podem se adaptar ao seu modelo. Possui uma grande capacidade de assimilação de novos caminhos. Gira no que pode o sentido para que lhe seja instrumental. Não se trata, todavia, de autoridade central, única e racional. Reside justamente no seu “centro vazio absoluto” o êxito de sua capacidade de adaptação: o “Mercado”. Desde o modelo aglutinador e consumidor de teorias que é o Neoliberalismo, a manipulação da Súmula apresentada “como se Imagem fosse”, elevada à condição de novo bem de consumo, implica numa nova forma de compreender e decidir no campo jurídico relegitimante da “Filosofia da Consciência”.

Numa sociedade cada vez mais “escópica”, em que o “ver” e o “olhar” (Zizek e Quinet) acompanham e cercam os sujeitos por todos os lados, parece um tanto quanto ingênuo (ou talvez cínico) a postura do Direito, pelo “senso comum teórico”, em se alienar desta questão. Não sem razão, contudo, desde o ponto de vista da sublimação da política “Neoliberal”, entendida como a “despolitização da decisão judicial”.

Um mundo de imagens que nos é mostrado no dia-a-dia. O que comer, vestir, fumar, consumir, enfim, a “violência simbólica” (Bourdieu) desta estratégia nos arrosta diariamente, não sendo o campo do Direito alheio a este movimento. A naturalização dos efeitos das imagens mostradas opera como se fosse algo dado, perfeitamente adequado, sem que seja perceptível, entretanto, o que se esconde por detrás da mensagem, no discurso latente. Isto porque não há neutralidade capaz de fazer crer na pasteurização da Imagem. Elas sempre dizem, num diálogo com o outro e o Outro, enfim, há um para além da mera “mostração” da Imagem que precisa ser apontado. Por isto é necessário as decifrar e interpretar, não para descobrir uma verdade latente, pois seria incorrer em pura “Filosofia da Consciência”, tão bem denunciada por Lenio Streck, mas para compreender-se um pouco mais dos mecanismos operacionais/instrumentais que podem ser utilizados pelo poder, muitas vezes, para manipular e colonizar o sentido (consciente ou inconscientemente).

A pretensa oposição entre Imagem e texto apresenta-se equivocada, justamente porque há uma complementaridade entre estes registros, enfim, uma relação incessante entre os significantes e as imagens mentais e/ou reais que proporcionam em face dos concernidos. Há uma “circulariedade” significante entre Imagem e texto operada na dimensão única da linguagem, desprovida de metalinguagem redendora. Nesta seara não há fórmulas prontas, nem mesmo possibilidade de se realizar, nos limites deste escrito, digressões maiores. A ideia é a de lançar miradas sobre esta questão, na perspectiva de que possa ser debatida e ressignificada, sempre depois. Só depois. Talvez na linha de uma “Hermenêutica Jurídica de Imagens”. A abordagem aqui pretende desvelar, pois, os modos de produção de sentido através da “mostração” da Súmula como Imagem e não como significante textual. Está vinculada diretamente à compreensão de sujeito, dado que é produzida, debatida, significada e reconhecida entre sujeitos capazes de um debate intersubjetivo. Por isto é possível falar de imagens.

A Imagem provoca a indicação de limites bem mais cercados do que os significantes encadeados em discursos demonstradores da fundamentação justamente por conferir a sensação de preenchimento rápido – e Imaginário – da cadeia de significantes. Apresenta-se como um enunciado catalisador e de consumo fácil. A Súmula traz consigo uma estratégia gregária de repetição para consolidação de um sentido, já-dado como correto e verdadeiro. Funciona muito mais eficazmente do que a reiteração de julgados, longos votos, profusão de ementas, tornando mais fácil a aquisição do sentido fixado. Além disso, nos termos do modelo brasileiro, deixa de lado toda a discussão preliminar (os argumentos discutidos) ao se restringir a uma proposição (negativa ou positiva) de como se decidir, no futuro.

A sensação de um enunciado Sumular editado pelo Supremo Tribunal Federal (ou outro Tribunal) dá a falsa impressão de se tratar de uma mera proposição neutra, decorrente de um processo de atribuição de sentido efetuado pelos “interpretes autorizados”, capaz, de por si, ressignificar o sentido do texto, mas com um plus: seu caráter definitivo. Talvez seja um retorno, em nome da “segurança jurídica” das relações sociais, à “interpretação verdadeira substancial”, palavra do Enunciador. Amém. Talvez possa ser o sintoma de como o jurídico é manipulado por outros campos, especialmente “Economia” e “Publicidade”, na obtenção de assentimentos não consentidos em sentidos definitivos por força de uma violência discursiva. Eis a função da Súmula: Imagem apresentada como fixa, estável e definitiva.

A nova categoria de sujeitos ditos “operadores jurídicos de imagens” se regozija com estas simplificações de sentido, basicamente por dois motivos: a) retira a responsabilidade política da decisão; b) facilita a vida, proporcionando mais tempo para “Gozar” de seus polpudos subsídios (os maiores da República). Antônio Gramsci apontou que a cooptação dos intelectuais pelo “Sistema Hegemônico” foi uma das estratégias de poder utilizadas para domesticar o pensamento crítico. A atualidade desta categoria se manifesta na maneira pela qual as decisões no âmbito do Poder Judiciário brasileiro se apresentam. O cotejo do Documento n. 319 do BID, aliado a frase de Milton Friedman de que o Direito é por demais importante para ficar nas mãos dos juristas bem demonstra a pretensão de pensamento único, “Neoliberal”, em que o Poder Judiciário é metaforizado como uma “Grande Orquestra”, a saber, por um “maestro” (STF), com músicos espalhados nos diversos “instrumentos”. Estes músicos, ainda que arregimentados, eventualmente, pela capacidade técnica e de reflexão, ficam obrigados a tocar conforme indicado pelo “maestro”, sob pena de exclusão da “Orquestra Única”. Não há outra para concorrer; ela é a portadora da palavra: Diz a “Verdade”. Ainda que alguns “músicos” pretendam uma nota acima ou abaixo da imposta, “não lhe dão ouvidos”, porque o diálogo é prejudicado pelo critério antecedente e a aparente “despolitização” da “música”. O slogam é: toque como mandamos ou se retire.

A “Orquestra do Poder Judiciário” ainda está em formação e a harmonia pretendida pelos “donos do poder” foi se adaptando por Emendas Constitucionais e Reformas Legislativas. Primeiro, claro, a (in)eficiência de um Poder paquidérmico, caro, oneroso, devolvido a sua grande missão: garantir a “autonomia dos contratos” e “a propriedade privada”, em nome da “confiabilidade do país no mercado internacional”. Para tanto foram articuladas diversas técnicas: a) “Súmula Vinculante”: por ela o “maestro” (STF) pode impor, definitivamente, a nota a ser tocada, retificando a interpretação mediante uma simples “Reclamação”, com possibilidade de responsabilização do “músico-juiz” faltoso; b) “Reformas Legislativas” para alcançar eficiência: i) abreviação do julgamento, mesmo sem o estabelecimento do contraditório (julgamento liminar pelo mérito); ii) Relativização da coisa julgada inconstitucional, a qual quebra com a ficção em que se estabelece a Jurisdição: a “coisa julgada”, bem sabia Carnelutti. A ficção maior do sistema, a “coisa julgada”, virou, também, artigo “totalflex”. Há uma reflexibilidade no ar...

Isso contracena com o quadro de “músicos-juízes” formados por, pelo menos, dois corpos distintos. O primeiro de velhos músicos na sua maioria acostumados e, desde antes, cooptados pelo poder, sem qualquer capacidade crítica e que ocupam os “Tribunais da Orquestra”. Talvez os “ceguinhos” e/ou “nefelibatas” de Lyra Filho Os segundos, mais jovens, bem demonstrou Werneck Vianna, fruto de uma “pedagogia bancária” (Paulo Freire), sem fundamentação filosófica adequada, alienados da dimensão humana e somente capazes de decorar milhões de regras jurídicas. Logo, incapazes, na sua maioria, de qualquer “resistência constitucional”, até porque formados na cultura “manualesca”, bem criticada por Lenio Streck. A ambos grupos, todavia, devem-se acrescentar dois fatores: a) a sedução cooptativa de um subsídio polpudo (o maior da República). Imaginariamente aderidos na “tropa de elite” possuem condições financeiras atuais de consumir. Curtir a vida de maneira diversa de antes da fixação do subsídio. Viajam, compram, estão preocupados em consumir. Aceitam facilmente o convite para adentrar neste mercado de ilusões, ficando, pois, na mais ampla ausência de “gravidade”, bem demonstrou Charles Melman. Os novos carros do mercado, a nova coleção da estação ocupa o lugar de algo que pode importar, “consumindo”, por assim dizer, o sujeito do enunciado. Torna-se uma ”juiz-vai-com-as-outras”, despejando imagens sumulares confortavelmente. Pensar e resistir para que? Quer gozar; b) Este poder gozar, entretanto, cobra um preço: a alienação da capacidade crítica e uma obscena pretensão de eficiência, velocidade, quantidade, com pouca qualidade, na melhor linha da “Análise Econômica do Direito” (Posner). O sintoma desta situação pode se mostrar na aderência sem precedentes aos precedentes, numa americanização da “Orquestra Judiciária brasileira”. Cabe apontar que o poder gozar exige, cada vez mais, números de julgamentos, “apresentações sinfônicas perfeitas”, conforme a Imagem Sumular mostrada na partitura, sem limites. Bulimia, stress, AVC, baixa autoestima, adições, dentre outras saídas, quando não budismo, hinduísmo, seitas, acabam se instalando, como tentativa de preenchimento..., já que o vazio é constitutivo.

Nesse contexto, parece complicado falar em “não” desde dentro da “Orquestra”. Porque assim proceder pode significar a impossibilidade de se gozar na “esfera privada”, mediante a mais-valia cobrada na “esfera pública”, tornando-se quase que o “músico solista”, incapaz de fazer frente à “Orquestra Total”. Talvez reste um lugar na “praça pública”, no “hospício” ou na “Academia”, mas não no corpo da “Instituição” (Legendre). Como uma “Orquestra” paralela é impossível, quem sabe, então, seja necessário sabotar a “Orquestra Total”, assumindo-se, com Gramsci, a condição de “Intelectual Orgânico”. A questão é a de saber até que ponto se pode pedir isto aos magistrados brasileiros? Quem sabe a este reclamo o magistrado, efetivamente, diga “não”.

Nesse quadro há uma “despolitização” da decisão mediante a apresentação de receitas hermenêuticas convertidas em Imagens Normativas (Súmulas). O sentido previamente dado é mostrado na melhor forma de “como fazer”. Permite uma metáfora com as “sopas já prontas”. Basta abrir o pacote sumular e misturar água. Está pronto. Pode-se colocar “sal” a gosto, mas a “sopa” é a mesma. Enfim, pode-se incrementar a “sopa” decisão com excertos doutrinários e ou jurisprudenciais, sem que ela saia do “paladar fixado pelo fabricante”. Esta é uma das manifestações da “Hermenêutica do Conforto”.

O resultado é a produção de “imagens sumulares” – associações mentais previamente colonizadas – vertidas em enunciados normativos, como se lei fossem. A Súmula representa o desvelamento efetuado pelo “Monastério dos Sábios” do sentido oculto, daí o efeito cativante, do enigma da hermenêutica, demitindo a responsabilidade do julgamento. É uma “Imagem” fabricada sob a fachada da “Verdade”, ao preço da Democracia. Aparentemente aproxima-se da perfeição e provoca, assim, o efeito deslumbre. O enunciado sumular traz consigo a mensagem implícita da antecipação de sentido. Confere a sensação de “trabalho hermenêutico já realizado”, pronto para o consumo. Romper com o sentido “mostrado” é mais complexo porque transparece uma linguagem continua, ao revés da descontinuidade do texto escrito.

A Súmula assume a função de reconstrução ‘legítima’ da norma jurídica interpretada, pretensamente de maneira definitiva, proporcionando a sensação de regozijo. A condição de interprete da Imagem-Texto passa a ser a de espectador do que é mostrado. O contexto em que o enunciado é produzido – nos Tribunais Superiores – aplaca a necessidade hermenêutica, coloniza a compreensão, apresentando-se como a “solução fácil”, do “conforto”. A Imagem mostrada e acolhida na condição da “Verdade” ocupa o lugar da “realidade”. No cúmulo, há sua banalização. Gera uma confusão entre registros complementares – Imagem/Texto –, fazendo com que prepondere mais facilmente o Imaginário, canteiro das ilusões, bem sabem os psicanalistas.

A manipulação da Imagem Sumular reside na maneira de sintetizar e simular o estabelecimento de um “devido processo legal”, pelo qual as pretensões de validade pudessem ser expostas, debatidas e construídas. A resposta está previamente dada e, em nome da redução dos custos do Poder Judiciário, da “Segurança Jurídica”, da “Eficiência”, o julgamento é instantâneo (pré-julgado), como se verifica, v.g., na reforma recente do Código de Processo Civil. A Súmula simula um devido processo legal. A pretensão do consumidor de sentidos resta manipulada pela construção de uma pretensa segurança que contracena com o “narcisismo” dos “atores jurídicos”, ainda mais quando o sistema de recompensas das respectivas carreiras (magistrados, por exemplo) trabalha com o critério de “ótimo” de decisões confirmadas. A sedução, pois, é a pedra de toque ideológica. Recobra-se o velho adágio de “que não se deve interpretar no claro”, sendo a “luz ofuscante” concedida pela Súmula. É uma técnica de persuasão que conta, por um lado, com a estipulação do lugar da “Verdade jurídica” e, por outro, com a subserviência alienada dos atores jurídicos. Em resumo: uma singela Súmula vale mais do que mil acórdãos. Sabe-se, também, que uma das funções da Imagem é a pedagógica. Por ela o sentido pretendido é mais facilmente transmitido, sem grande esforço, com maior “conforto”.

4. Concluir para Resistir (Constitucionalmente)

Não resta muita dúvida de que este modelo de fabricação de sentidos atende a interesses de outra ordem, silenciados no discurso manifesto da “Reforma do Poder Judiciário”. Encontra, não raro, acolhimento naqueles se jogam nas “modas jurídicas da estação”. Muitos de boa-fé, reconheça-se. Por isso além de o denunciar, o trabalho pretende ir um pouco mais longe e apontar caminhos de “Resistência Constitucional”. A questão é que mesmo “como se Imagem fosse” o enunciado não consegue dar conta do sentido, isto é, há um resto pelo qual o significante pode ser deslizado. Acreditar piamente na “intenção dos membros do STF” seria reiterar os equívocos de uma interpretação subjetivista. Emitida, a Súmula passa a ser Imagem-Texto. Pode ser compreendida e resultar numa norma diversa da cercada pelo enunciado sumular (Franco Cordero, Eros Grau, Miranda Coutinho e Lenio Streck).

A Súmula acrescenta um atributo de “Verdade” relativo ao referente interpretado (norma jurídica), fixando o sentido correto. A heterogeneidade do texto é aterrada em nome da uniformidade da Imagem. O grande giro proporcionado pela modificação da compreensão da “Súmula como se Imagem fosse” e não como texto escrito é a da aceitação social mais tranquila de algo pronto e acabado, naturalizado. Longe de se fazer incidir um processo de compreensão – também necessário na Imagem –, propicia a manipulação antecipada do sentido. Aí é que se pode fazer incidir a crítica.

Para deslocar o sentido serão necessárias imaginação e habilidade para permutar significantes, em princípio, colados no sentido mostrado pela Imagem Sumular. Talvez uma das estratégias seja buscar o que não foi dito, ou seja, silenciado, no texto. O silêncio da Súmula pode ser explorado para a partir dele se ressignificar, produzindo a norma. Na ausência pode-se buscar uma presença. Daí que os contextos de produção da Imagem e o de utilização podem ser cambiados pelo “ator jurídico”, fazendo o sentido migrar (bricolagem de significantes). Nenhuma mensagem é imune a esta variação de sentido.

Uma das possibilidades de resistência é acolher a Imagem Sumular e a mirar como se fosse um “Holograma”, isto é, composta por dimensões, podendo-se lançar mão do controle de constitucionalidade (concentrado e difuso – principalmente este último) para aplicar a “nulidade parcial sem redução do texto” e “interpretação conforme a Constituição” como mecanismos de resistência. O “Holograma” promove a possibilidade de uma interpretação flutuante que aproveita a ausência de referentes contextuais do sentido mostrado pela Súmula para fazer o sentido migrar, como mostrou Roland Barthes.

Pensando em termos heidegerianos a “pré-noção” é balizada no “quadro” Sumular, reduzindo o “horizonte hermenêutico” a uma simples aderência à Imagem. Pretende retirar o caráter circular da “hermenêutica filosófica”, sem êxito. Ainda que possa ser assim apresentada, propicia o restabelecimento do “círculo hermenêutico” e, portanto, as formas de resistência interna. Modificar a estrutura do contexto parece ser um caminho para resistir, descontextualizando a proposição, em tese, abarcadora de todas as hipóteses da prática jurídica. De certa forma implica em “não dar ouvidos” à posição padrão, pagando-se um preço caro por não se consumir as imagens mostradas como redentoras.

A trama discursiva da decisão judicial encontra na Súmula o significante necessário para obliterar qualquer outra discussão e tornar mais fácil, eficiente e rápida, uma decisão que demandaria a análise fundamentada de pretensões de validade. O verbete Sumular, por suas características, aterra a discussão democrática antecedente, sendo, portanto, uma “embalagem de presente” da construção de sentido, tomada como ele próprio. Isto porque sabe-se que a Imagem nunca é a coisa... Daí a cegueira de uma aproximação rápida, como se faz... Então é que os fundamentos da decisão acabam sendo banalizados em nome de uma redefinição semântica da própria norma já-dada. O verbete Sumular acaba sendo o catalisador de todas as discussões, tornando seu conteúdo a “falsa” “obra prima perfeita” do que se podia discutir, na pretensão de se colocar um ponto final hermenêutico. Enfim, limita-se o campo associativo retirando-se os significantes que poderiam dar um resultado diverso; o “quadro” de Kelsen é apresentado como definitivo pela Imagem Sumular. Daí é que Lenio Streck está com a razão ao afirmar que há um desvelamento que proporciona um novo começo...


Alexandre Morais da Rosa. Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Trabalho apresentado em Florianópolis (SC), por oportunidade do Encontro “Cainã” de Direito Constitucional, em fevereiro de 2007. E-mail: alexandremoraisdarosa@gmail.com Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com / Facebook aqui. .


Imagem Ilustrativa do Post: ADN_9611 // Foto de: Iam Iuu // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/136056808@N05/23121929436/in/photolist-dji34d-BjHVMa-AH2phF-AEGwnR-BeeWT9-Bhtv31-9W5pKf-BecW4N-Bgy1RF-AEJagt-2ot5v1-APnxpN-4nUAUA-8XUa8p-JsiERd-f9dR26-euCDWF-2ot5ww-BjHWGg-S5eEi-Bhpnkf-rAdvqm-AH2TCP-AH3Znn-5WkqB4-AGYGNt-joS5A-26CZGW-BhsCsd-Bguait-f9t2Kw-BjE1mD-fHatf8-aDC8zY-APkUu7-AEJxXa-pEDXWV-dvT2JH-gpzgBa-APqQKy-f9t27d-4sdEjQ-BeboBb-AGY2Et-4VzeBT-4uvaaG-2ot5tm-5aW5MZ-APq49d-APm3mj/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.  

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