ABDPro #48 - O ALCANCE DO CONTRADITÓRIO E DA COOPERAÇÃO NOS PROCESSOS DE DIMENSÕES COLETIVAS  

29/08/2018

  Coluna ABDPro

  1. Introdução

O texto resulta da conferência proferida nas XII Jornadas Brasileiras de Direito Processual, promovidas pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Junior[1] e, tem por objetivo discutir o alcance dos princípios do contraditório e da cooperação, considerados dois grandes pilares dos modelos processuais contemporâneos, nos processos de dimensões coletivas. Para atingir o objetivo, optou-se em traçar algumas notas sobre o princípio do contraditório e da cooperação, no intuito de se identificar seus pontos sensíveis. Discute-se, em seguida, o modelo processual em perspectiva democrática e o fortalecimento dos processos de abrangência coletiva, permitindo-se extrair as premissas para a discussão do tema proposto.

 2. Notas sobre o contraditório e a cooperação

Os modelos processuais nos Estados Contemporâneos colocam o princípio do contraditório em patamar de destaque, redimensionando o papel das partes e do órgão jurisdicional, fortalecendo o diálogo. Previsto no art. 5º, LV, CF, bem como nos artigos 9º e 10 do CPC, o princípio do contraditório como corolário do princípio político de participação democrática pressupunha a mera ciência do processo e dos atos processuais, com vistas a dar às partes a oportunidade de manifestação e defesa, configurada pela adequada e tempestiva notificação do ajuizamento da causa e de todos os atos processuais, por meio de comunicações eficientes, possibilitando a impugnação do que se mostrar contrário aos seus interesses, de forma a não se decidir qualquer questão sem que os interessados possam se manifestar.

A concepção de contraditório foi transformada pelos influxos das bases teóricas advindas do constitucionalismo, deixando de orientar-se pela mera ciência dos litigantes acerca dos atos processuais de modo a garantir a manifestação e a possibilidade de se manifestar sobre o que foi apresentado pela parte contrária, passando a impor o dever de permitir-se a participação eficaz dos interessados na construção da decisão judicial, ou seja, o contraditório passa a significar também a efetiva participação dos destinatários no desenvolvimento e resultado do processo, se configurando como um efetivo poder de influência.[2]

Corolário do contraditório, mas com ele não se confundindo, a cooperação, agora expressamente prevista no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no art. 6º, do CPC/15, impõe aos sujeitos processuais uma série de obrigações que conduzem ao encontro dos objetivos inerentes ao Estado Democrático de Direito, impondo um modelo de processo organizado a partir da articulação das atividades do Estado e do jurisdicionado.

Para além dos deveres impostos às partes no âmbito deste novo modelo de processo que está se construindo, como o dever de esclarecimento, no sentido de redigir com clareza suas postulações; dever de lealdade, impondo que os litigantes pautem sua atuação pela boa-fé conforme estabelecido no art. 5º do CPC, consubstanciado, entre  outros, no dever de não formular pretensões, nem alegar defesa destituídas de fundamento, dever de veracidade, dever de não produzir provas nem praticar atos inúteis ou desnecessários e de cumprir com exatidão os provimentos judiciais e não criar embaraços à sua efetivação (art. 77, CPC), sob pena de incorrerem nas penalidades cominadas ao litigante de má-fé, nos termos dos artigos 79 a 81 do CPC; e dever de proteção, impedindo que a parte, a partir de sua atuação dentro do processo possa causar danos injustos, como nas hipóteses dos artigos 77, VI do CPC, 520, I do CPC e 776 do CPC, a cooperação impõe, também, uma série de deveres inerentes ao órgão jurisdicional, os quais, para o tema aqui tratado, possui maior relevância.

Dentre as obrigações impostas ao juiz comumente indicadas pela a doutrina [3]destacam-se: o dever de prevenção, no sentido de impor ao órgão jurisdicional a obrigação de alertar as partes acerca de eventuais vícios, defeitos e incorreções a serem sanadas, a fim de possibilitar o adequado exame do mérito; dever de esclarecimento, de modo a assegurar que as partes estejam cientes dos riscos inerentes à lide, requerendo o esclarecimento sobre os pontos sobre os quais recaia dúvida; dever de auxílio, consistente no fornecimento de subsídios que permitam às partes superar eventuais obstáculos ao amplo acesso à justiça; e dever de diálogo, dever anexo que possui estreita relação com o princípio do contraditório, sobretudo considerando-se sua acepção moderna acima esposada, porquanto impõe ao juiz o dever de consulta dos interessados, permitindo que influenciem de forma eficaz a elaboração do conteúdo de sua decisão, impedindo, inclusive, nas matérias que podem ser suscitadas de ofício, que o juiz decida sem a prévia oitiva das partes (art. 10, CPC).

 3. Visão democrática do processo

No atual estágio de evolução do direito, destaca-se a centralidade adquirida pelas constituições a partir do segundo pós-guerra e, no Brasil, com a promulgação da Constituição de 1988 e do consequente fenômeno da constitucionalização do direito, da qual, evidentemente, não se exclui o direito processual, impondo ao Judiciário durante a tramitação e julgamento dos processos, conferir a maior efetividade dos direitos fundamentais, seja pela aplicação direta das normais constitucionais, seja por meio da interpretação das normais infraconstitucionais à luz da Constituição, de modo a dar concretude a esta.  

Para o tema aqui tratado, ou seja, o alcance do contraditório e da cooperação nos processos de dimensões coletivas, cumpre destacar a potencial colisão de direitos fundamentais, nomeadamente a celeridade e eficiência com o contraditório e a ampla defesa e a consequente necessidade de ampliação de mecanismos de participação. Com efeito, em um sistema que privilegia a conformidade constitucional, na busca pela efetivação do princípio da duração razoável dos processos, não se pode descurar de direitos de igual hierarquia, devendo proceder-se a uma necessária concordância prática, de modo a evitar o sacrifício desproporcional de uns em relação a outros, o que conduz, no bojo de um Estado Constitucional e a partir de uma visão democrática de processo, à valorização de técnicas processuais aptas a permitir ampla participação na solução dos conflitos, de modo a concretizar os direitos e garantias fundamentais de caráter processual, instituindo o que Dierle Nunes denominou de processualismo constitucional democrático.[4]

 4. O fortalecimento dos processos de abrangência coletiva[5]

A crise de efetividade do processo judicial e a descrença na capacidade de o Poder Judiciário resolver de maneira tempestiva e isonômica os conflitos submetidos à sua apreciação impuseram ao legislador brasileiro a adoção de mecanismos destinados a reduzir o número de litígios e conferir celeridade na sua tramitação.

Com efeito, tem-se observado nas últimas décadas no Brasil uma intensa transformação da atividade jurisdicional, notadamente a partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 45, responsável pela denominada Reforma do Poder Judiciário e da consequente edição de várias leis destinadas a permitir que a proposta do constituinte derivado fosse efetivada, sobretudo no que tange a inserção do princípio da razoável duração dos processos, contexto no qual destaca-se a criação da súmula vinculante (artigo 103-A da CRFB), do processamento de causas piloto (artigos 543-B e 543-C do CPC) e a sentença liminar de improcedência (artigo 285-A do CPC).

O Código de Processo Civil atual, encampando as aludidas alterações legislativas, promoveu significativas alterações no sistema processual brasileiro, com objetivo de proporcionar celeridade e produtividade da função jurisdicional e reduzir a crescente quantidade de processos em tramitação nos tribunais brasileiros, com esteio, principalmente, na padronização de decisões. Assim, além da manutenção dos recursos excepcionais repetitivos inseridos pelas Leis 11.418/06 e 11.672/08 no CPC/73 e da sentença liminar de improcedência, o Código de Processo Civil de 2015 insere o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, objetivando conferir uniformidade na aplicação do direito, através de um discurso de justificação pautado pela necessidade de tornar efetiva a tutela de interesses veiculados em processos seriais e reduzindo o número de processos individuais com causas comuns.   [6]

 5. Necessário fortalecimento do contraditório e da cooperação

A efetiva observância do contraditório e da cooperação ganha especial relevo no sistema de precedentes implantado pelo CPC/2015, porquanto a amplitude do alcance destes julgados impõe que sejam revestidos da maior legitimidade possível a partir da discussão prévia da solução do litígio e da oportunidade conferida às partes de influenciar eficazmente no provimento final, ou seja, a colaboração das partes e dos demais interessados com o juízo encontra sua razão de ser num plano mais amplo, na medida em que não importa apenas na individualização da norma aplicável ao caso concreto, mas a construção comparticipativa de uma tese jurídica potencialmente aplicável a milhares de demandas análogas.

Assim, dado o caráter dialético adquirido pelo processo no Estado Democrático e Constitucional de Direito, orientado pela efetivação dos direitos e deveres inerentes à comunidade de trabalho instituída por um modelo de processo conformado pela cooperação[7], mostra-se de vital importância a identificação dos contornos da  participação dos interessados e da sociedade civil durante a tramitação e julgamento das causas no âmbito do microssistema de resolução de processos repetitivos, dentro do qual há efetiva possibilidade de a vinculação da tese firmada pelo tribunal atingir processos cujas partes não tiveram a possibilidade de influenciar eficazmente na decisão.

 

5.1. Audiências públicas e amicus curiae como instrumentos adotados para esse fim

No âmbito dos instrumentos de resolução de demandas repetitivas, destaca-se a concretização do contraditório e da cooperação por meio da participação direta dos interessados, a designação de audiências públicas e a intervenção de amici curie, como mecanismos aptos a promoverem uma mitigação da potencial ilegitimidade democrática do instituto, na medida em que representam institutos aptos a ampliarem o diálogo judicial, seja pela participação direta dos cidadãos e da sociedade civil em geral no julgamento da causa, como no primeiro caso, seja permitindo o ingresso de eventuais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia de requerer a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da questão de direito controvertida, como no segundo.

Entretanto, não basta a admissão da intervenção de amicus curiae ou a designação de audiências públicas sem que os argumentos e subsídios trazidos à consideração do Judiciário e os debates empreendidos influenciem efetivamente no julgamento da causa. Não basta, portanto, a mera previsão legal que permita a intervenção de interessados em processos que potencializem causas repetitivas. Deve-se permitir que possam apresentar adequadamente os elementos que possuem para construir a decisão judicial de forma comparticipativa, de modo a permitir que a tese jurídica seja produto da convergência das atividades dos sujeitos processuais e da sociedade civil, de modo a conferir legitimidade democrática às decisões judiciais.

 6. Considerações finais

Com base no exposto, observa-se que a crise de efetividade do processo judicial e a descrença na capacidade de o Poder Judiciário resolver de maneira tempestiva e isonômica os conflitos submetidos à sua apreciação impuseram ao legislador brasileiro a adoção de mecanismos destinados a reduzir o número de litígios e conferir celeridade na sua tramitação a partir, principalmente do fortalecimento dos mecanismos de resolução de causas seriais.

Nessa ambiência, destaca-se a potencial colisão de direitos fundamentais, nomeadamente a celeridade e eficiência com o contraditório e a ampla defesa, bem como o risco de se privilegiar os primeiros em detrimento dos últimos, importando na consequente necessidade de ampliação de mecanismos de participação do jurisdicionado, sendo certo que a participação de interessados na forma, principalmente, de amicus curiae e a designação de audiências públicas consubstanciam instrumentos de valorização do contraditório e da cooperação e que têm o condão de conduzir o órgão jurisdicional a uma solução mais justa e com maior legitimidade para processos que envolvem causas de repercussão coletiva, determinando que se olhe com olhar vigilante a forma de tratamento dada pelos tribunais a esses instrumentos.

 

Notas e Referências

ALMEIDA, Marcelo Pereira de. Precedentes Judiciais - Análise crítica dos métodos empregados no Brasil para a solução de demandas de massa. Curitiba: Juruá Editora, 2014. v. 1.

ALMEIDA, Marcelo Pereira de. A jurisdição na perspectiva publicista e privatista no contexto da solução de demandas individuais de massa - Notas sobre o incidente de resolução e demandas repetitivas previsto no PLS166/10. Revista eletrônica de direito processual , v. 7, p. 158-175, 2011.

CUNHA, Leonardo Carneiro da.. O princípio do contraditório e a cooperação no processo. Revista Brasileira de Direito Processual (Impresso), v. 79, p. 147-159, 2012.

DIDIER JR, Fredie. Princípio da Cooperação. In: Normas Fundamentais. FREIRE, Alexandre; DIDIER JR, Fredie; NUNES, Dierle. Salvador: Juspodium. 2016.

GOUVEIA, Lúcio Grassi de. Cognição processual cível: atividade dialética e cooperação intersubjetiva na busca da verdade real. Revista dialética de Direito Processual. São Paulo: Dialética. 2003.

MITIDIERO, D. F. . Colaboração no Processo Civil - Pressupostos Sociais, Lógicos e Éticos, 3. ed.. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. v. 1. 204p . 

NUNES, Dierle José Coelho . Processo Jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. 1. ed. Curitiba: Juruá Editora, 2008. v. 1. 286p .

SILVA, Paula Costa e. Acto e processo: O dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra. 2003.

SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2 ed. Lisboa: Lex. 1997.

[1] A mesa de debates se realizou no painel 40, reservado ao tema “Nova faceta do contraditório e da colaboração, sendo composta pelos Professores Victor Barbosa Dutra, moderador, Evie Malafaia e Welder Queiroz.

[2] CUNHA, Leonardo Carneiro da.. O princípio do contraditório e a cooperação no processo. Revista Brasileira de Direito Processual (Impresso) , v. 79, p. 147-159, 2012.

[3] Ver, por todos: MITIDIERO, D. F. . Colaboração no Processo Civil - Pressupostos Sociais, Lógicos e Éticos, 3. ed.. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. v. 1. 204p .

[4] NUNES, Dierle José Coelho . Processo Jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. 1. ed. Curitiba: Juruá Editora, 2008. v. 1. 286p .

[5] Para uma análise crítica aprofundada to tema, conferir: ALMEIDA, Marcelo Pereira de. Precedentes Judiciais - Análise crítica dos métodos empregados no Brasil para a solução de demandas de massa. 1. ed. Curitiba: Juruá Editora, 2014. v. 1.

[6] ALMEIDA, Marcelo Pereira de . A jurisdição na perspectiva publicista e privatista no contexto da solução de demandas individuais de massa - Notas sobre o incidente de resolução e demandas repetitivas previsto no PLS166/10. Revista eletrônica de direito processual , v. 7, p. 158-175, 2011.

[7] Neste sentido: "O princípio da cooperação destina-se, enfim, a transformar o processo civil numa “comunidade de trabalho”, potencializando o franco diálogo entre todos os sujeitos processuais, a fim de se alcançar a solução mais adequada e justa ao caso concreto. O processo, diante disso, deve ser entendido como uma “comunidade de comunicação”, desenvolvendo-se por um diálogo pelo qual se permite uma discussão a respeito de todos os aspectos de fato e de direito considerados relevantes para a decisão da causa". (CUNHA, Leonardo Carneiro da.. O princípio do contraditório e a cooperação no processo. Revista Brasileira de Direito Processual (Impresso) , v. 79, p. 147-159, 2012).

 

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