Aplicar a lei ou ouvir as ruas? Dilema na Suprema Corte brasileira

15/11/2019

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

No último dia 17, iniciou-se a discussão no Supremo Tribunal Federal quanto à possibilidade de cumprimento de pena antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, a qual foi motivada pelas ADC’s 43, 44 e 54, buscando interpretação do artigo 283 do Código de Processo Penal conforme o artigo 5º, LVII, da Carta Maior.

Na ocasião das sustentações orais proferidas, tanto por entidades estatais, quanto por amicus curiae, viu-se que discutir se trânsito em julgado significa trânsito em julgado, traz revolta àqueles que se dedicam na labuta diária à defesa pelos direitos fundamentais de todo cidadão que se vê diante do Estado-acusador.

A Suprema Corte assistiu ali, verdadeiros defensores do Estado Democrático de Direito, defensores esses, que apontaram incansavelmente os riscos de se aplicar uma pseudo-hermeneutica sobre o termo “trânsito em julgado”, defensores esses, que escancararam a verdade por trás do sistema penitenciário brasileiro, revelando que há uma indissociabilidade do tema com os princípios da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência, portanto, do Estado de Direito em si.

Não poderia ser diferente, afinal, é no mínimo sintomático que essa discussão esteja posta sob dúvida. Se há possibilidade de se discutir a antecipação da pena antes do trânsito em julgado, é sinal de que o Estado de Direito vai mal por aqui.

Isso porque, como guardião da Constituição de 88, o STF deveria se prestar à corrente contra majoritária, afinal, a democracia, como diz um dos autores da ADC 44, Lênio Streck, é remédio contra as maiorias. 

Claro, em se tratando de direitos fundamentais, estamos também tratando da democracia, que, como se eternizou em Churchill, é a pior forma de governo, com exceção a todas as demais.

Hoje estamos à discutir antecipação da pena, amanhã, podemos discutir direito à livre manifestação, à propriedade privada, o que foi levantado na tribuna durante sustentação oral. Eis o destino que se constrói ao admitir flexibilizar (para não dizer, aniquilar) direitos e garantias fundamentais.

Infelizmente, defender a Constituição saiu de moda. Nos votos dos ministros, até então proferidos, percebemos que até ali, os ditos guardiões da Constituição, se vêm incorporados por figuras heroicas, que a cada palavra raivosa pronunciada, rasgam a CF, e, dão voz às ruas.

Juizes-herois não decidem para a justiça, e sim, para torcedores, para uma plateia apaixonada que aplaude e clama por punição. São essas figuras que põe em xeque o valor do Estado de Direito.

O voto proferido pelo ministro Luis Fux, representa sobremaneira o que um juiz não deve fazer ao fundamentar sua decisão. A raiva que dali emergia, as palavras de rancor exaladas, dão vazão ao anseio popular.

Quando uma decisão judicial é fundamentada com base em pura ânsia punitiva, sem qualquer referência legítima ao texto da lei maior, há que se temer pelo Estado de Direito.

Beccaria expõe com clareza a tarefa simples e complexa do juiz:

O juiz deve fazer o silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não a lei; a consequência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro.(BECCARIA, 1764)

Em um trecho, Beccaria nos ensina que a resposta está na lei. Leia-se, lei, e não rua, e não a consciência particular do julgador, e não a política, e não às massas.

Há que se ter apego à Constituição. Onde a letra da lei é clara, não há que se fazer interpretação. O exercício hermenêutico não é demandando para entender que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Lado outro, há de se reconhecer que ainda há esperança que o texto do artigo 283 do CPP seja tido como em perfeita sintonia com o artigo 5º, LVII da Constituição.

É como bem expressou a ministra Rosa Weber, na ocasião de seu voto na última quarta-feira (23), quando reconheceu que “o artigo 283 guarda rigidez com os parâmetros da Constituição Federal, em suas regras e fundamentos”, e ainda concluiu “o anseio popular punitivo é legítimo, mas não pode ser ouvido às custas de garantias individuais garantidas pela Constituição Federal.”

Quando se está no “lado de cá” da acusação, ou seja, quando o jus puniendi não nos atinge, é fácil querer que o cumprimento de pena se dê o quanto antes, o problema, porém, é quando a espada da justiça está em nossa mira.

Eis a questão. A mira do sistema penal brasileiro é muito delimitada, atingindo apenas aqueles que não tem influência para se ver livre de acusações vagas e infundadas, ou ao menos, terem suas garantias processais/democráticas íntegras durante todo o percurso processual.

O respeito às normas democráticas favorece à toda comunidade. Serve para um, servirá para todos, incluindo juízes, os quais são servos das lei. Garantias não são privilégios, não são sinônimo de impunidade, são sim, resultado de lutas pelo reconhecimento da dignidade da pessoa humana, e assim deve ser encarada no desfecho do julgamento em comento.

É como bem colocou o conselho editorial do Estado de São Paulo, no último domingo (27) “é crucial, mais do que nunca, que as instituições não se dobrem às truculências dos que se mostram incapazes de se subordinar à ordem democrática.”

Aplicar o texto constitucional é dar voz ao próprio Estado de Direito. Na balança da justiça, a voz das ruas não tem vez, sob pena de estarmos sempre submissos às paixões momentâneas, as quais são incertas, instáveis e perigosas, enquanto a Constituição é caminho seguro para a estabilidade e avanço da sociedade rumo ao fortalecimento do Estado de Direito.

 

Notas e Referências: 

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas; tradução Paulo M. Oliveira, prefácio Evaristo de Moraes, 2ª ed. Edipro, 2005.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Supremo Tribunal Federal / Brazil's Supreme Court // Foto de: Ricαrdo // Sem alterações

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