A responsabilidade civil do Estado por danos ambientais – Por Mauricio Mota

30/11/2016

A Constituição da República fixou um amplo sistema de responsabilização (art. 225, caput) pelo qual as pessoas jurídicas de direito público, ou seja, a União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias e fundações respondem pelos danos causados ao meio ambiente. Há que se distinguir, entretanto, se o Estado responde sempre de forma objetiva e sobre quais são os pressupostos do dano ambiental para fins de responsabilização do Estado.

Para que seja possível a responsabilização do Estado por dano ambiental é necessário que este dano seja efetivo, quantificável economicamente, individualizado em relação a uma pessoa ou grupo de pessoas, antijurídico, imputável ao Estado e provado.

No dano ambiental o que é atingido é a ordem das coisas, a partição do meio ambiente ecologicamente equilibrada como um bem de uso comum do povo, para as presentes e futuras gerações. No dano ambiental a fruição indivisível, indisponível e inapropriável individualmente foi atingida, com uma diminuição do patrimônio comum, o patrimônio ambiental. O ato é injusto, viola o direito de todos à igual fruição e o quantum da indenização será estimado pelo decréscimo efetivo do patrimônio comum, desta e das futuras gerações.

Portanto, para que se tenha um dano efetivo e não hipotético resultante da ação do Estado é necessário que este seja injusto, lese efetivamente o direito do particular, represente uma diminuição na fruição de um bem lícito e corresponda a uma perda comprovada. No dano ambiental é o de que este deve ser relevante para se determinar a reparação.

Cass R. Sunstein, em seu livro intitulado “Laws of fear: beyond the precautionary principle” esclarece que as pessoas, consideradas individualmente ou coletivamente, aproximam-se de assuntos ligados ao risco ambiental de um modo que sistematicamente falha na maximização da sua utilidade ou da assunção de riscos. Baseando-se na psicologia social e na economia comportamental ("behaviorista"), alguns estudos catalogaram uma ordem vasta de limitações cognitivas e defeitos que distorcem as percepções populares de risco. Assim, os indivíduos têm uma disposição a superestimar de modo considerável a magnitude de riscos altamente evocativos (por exemplo, de um acidente com energia nuclear) e ignorar riscos menos evocativos (como de desenvolver câncer pela ingestão de creme de amendoim). A influência da disponibilidade heurística pode distorcer o julgamento público, partindo do ponto que infortúnios calamitosos, ainda que isolados, apresentam muito maior probabilidade de chamar a atenção da memória pública que a miríade de exemplos nos quais tecnologias arriscadas ou substâncias químicas geram benefícios para a sociedade[1].

Deste modo, a presunção hominis, baseada nas regras de experiência, tradicional na responsabilidade civil, de pouca serventia se apresenta na determinação do que seja um dano ambiental. A quantificação disto exige uma normatização técnica e discricionária que, passo a passo, por determinação, estabeleça os padrões de tolerabilidade além dos quais se situa a responsabilidade. Como o fez o Protocolo de Kioto e a lei de Bases do Ambiente portuguesa:

Artigo 41.º

Responsabilidade objectiva

1 - Existe obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, sempre que o agente tenha causado danos significativos no ambiente, em virtude de uma acção especialmente perigosa, muito embora com respeito do normativo aplicável.

2 - O quantitativo de indemnização a fixar por danos causados no ambiente será estabelecido em legislação complementar.

Nessas hipóteses de mero descumprimento das normas de emissão como suficientes para responsabilização do infrator os autores irão falar em utilização de presunção de danos[2] por violação do equilíbrio garantido pelo art. 225 da Constituição Federal, o que se afasta em muito da noção corrente de responsabilidade civil.

No dano ambiental estamos tratando de danos materiais, apenas não aferíveis com precisão porque custosos os equipamentos técnicos necessários à sua plena quantificação. O raciocínio não pode ser o mesmo da presunção de danos no dano moral porque neste o dano não é aferível, apenas podemos estimar a sua dor e sofrimento pelas regras da experiência. No dano ambiental não, trata-se de dano material, porém difuso, cuja aferição é extremamente difícil e custosa, porém não impossível. A opção pela estimativa de danos (presunção) e não pela certeza se dá pela transcendência do bem tutelado (ambiente). Estamos, assim, além do domínio da responsabilidade civil. Não cabe a responsabilização do Estado se dano ambiental não é relevante, seja quanto à qualidade ambiental (dano ecológico puro) ou os direitos patrimoniais ambientais dos indivíduos[3].

Também há que se relativizar a quantificação de danos ambientais na responsabilidade do Estado porque não se deve perder de vista que aqueles que em definitivo suportarão em conjunto a dita carga são os usuários do serviço de que se trata, que verão incrementados seus tributos. Desta forma, deve-se produzir a divisão dos danos de forma proporcional ao uso ou ao benefício que se obtenha da atividade estatal[4].

O princípio da igualdade de todos na distribuição dos encargos públicos como fundamento da responsabilidade do Estado por atos lícitos foi formulado, em seus contornos clássicos, por Léon Duguit. Estabelecia ele que se a realização de uma atividade coletiva ocasiona um prejuízo a um grupo ou a um indivíduo, o patrimônio afetado ao fim coletivo é o que deve suportar definitivamente a carga do prejuízo pois, se esta coletividade obtém o benefício que resulta da atividade, é justo que suporte o risco que acarreta aos indivíduos:

Se vê con esto aparecer una nueva concepción a la cual se va a referir todo el Derecho moderno de la responsabilidad del Estado. Si la realización de una actividad colectiva, esto es, de una actividad colectiva, de una actividad perseverante con un fin colectivo, ocasiona un prejuicio a un grupo o a un individuo, el patrimonio afectado al fiin colectivo es el que debe soportar definitivamente la carga del prejuicio. […]

La actividad del Estado se pone en movimiento por voluntades individuales. Pero es esencialmente colectiva por su fin, que es la organización y la gestión de los servicios públicos. Resulta de esto que si la organización y el funcionamiento de un servicio ocasionan a un grupo o a un individuo cargas excepcionales, un prejuicio particular, el patrimonio afectado a este servicio público debe soportar la reparación del prejuicio, con la condición, sin embargo, de que haya una relación de causa o efecto entre la organización o el funcionamiento del servicio y el perjuicio[5] 

Assim, firma Duguit a ideia de que tudo que se faça por causa do interesse coletivo deva ser equitativamente repartido por toda a sociedade. Deste princípio resulta que na responsabilidade civil do poder público por ato lícito, mister que o dano, além de jurídico e anormal, seja também específico. O dano provocado pelo Estado para ser indenizável deve ser referenciável ao patrimônio do lesado e deve exceder as cargas comuns da vida social, as cargas que todos os cidadãos devem suportar.

Tal fato comprova-se, por exemplo, na Apelação Cível nº 212.608-5/4-00 julgada pela nona Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo. Versava o caso sobre pedido de indenização por danos materiais e morais em face do Estado de São Paulo pela erradicação de laranjal com 70.494 pés de laranja ao invés de aplicar outros métodos de combate ao cancro cítrico. Concluiu esse Tribunal que o suposto dano econômico versado neste processo não pode ser tachado de específico. Isso porque a medida de polícia administrativa, consistente na eliminação e queima das plantas cítricas contaminadas e das suspeitas de contaminação pelo cancro, é prevista, abstrata e genericamente, nas normas jurídicas de defesa sanitária vegetal e da campanha nacional de erradicação do cancro cítrico. De forma que todos os agricultores e indivíduos titulares de pomares que se encontrem em tais situações serão atingidos pela referida providência estatal que objetiva proteger o interesse público de sanidade das plantações e frutas cítricas do território paulista e nacional.

Assim, todos os detentores de pomares infectados estariam suportando a mesma medida de erradicação das plantas que sofreu o autor. As normas de defesa sanitária vegetal são abstratas e genéricas, sendo aplicáveis aos que se enquadrem nas situações tipificadas; todos aqueles que são titulares de pomares de cancro cítrico num percentual superior a 0,5% por talhão, destarte, terão todas as plantas destruídas e queimadas por ação da Administração pública, em virtude da existência dos preceitos legais a serem cumpridos por esta[6].

Dessa maneira, nos casos de atos lícitos da Administração pública, só há que se falar em responsabilidade do Estado se a lesão em causa for específica, rompendo a igualdade de todos na distribuição dos encargos públicos.

A reparação do dano ambiental também apresenta problemas no que concerne ao nexo de causalidade. Via de regra, só existe obrigação de reparar danos quando demonstrado expressamente o nexo de causalidade entre a conduta de um agente e o dano ocorrido.

Naquilo que pertine ao direito ambiental a necessariedade da causa se apresenta confusa pela própria natureza do objeto. Há uma distensão da causalidade: um alongamento do tempo entre a superveniência do fato gerador e o do dano, que deve levar em conta o tempo das gerações futuras. Depois a multiplicidade dos efeitos que é característica do meio ambiente. Uma pequena causa (a erradicação de uma espécie de joaninha[7]) pode desencadear grandes efeitos, através de reações em cadeia amplificadoras no ecossistema.

Por vezes, a identificação dos autores do dano é difícil por serem múltiplos os degradadores e, serem causas concomitantes – todas responsáveis pelo evento danoso – sem que se logre determinar qual dentre essas causas foi decisiva para o dano.

O meio ambiente também implica em uma causalidade circular[8] ou em espiral na qual há inseparabilidade e interdependência entre fatores e danos.  Há por fim o problema da identificação da causa na causalidade meramente provável nas matérias nas quais predomina a incerteza científica e na causalidade insuspeita aplicável aos riscos do desenvolvimento.

Todas essas características tornam a teoria da responsabilidade civil inadequada para responder aos problemas colocados pela reparação do meio ambiente. Senão vejamos.

A legislação brasileira previu a responsabilidade civil ambiental como uma responsabilidade objetiva, como estabelece o artigo 225, § 3º da CF, que recepcionou o art. 14 § 1º da Lei n.º6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente:

Art. 14. § 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente de existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal por danos causados ao meio ambiente.

Duas são as teorias acerca dos limites e possibilidades de assunção de riscos por aqueles que degradam o meio ambiente. A primeira a teoria do risco integral, mediante a qual todo e qualquer risco conexo ao empreendimento deverá ser integralmente internalizado pelo processo produtivo, devendo o responsável reparar quaisquer danos que tenham conexão com sua atividade e, a segunda, a teoria do risco criado, a qual procura vislumbrar, dentre todos os fatores de risco, apenas aquele que, por apresentar periculosidade, é efetivamente apto a gerar as situações lesivas, para fins de imposição de responsabilidade[9]. Os autores brasileiros como Leme Machado, Sérgio Ferraz, Cavalieri Filho, Milaré, Nery Jr. [10], vem sustentando a aplicabilidade da teoria do risco integral sob diversos fundamentos.

Pela teoria do risco integral, a indenização é devida independentemente de culpa, dessa maneira, não se operam, como causas excludentes de responsabilidade, o caso fortuito, o fato de terceiro e a força maior. Como é exemplo dessa aplicação o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná no caso de responsabilidade pós-consumo de embalagens tipo pet:

“AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DANO AMBIENTAL – LIXO RESULTANTE DE EMBALAGENS PLÁSTICAS TIPO PET (POLIETILENO TEREFTALATO) – EMPRESA ENGARRAFADORA DE REFRIGERANTES - RESPONSABILIDADE OBJETIVA PELA POLUIÇÃO DO MEIO AMBIENTE - ACOLHIMENTO DO PEDIDO - OBRIGAÇÕES DE FAZER - CONDENAÇÃO DA REQUERIDA SOB PENA DE MULTA - INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 225 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, LEI Nº 7347/85, ARTIGOS 1º E 4º DA LEI ESTADUAL Nº 12.943/99, 3º e 14, § 1º DA LEI Nº 6.938/81 – SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. Apelo provido em parte. 1. Se os avanços tecnológicos induzem o crescente emprego de vasilhames de matéria plástica tipo PET (polietileno tereftalato), propiciando que os fabricantes que delas se utilizam aumentem lucros e reduzam custos, não é justo que a responsabilidade pelo crescimento exponencial do volume do lixo resultante seja transferida apenas para o governo ou a população.2. A chamada responsabilidade pós-consumo no caso de produtos de alto poder poluente, como as embalagens plásticas, envolve o fabricante de refrigerantes que delas se utiliza, em ação civil pública, pelos danos ambientais decorrentes. Esta responsabilidade é objetiva nos termos da Lei nº 7347/85, artigos 1º e 4º da Lei Estadual nº 12.943/99, e artigos 3º e 14, § 1º da Lei nº 6.938/81, e implica na sua condenação nas obrigações de fazer, a saber: adoção de providências em relação a destinação final e ambientalmente adequada das embalagens plásticas de seus produtos, e destinação de parte dos seus gastos com publicidade em educação ambiental, sob pena de multa.”[11].

Assim, o Tribunal julgou que, embora não tenha sido o fabricante que descartou as embalagens tipo pet, ele torna-se responsável pela sua destinação final na medida em que expôs a sociedade ao risco de que terceiros venham a fazê-lo. Ou seja, a existência do produto tornou-se um fator de risco e condição do dano ambiental.

A solução preconizada pelo TJPR sob o pretexto da aplicação da responsabilidade objetiva na realidade afasta a própria causalidade direta e imediata do ato que é um dos requisitos da responsabilidade no ordenamento jurídico brasileiro.  Agostinho Alvim assim concebia a necessariedade da causa para a definição do dano direto e imediato:

A escola que melhor explica a teoria do dano direto e imediato é a que se reporta à necessariedade da causa. (...)

Para explicar a teoria do dano direto e imediato nós aceitamos a teoria ou subteoria da necessariedade da causa, que procuraremos explicar, formular e defender, de acordo com as considerações que se seguem.

Suposto certo dano, considera-se causa dele a que lhe é próxima ou remota, mas, com relação a esta última, é mister que ela se ligue ao dano, diretamente.

Ela é causa necessária desse dano, porque a ela ele se filia necessariamente; é causa exclusiva, porque opera por si, dispensadas outras causas.

Assim, é indenizável todo dano que se filia a uma causa, ainda que remota, desde que ela lhe seja causa necessária, por não existir outra que explique o mesmo dano. Quer a lei que o dano seja o efeito direito e imediato da inexecução.

Ora, a análise destes termos mostra, iniludivelmente, que a lei impõe a existência de um liame entre o inadimplemento da obrigação e o dano, de modo que ao inadimplemento se atribua, com exclusividade, a causa do dano[12].

No que concerne à responsabilidade do Estado o dano considera-se causado por este se foi o efeito necessário da omissão da autoridade e não resultante de concausas sucessivas[13].

Portanto, na hipótese em apreço, a causa da poluição, que por si só produziu o resultado, foi o descarte das garrafas pet por parte dos consumidores, rompida a necessariedade da causa anterior (a produção das garrafas). Não há mais necessariedade da causa primeira (a produção de garrafas pet) porque a intervenção de causa superveniente (do consumidor que utiliza-se do conteúdo da embalagem e a descarta no meio ambiente) por si só produziu o resultado (o lixo degradador do meio ambiente).

De particular auxílio para nós nesse desiderato é a lei de responsabilidade ambiental alemã. A Umwelthaftungsgesetz estabelece uma responsabilidade objetiva por danos causados por pessoas ou bens através do meio ambiente (os danos puramente ecológicos não são cobertos) aplicável no caso de instalações poluidoras. Prevê a lei ambiental alemã uma responsabilidade que prescinde de culpa, apenas exigindo, para haver imputação, que os efeitos ambientais gerados sejam causa do dano cujo ressarcimento se pretende. Para determinação dessa causa estipula aquele texto legal uma presunção de causalidade quando uma instalação, de acordo com o caso concreto, for apta a causar o dano em causa. In verbis:

§ 6º - Presunção de causalidade

(1) Se, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, uma instalação for apta a causar o dano em causa, presume-se que o dano foi causado por esta instalação.  […]

(2) o parágrafo (1) não se aplica se a instalação tiver sido corretamente operada. A instalação considera-se corretamente operada se os deveres especiais de funcionamento tiverem sido cumpridos e não tiver havido nenhuma perturbação do funcionamento.

(...)

§ 7º - Afastamento da presunção

(1) Se várias instalações são aptas a causar o dano, não se aplica a presunção, quando outra circunstância, de acordo com a realidade do caso concreto, for adequada a causar o dano. A aptidão para causar o dano num caso concreto afere-se em função do tempo e do lugar em que ocorreu o dano, a natureza do dano, bem como todas as outras circunstâncias que apontam para ou contra a causação do dano.

(2) Se apenas uma instalação for apta a causar o dano, a presunção não se aplica se outra circunstância, tendo em conta a realidade do caso concreto, for apta a causar o dano.

Deste modo a presunção de causalidade apenas atua se a vítima for capaz de demonstrar que a instalação é apta, nas circunstâncias do caso concreto, a causar o dano. Exige-se a aptidão concreta; a aptidão abstrata não é suficiente para fazer atuar a presunção. A presunção de causalidade só atua uma vez convencido o juiz da aptidão para causar o dano daquela instalação, funcionando naqueles moldes, utilizando e libertando aqueles materiais, naquelas condições meteorológicas e naquelas circunstâncias de tempo e lugar[14].

Da análise da lei ambiental alemã podemos assentar a premissa de que a construção de uma teoria da imputação dos danos ambientais passa pela insusceptibilidade de se tomar como causa da imputação uma causalidade naturalística, como a do dano direto e imediato.

A causalidade no direito ambiental deve ser uma causalidade jurídica que atenda a esses requisitos: primeiro, deve ser valorativamente adequado, máxime deve cumprir a finalidade de seleção dos danos a atribuir ao agente, limitando a respectiva responsabilidade; em segundo o critério de imputação deve ser juridicamente operativo, ou seja, deve funcionar como instrumento jurídico útil na identificação do nexo de causalidade no caso concreto[15].

Deve-se partir da ideia de risco, ou seja, da prevenção, de que serão normativamente imputáveis os danos derivados de um risco específico ou aumentado pelo agente. Serão imputados os danos que excederem a confiança, a ideia de risco aceitável pela comunidade. Há que separar os danos que resultam do “risco geral da vida” e os danos derivados de um risco específico ou aumentado pelo agente - susceptíveis de lhe serem imputados[16].

A forma impessoal de confiança de que falava Luhmann[17], condição de desenvolvimento das sociedades pós-modernas, estará tutelada sempre que a confiança não se reduza a outros elementos como o cumprimento da norma (responsabilidade delitual) ou dos deveres laterais de conduta (impostos pela boa-fé) sendo razão auxiliar da obrigação de indenizar, mas sim sendo o elemento constitutivo-causal dos seus efeitos. Deste modo, integrando a confiança o Tatbestand de responsabilidade, a não verificação em concreto de expectativas - ou mesmo o non liquet acerca de sua ocorrência - tem como consequência inexorável a irresponsabilidade do sujeito[18].

Como bem esclarece Ana Perestrelo de Oliveira no que concerne ao dano ambiental:

Nesta linha, devemos considerar que o dano ambiental (seja em sentido amplo ou estrito) é imputável ao agente quando a conduta deste cria ou aumenta um risco não permitido ou previsto na fattispecie legal, sendo o resultado ou evento danoso materialização ou concretização desse risco.

Assim, exige-se, desde logo, a criação ou aumento de um risco sendo certo que esta exigência vale tanto para a responsabilidade civil subjectiva como objectiva, o que, como é bom de ver, implica a precisão acima apontada: criação/aumento de um «risco não permitido» (responsabilidade subjectiva) ou de um «risco previsto na «fattispecie legal» (responsabilidade objectiva).

Note-se que exigir a demonstração da criação/aumento do risco é algo de essencialmente diverso de exigir a demonstração da conditio sine qua non. A conditio não interfere aqui sequer ao nível da base de imputação dos danos ambientais. Bem longe de se exigir a demonstração de uma causalidade naturalística, exige-se - o que é bem menos - a demonstração da criação/aumento do risco[19].

O conceito de risco só pode substituir a causalidade puramente naturalística através de uma apreciação que tenha em conta todas as circunstâncias do caso concreto: a susceptibilidade de, em termos abstratos, determinada instalação provocar a lesão do bem jurídico não é suficiente para se atribuir juridicamente aquele resultado ao agente. Pode, naturalmente, uma instalação em abstrato criar ou aumentar o risco de lesão do bem jurídico e em concreto não o ter criado ou aumentado[20].

No que pertine à responsabilidade do Estado por dano ambiental este só responde se sua omissão concorreu em concreto para criar ou aumentar um risco específico e não os danos que resultam no “risco geral da vida”. Deste modo, nas grandes cidades é comum a instalação de pessoas pobres em áreas públicas, criando os chamados conglomerados habitacionais. As pessoas que aí passam a habitar correm os riscos decorrentes de sua conduta. Ao Estado cabe o dever genérico de cuidar do meio ambiente, em conexão com todos os seus outros deveres, mas não a defraudação da confiança social de ter criado ou aumentado um risco específico. Deste modo, não é passível de responsabilização porque sua omissão não é elemento constitutivo causal dos efeitos daquela situação[21].

Quanto ao pressuposto da prova na responsabilidade ambiental como descrita, o que se exige do tribunal não é acerca da verificação da conditio sine qua non, mas sim sobre a criação/aumento do risco, o que é bem menos[22]. Se exige a convicção sobre a realidade do fato da criação/aumento do risco, rejeitando-se a suficiência de um nexo causal meramente provável ou possível. Para tanto importam nesse âmbito as regras sobre a repartição do ônus da prova. Ao lesado exige-se a prova da criação ou aumento do risco pela instalação; feita a demonstração, o juiz deve presumir (iuris tantum) a materialização do risco.

Isto é, no primeiro passo do juízo de imputação (criação/aumento do risco), não deve inverter-se o ônus da prova — relevam sim, v.g. as regras de probabilidade estatística, etc. Só uma vez convencido o juiz de que a instalação pode ter causado o dano (porque criou/aumentou o risco da sua verificação) é que se justifica a presunção. Ou seja, a presunção é legítima porque tem em conta a dificuldade objetiva de prova da vítima fundamentando-se, em geral, nos princípios de tutela do ambiente (que valem também na responsabilidade ambiental) e, em especial, no risco criado ou aumentado pela instalação[23].

O que se conclui desses posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais, é que a responsabilização do Estado por dano ambiental é complexa e não pode ser deduzida de referências a uma suposta responsabilidade integral, mas exige sim o estudo dos pressupostos dessa responsabilidade, nomeadamente, a efetividade do dano, sua quantificação econômica, sua individualização em relação a uma pessoa ou grupo de pessoas, a antijuridicidade, o nexo de causalidade, a imputação ao Estado e  a repartição do ônus da prova.

A responsabilidade do Estado sob regime de direito público, ademais, é distinta e independente da alcançada pelo particular. Assim, pode ocorrer que o Estado e um particular estejam envolvidos em uma mesma situação danosa ao meio ambiente e, da análise dos pressupostos resulte que o segundo seja responsabilizado e o primeiro não.


Notas e Referências:

[1] SUNSTEIN, Cass R. Laws of fear: beyond the precautionary principle. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

[2] SAMPAIO, Francisco José Marques. Evolução da responsabilidade civil e reparação dos danos ambientais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 271-272.

[3] Estes danos não se confundem, pois o primeiro atinge o bem em sua integridade enquanto bem ambiental, a sua razão de ser ambiental, a sua característica de insubstituível, de essencial, de representativo, de evocativo, o segundo atinge, através do ambiente, o patrimônio de uma pessoa, o conjunto dos seus bens e direitos individuais, mesmo que a ofensa seja moral.

[4] ITURRASPE, Jorge Mosset & HUTCHINSON, Tomás & DONNA, Edgardo Alberto. Daño ambiental. Tomo II. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni Editores, 1999, p. 88.

[5] DUGUIT, Léon. Las transformaciones del Derecho (público y privado). Buenos Aires: Editorial Heliasta, 1975., p. 139-140.

[6] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Indenização — Cancro cítrico — Pomar de 70.494 pés de laranja arrancado devido a determinação da Fundecitrus — Pretendida responsabilidade do Estado de São Paulo — Inexistência — Sentença que julga a ação improcedente — Apelação improvida.  Apelação cível nº 212.608-5/440 –José Bonifácio. Apelante: Wanda Maria Arroyo Lima. Apelada: Fazenda do Estado de São Paulo. Relator: Desembargador Sidnei Beneti. São Paulo, 29 de setembro de 2005. Disponível em www.tj.sp.gov.br. Acesso em 25.07.2016.

[7] O primeiro caso de sucesso de controle biológico clássico foi obtido com a importação da  joaninha Rodolia cardinalis pelos EUA da Austrália, sendo introduzida em 1988 nos pomares de citros da Califórnia para o controle da cochonilha Icerya purchasi. Tal foi o sucesso que em menos de dois anos após a liberação dessa joaninha, o controle dessa praga já havia sido alcançado.

Os seres vivos são sistemas moleculares que existem como organismos na contínua produção de si mesmos. O conceito de autopoiese proposto pelos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela conota isso. [...] Como organismos, os seres vivos existem em interações em um meio que surge com eles no seu fazer e não preexiste ao seu viver.

[9] STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil por dano ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 198.

[10] LEME MACHADO, Paulo Afonso. Direito ambiental brasileiro. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 336; FERRAZ, Sérgio. Responsabilidade Civil por Dano Ecológico, Revista de Direito Público, São Paulo, 1979, v. 49/50, p. 38; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 154; MILARÉ, Edis. Ação Civil Pública. 15 anos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 150 e NERY JR., Nelson. Responsabilidade civil por dano ecológico e a ação civil pública in Justitia 126/168-189. São Paulo, 1984, p. 172.

[11] BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível nº 118.652-1, 8.ª Câmara Civil. Relator: Desembargador Ivan Bortoleto. Data do julgamento: 05/08/2002. Disponível em:  www.tj.pr.gov.br. Acesso em: 08/10/2016.

[12] ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1949, p. 380-381.

[13] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Responsabilidade civil do Estado. Dano decorrente de assalto por quadrilha de que fazia parte preso foragido vários meses antes. (..) Com efeito, o dano decorrente do assalto por uma quadrilha de que participava um dos evadidos da prisão não foi o efeito necessário da omissão da autoridade pública que o acórdão recorrido teve como causa da fuga dele, mas resultou de concausas, como a formação da quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de vinte e um meses após a evasão. Recurso extraordinário conhecido e provido.  Recurso Extraordinário nº 130764/PR. Paraná. Recorrentes: Estado do Paraná e Ministério Público do Estado do Paraná. Recorridos: H. Kaminski e Cia Ltda e outros. Relator: Ministro Moreira Alves. Brasília, 12 de maio de 1992. Publicado no Diário de Justiça de 07-08-1992, p. 11782 e Revista Trimestral de Jurisprudência do STF, vol. 143, I, p. 270.

[14] OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Causalidade e imputação na responsabilidade civil ambiental. Coimbra: Almedina, 2007, p. 35-40.

[15] OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. op. cit.. p. 67-69.

[16] OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. op. cit.. p. 73.

[17] LUHMANN, Niklas. Confianza. Barcelona : Antrophos Editorial, 2005.

[18] FRADA, Manuel Antonio Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2006, p. 355.

[19] OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. op. cit.. p. 75.

[20] OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. op. cit.. p. 78.

[21] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 1ª Turma. Administrativo. Processo civil. Ação civil pública. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário está vinculado a perseguir a atuação do agente público em campo de obediência aos princípios da legalidade, da moralidade, da eficiência, da impessoalidade, da finalidade e, em algumas situações, o controle do mérito. As atividades de realização dos fatos concretos pela administração depende de dotações orçamentárias prévias e do programa de prioridades estabelecidos pelo governante. Não cabe ao Poder Judiciário, portanto, determinar as obras que deve edificar, mesmo que seja para proteger o meio ambiente. Recurso provido. Recurso Especial nº 169.876/SP. Recorrente: Município de São Paulo. Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Ministro José Delgado. Brasília, 16 de junho de 1988. Disponível em www.stj.gov.br. Acesso em 13.08.2016.

[22] OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. op. cit.. p. 89.

[23] OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. op. cit.. p. 95.


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