Brasil em Crise: todos brincando com a bola da democracia. Histórias de amor ao poder do tabuleiro (anti)democrático – Por Guilherme Moreira Pires

07/05/2016

"El enemigo del rey eres tú, aborrece las prisiones [...] las fronteras son falsas y la ley una ficción de la que se aprovechan los poderosos."  

Christian Ferrer

O melhor e mais sofisticado discurso legitimante ainda é um discurso legitimante. No fundo, de melhor não tem nada, embora avoque para si a ideia (e posição demarcada) de resistência, até aparentando tal coisa aos olhos dos que estão centrados nos confinados espaços estudados, e limitadíssimos movimentos vigiados, vez ou outra antecipados, porém enclausurados no tabuleiro do front que vislumbram; fragmentos insuficientes pensados como totalidade do mundo (e como totalidade das posições e movimentações possíveis, avaliadas dentro de um jogo estático, cujas bases não tremem, mesmo ante as montanhas de mortos de esperançosos jogadores e apoiadores, fiéis escravizados, obedientes à escravidão das autoridades e sistemas edificados).

Controles, castigos e hierarquias, seguem sequestrando, (pro)ferindo, (des)caracterizando, ditando, regendo, dilacerando mundos e carnes, humilhando pessoas, colonizando linguagens, confiscando possibilidades libertárias, roubando de tantas vidas a felicidade que poderiam contemplar não fossem tão violentadas e suprimidas, tão adestradas e condicionadas, tão feridas e pisoteadas; o poder hierárquico é um inimigo da liberdade, das vidas e potências livres, do amor livre, da imaginação não punitiva.

Outros mundos são possíveis, mas em muito são condicionados ao aprendizado de novas linguagens, desestabilizadoras dessas reentrantes legitimações pautadas na crença à autoridade, no controle austero, na "ordem" (e nas ordens), na segurança de um conteúdo arbitrário, elementos fatalmente energizadores do Estado, do poder punitivo, de tristes anseios punitivos, sobretudo da forma gosmificada e mórbida de se fazer política a partir de caricaturas e esperanças energizadoras dos jogos, conferidoras de uma sobrevida aos mesmos.

Cultura repressiva.

Mundos melancólicos, sem anarquia.

A esquerda estruturada nos legalismos passa a curiosamente invocar o jogo dos amigos do poder para ganhar a partida, esquecendo-se de que, mesmo com as regras ao seu favor, respira e vive longínqua daquele poder (embora desejos não lhes faltem para capturá-lo, confiscá-lo, conjurá-lo, exercê-lo, manuseá-lo para massacrar os alvejados que desejam, e a reivindicação das criminalizações pelos movimentos sociais estão aí, entre tantas outras coisas, como constatação dessa faceta mórbida).

Deveriam saber disso, dessas distâncias, discrepâncias, influxos, contradições e limitações, afinal, teoricamente se insurgiam contra isso (até que o baile de caricaturas lhes despiu de todo o arcabouço teórico, e perspectivas libertárias de oposição ao poder instituidor de jogos, nas suas atuais formatações). Repetição ad nauseam (de todos os lados) sobre a palavra cuspida pelos jogadores ser política mas não jurídica, alguns até dizendo que a Constituição Federal é um documento jurídico, mas não político. Uma tristeza interminável. Compraram um sistema insolvente recheado de mentiras e cortes artificiais, que juram fazer sentido, e que regem suas estruturas de pensamento.

Banhados nesse caldo estruturante, borbulhando complacência para com o jogo, tornaram-se contratualistas sem graça (e obviamente sem potência libertária), positivistas sem imaginação, cumpridores de ordens, fiscais dos jogos que repudiavam. Converteram-se em expectadores dos movimentos dos tentáculos institucionais, e enquanto uns sonham estarem combatendo o estado de exceção interpretativo presente nessas arenas, segurando um código em uma mão e uma bengala quebrada em outra, a palavra do poder segue engolindo o poder das palavras que, acreditam eles, podem nos proteger das arbitrariedades do poder.

Como se as palavras segurassem o poder. Os mesmos que chamam o Direito Penal de contenção do poder punitivo, embora aqui, além do apego ao dever-ser falsificado (distinto do dever-ser programacional efetivamente perseguido pelas mecânicas e operacionalidades), tenha uma questão própria da linguagem jurídica que mereça ser comentada, de forma que, ao valer-se repetidamente de "é" como dever-ser ("os direitos são"), tem-se a incorporação por muitos de falsas promessas, naturalizadas como descrição de realidade, num rasteiro neokantismo, ou, ainda, como promessa de um dever-ser que mereceria (e que pode dentro do jogo) ser perseguido, todavia, um dever-ser falso, que não é efetivamente perseguido e nem pode nas configurações do jogo, por própria impossibilidade programacional, e total inadequação para com as operacionalidades reais. Coroam um dever-ser falso (à luz do referencial sistêmico) como ideia fundante delineadora de uma luta que poderia ser ganha, quando a ideia fundante programacional é outra, bem distinta da promessa constitucional.

Para que o tabuleiro permaneça preservado, os jogadores precisam acreditar na mentira, e sempre há quem saiba da mentira, assim se preserva a brincadeira (Warat).

Adestrados a focarem-se nas peças, muitos de fato torcem para que o pêndulo artificial de forças oscile de forma que as palavras contenham o poder, prevalecendo sobre um conteúdo já vitorioso quando da edificação e estruturação do jogo, em suas formatações e regras banais, sob a alcunha de Estado (Democrático) de Direito. Todos são os defensores da democracia, ó, que lindo. Todos vibram com a morte de algum jogador, pisam felizes em cima de seu cadáver, mas não suportam a morte do jogo, sempre remendado com legitimações, costurados pelo medo de cenários piores (no fundo, medo de incertezas, da própria complexidade derivada das fissuras aos sistemas e combos de verdades instituídos e sedimentados, complexidade que deixaria de ser suprimida com a morte do jogo).

Ouço uma covardia reativa (Nietzsche), que molda seus próprios grilhões, obedecendo e alimentando autoridades e poderes que pervertem (Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Proudhon), numa agonizante complacência de rebanho para com as violências várias perpetradas, evocando temores de mundos piores para justificar mundos já terríveis. Alguém precisa quebrar as correntes. Mas o alguém também precisa parar de esperar um alguém, que nunca vem, ou que talvez até venha, mas atrasado, quem sabe nos últimos suspiros de tantas vidas perdidas, que não viveram: esperaram, temeram, justificaram. Treinaram e projetaram tanto, justificaram e legitimaram tanto, eternizaram tanto o amanhã que não veio, sem movimentações libertárias no presente, aguardando complacentemente as arbitrariedades passarem, esperando suicídio do poder (Suicide Criminology), que seus respectivos tempos se foram, vidas (es)tragadas e (dest)ruídas na normalidade reativa dos escravos da violência institucionalizada, entre tantos abismos e correntes, de prata ou de ouro, que brilham no outro, reluzem nos poços, e não desejadas por poucos. Encarceradores seguem encarcerados (Camus) se não abolirem o castigo (e o carcereiro) de si (Hulsman, Passetti).

Retornando: o Estado não fora estruturado para perseguir o dever-ser falso atrelado à promessa constitucional, e o descumprimento diário, a discrepância cotidiana para com tais promessas derivadas da promessa constitucional (regente do Estado de Direito), essas coisas parecem ser interpretadas como erros, desvios reformáveis, recolocáveis nos trilhos corretos do jogo, como se não fosse sobre isso a edificação de tais construções e arquétipos.

Muitos "em favor da democracia", de todos os lados, inclusive fascistas.

Poucos pela morte do jogo, fazendo pouco caso do confinado poço em que estamos.

Frise-se: o melhor e mais sofisticado discurso legitimante ainda é um discurso legitimante. E o fascínio para com os jogos de autoridades, jogos dos amigos do poder, não trará vitórias libertárias meramente pelo apoio aos jogos, pela ocupação de espaços demarcada pelo ideal de "protagonismo" no jogo, pelo empoderamento dentro do jogo, pela amizade ao jogo (novos amigos do jogo, buscando ocupar os espaços dos tão criticados amigos do poder, que dizem repudiar); especialmente quando tudo isso é costurado pelo temor de um cenário pior, similar ao coringa da guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes) tão rasteiramente invocada, sempre justificando e eternizando realidades e racionalidades melancólicas.

Realidades insanas. Tragédias sedimentadas. Mundos descaracterizados.

Muitos juristas e guerreiros pela democracia.

Sem anarquia.


Notas e Referências

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Anarquismos: potências, dissidências e resistências. Complexidades para além das leis e da Prisão-Prédio. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/abolicionismos-e-anarquismos-potencias-dissidencias-e-resistencias-complexidades-para-alem-das-leis-e-da-prisao-predio-por-guilherme-moreira-pires/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 30/03/2016.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos entre disputas, controles, capturas e cruzadas: militantes ou militares? Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/abolicionismos-entre-disputas-controles-capturas-e-cruzadas/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 30/03/2016.

PIRES, Guilherme Moreira. Nossa complacência de rebanho e o potencial adormecido. Existe solução? Disponível em: http://emporiododireito.com.br/nossa-complacencia-de-rebanho-e-o-potencial-adormecido-existe-solucao-por-guilherme-moreira-pires/ISSN 2446-7405. Acesso em: 30/03/2016.

PIRES, Guilherme Moreira. Símbolos, linguagem e poder: análise da coesão forjada a partir de uma perspectiva anarquista (e abolicionista). Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/simbolos-linguagem-e-poder-analise-da-coesao-forjada-a-partir-de-uma-perspectiva-anarquista-e-abolicionista-por-guilherme-moreira-pires/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 30/03/2016.

WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista  pelos  lugares  do  abandono  do sentido  e  da  reconstrução  da  subjetividade.  Florianópolis: Fundação Boietux, 2004.

WARAT, Luis Alberto. Manifestos para uma Ecologia do Desejo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1990.

Palestra: Mesa: Violência e autoritarismo do Estado – I Seminário de Pesquisa Social: Brasil em Crise – Universidade Federal do Espírito Santo, 2014. https://www.youtube.com/watch?v=GbXT5AFmeiA&feature=youtu.be

PIRES, Guilherme Moreira. Os amigos do Poder: ensaios sobre o Estado e o Delito a partir da Filosofia da Linguagem. Buenos Aires: Libertaria, 2014.


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