Cinema: Anatomia de um crime

15/03/2016

Por Luiz Ferri de Barros - 15/03/2016

 

Baseado em fatos ocorridos numa pequena cidade do centro-oeste americano, o filme mostra o julgamento de um caso de assassinato, em que o réu, um tenente do exército, confessa o crime, porém alega tê-lo cometido sob um “impulso irresistível”, insano, afirmando que a vítima, o dono de uma hospedaria, havia estuprado sua mulher, uma jovem insinuante e vulgar. O promotor, de outro lado, acusa-o de homicídio premeditado, motivado por ciúme, rejeitando a alegação de estupro. 

Com esse eixo narrativo bastante simples, cabe entender por que Anatomia de um Crime, de 1959, é considerado um dos maiores filmes de tribunal de todos os tempos e também um dos grandes clássicos da história do cinema.

Do ponto de vista exclusivamente cinematográfico, o sucesso de Anatomia de um Crime já se explicaria pela grande projeção, à época do seu lançamento, do diretor Otto Preminger e a excelência do elenco, que contou com o já consagrado James Stewart além de outros astros em ascensão, entre eles George Scott.

A trilha sonora jazzística de Duke Ellington é inovadora e instigante, encaixando-se perfeitamente ao roteiro. Também fizeram sucesso, marcando época, os recursos gráficos da abertura do filme e dos cartazes de divulgação, produzidos por Saul Bass, o mesmo designer revolucionário dos efeitos de Vertigo (Um corpo que cai), filme de Alfred Hitchcok de 1958.

Afora os aspectos relacionados a Hollywood, no entanto, fatos e personalidades do mundo jurídico são fundamentais para compreender as singularidades desse filme.

O roteiro é baseado num best seller de 1957, escrito por Robert Traver, pseudônimo de John D. Voelker, juiz da Suprema Corte de Michigan, inspirado num caso de 1952 em que Voelker atuou como advogado.

Convenhamos que a situação não é corriqueira, mais ainda porque o magistrado acompanhou a produção do filme junto ao lado de Preminger, inclusive contracenando com o diretor no trailer de divulgação, o que assegura que a obra ficcional é realista e verossímil em relação às práticas judiciais da época numa corte do interior de Michigan.

Prova disto é a competente argumentação tanto do promotor quanto do advogado, bem como a forma marcante, porém calculada, com que esses personagens exageram suas próprias personalidades, teatralmente, para causar efeito sobre o júri, conforme já observaram os críticos de cinema.

Outro detalhe extra-hollywoodiano é a presença de ninguém menos que Joseph Welsh no papel de juiz. Welsh, na vida real, foi o advogado que desmoralizou publicamente o senador Joseph McCarthy, pondo fim à tenebrosa caça às bruxas nos Estados Unidos dos anos 1950.

Em sua cruzada anticomunista, o poderoso e temido senador, em retaliação à recusa de favorecimento a um protegido político, acusara o exército de negligência à segurança nacional devido a infiltrações esquerdistas. O escritório de Welsh foi contratado pela corporação para defendê-la na investigação do Senado.

Na audiência decisiva, televisada em rede nacional pela ABC, em admirável exercício de retórica, Welsh leva McCarthy a perder o senso do limite e a compostura, vingativamente acusando um jovem advogado de Harvard, do escritório de Welsh, de pertencer a uma organização comunista. 

Com poucas palavras Welsh fulminou publicamente o senador, interrompendo-o, não deixando que voltasse à carga, recusando-se a continuar discutindo o assunto e conduzindo o presidente da audiência a seguir para o próximo ponto da pauta.

Foram essas as solenes e decisivas palavras de Welsh, que passaram à história dos Estados Unidos e decretaram o fim do macarthismo em 1954: “Until this moment, Senator, I think I never really gauged your cruelty or your recklessness. [...] Have you no sense of decency, sir? At long last, have you left no sense of decency?” (Creio que até este momento eu ainda não havia realmente avaliado sua crueldade e leviandade, senador. [...] O senhor não tem nenhum senso de decência? Depois de tudo e tanto, não lhe sobrou nenhum senso de decência?”).

Em Anatomia de um Crime, Joseph Welsh interpreta o papel de um juiz firme, porém sereno e bonacheirão. Perguntado por que aceitara atuar no cinema, consta que o velho advogado teria respondido: “Bem, era a única chance de um dia eu ser juiz...”.

 


Originalmente publicado na Revista da OAB / CAASP Nº 7. Ano 2. São Paulo, Outubro de 2013.

 


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Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.                                        

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br 


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

 

 

 

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