Cidadania e Crime

14/06/2015

Por Geraldo Prado* - 14/06/2015

Um sentimento difuso de insegurança parece ter-se transformado no elo entre todas as classes e grupos sociais, nas grandes cidades do mundo inteiro. Certamente não é diferente no Brasil. À toda evidência não faltam motivos para as pessoas se sentirem angustiadas e intimidadas. Aos fatos sociais locais e regionais, vinculados à má distribuição de renda, reduzida mobilidade social, corrupção e estímulo franco e intensivo ao consumo de bens que não estão ao alcance da maioria da população, somam-se outros de larga escala. A abrangência perturbadora do medo em razão da guerra no Oriente, cujos fundamentos são incompreensíveis para a maior parte das populações, exprime essa dura sensação de que ninguém está seguro e a salvo em lugar algum.

É preciso, todavia, compreender o que há de não inexorável neste quadro para que, diante da clareza do diagnóstico, sejam adotadas as medidas de cunho social e individual necessárias ao controle da situação. Portanto, em uma hora terrivelmente tensa, na qual não faltam cenas de atentado ao Poder Judiciário, em São Paulo, e à sociedade, no Rio de Janeiro, o “sangue frio”, o equilíbrio e o bom senso hão de servir como atitude prévia à análise e tratamento daquilo que envolve a delinquência, especialmente no que se refere aos limites de intervenção legal de natureza penal.

O primeiro ponto a ser destacado está ligado ao caráter histórico da violência que aflige a população das grandes cidades brasileiras. O processo de expansão desordenada destes centros populacionais registra crimes históricos praticados contra amplos setores das camadas populares. Desde o fi m do século XIX, as grandes cidades brasileiras cresceram graças ao fluxo de pessoas pobres, atraídas pelas burocracias da então Capital da República (Rio de Janeiro) e pelo processo de industrialização que transformou São Paulo em centro da economia do país. Naturalmente, segmento expressivo destes grupos populares terminou ficando à margem da atividade produtiva, relegado territorialmente à periferia das metrópoles. Os rígidos e hierarquizados padrões da sociedade brasileira, a prática do privado locupletar-se do público e a ausência de um projeto de inclusão social que protegesse estes setores desfavorecidos acabou, ironicamente, produzindo os guetos onde agora parte da criminalidade violenta refugia-se.

Esta realidade, confirmada pela dificuldade de acesso do Poder Público a determinadas áreas, dentro das cidades, acaba por infelicidade confirmando no imaginário da classe média aquilo que as elites durante muito tempo procuraram fazer crer: o vínculo entre pobreza e criminalidade. O ambiente de intolerância, cujo exemplo em proporção macro não edifica, projeta-se no discurso da maioria dos governantes, legisladores e juízes por meio da alegação do desgaste das explicações socioeconômicas do delito. É necessário endurecer no combate à criminalidade! Leis mais rigorosas e juízes implacáveis são o signo da nova redenção! Tolerância Zero, esta é a tática contra o crime!

O que há de imperdoável neste discurso pode ser percebido em duas distintas dimensões. A primeira delas está ligada ao sistema de penas. Para os que não conhecem a história do direito penal, no Brasil, é preciso alertar que desde a Independência nosso direito penal formal sempre foi muito rigoroso. As penas cruéis do passado (de morte, açoites e outras) deram lugar a um dos sistemas penitenciários mais desumanos de que se tem notícia. Gostando ou não, este modelo revelou-se permeável à corrupção e fonte de delinquência e organização da criminalidade, além de não conseguir evitar mortes em seu interior. O sistema penal informal, que teve seu tempo de glória durante o último regime autoritário (64-85), semeou os grupos de extermínio que ainda atuam nas periferias. A segunda dimensão sensível guarda relação com a natureza dos crimes mais graves cometidos na atualidade e a situação das populações das favelas e bairros populares. Em parte, vinculados ao tráfico de drogas, os delitos que mais impressionam têm nítida coloração econômica e social. Arregimentando jovens pobres das antigas áreas esquecidas, esta espécie de criminalidade aprisiona os jovens de classe média que consomem drogas e prende também extensa parcela da população pobre das áreas periféricas, maltratadas pelos criminosos e estigmatizadas pelo restante da sociedade.

As duras penas dos crimes – que ainda neste momento pretende-se ver aumentadas – e o longo encarceramento de criminosos pobres não têm modificado o grau de insegurança da população em geral. As técnicas de combate à criminalidade via redução das garantias constitucionais estão afetando, principalmente, as vítimas mais diretas da criminalidade violenta, neste caso os moradores das favelas, que perdem direito à inviolabilidade do domicílio, ao argumento de que os barracos onde (sobre) vivem são refúgio de criminosos e estão fora da tutela da Constituição. É natural que estes moradores reajam com temor, desconfiança e ódio às ações policiais. Neste clima de intolerância recíproca nenhuma medida concreta é capaz de restituir (ou instituir) um nível de convivência relativamente harmonioso.

O desarme dos espíritos, fundamental para resgatar o sentido comunitário e denunciar o caráter arbitrário das ações criminosas, passa de início por reprimir a tentação de empregar violência para combater a violência. Isso não significa entregar a grupos armados de delinquentes o controle das áreas urbanas. A presença de uma polícia confiável, visível, eficiente e honesta é imprescindível neste momento. Não é, todavia, suficiente. A ruptura imediata do processo de concentração de riquezas, com a adoção de políticas públicas que de fato priorizem a população pobre e estimulem o sentimento de integração social, tanto nos que deixarão de ganhar como nos que passarão a receber, representa a única saída viável para a crise social brasileira. Investir socialmente significa investir em moradias, em educação apta às exigências atuais do mercado de trabalho, favorecimento da escola pública via sistema de cotas e consideração pelos múltiplos papéis sociais que, em seu conjunto, conformam a sociedade brasileira.

Defender que no Brasil reina a impunidade é fraudar a realidade da repressão penal aos segmentos mais pobres, embora signifique reconhecer esta realidade quando se trata da convivência igualmente histórica com a corrupção praticada por criminosos que integram as elites. Sem pretensão de ser o dono da verdade, especulo que o caminho para a superação da crise passa por tudo que ficou registrado linhas atrás e que, em suma, pode ser definido como estratégia da inteligência, da razão e da admissão das responsabilidades históricas, de um lado, contra a força do outro.


* Este artigo foi redigido em 2003 e publicado originalmente no livro Em torno da Jurisdição, de Geraldo Prado. A obra em questão é uma coletânea de textos, votos e artigos produzidos pelo autor entre 1995 e 2010.

PRADO, Geraldo. Em torno da Jurisdição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 59-61


Sem título-1 , Geraldo Prado é Professor da UFRJ e Consultor Jurídico.    


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