A responsabilidade civil do Estado legislador na teoria de Léon Duguit – Por Mauricio Mota

22/03/2017

O primeiro autor a romper com o entendimento tradicional acerca da responsabilidade do Estado e a defender a ideia de responsabilidade do Estado legislador é Pierre Marie Nicolas Léon Duguit, que desenvolve uma acerba crítica ao conceito de soberania do Estado.

O mestre bordelês afirma que o conceito clássico de soberania nada mais é do que uma criação dos séculos XVII e XVIII (Bodin, Loyseau, Domat e Lebret) para justificar o novo poder absoluto de se assenhorearam os reis. A noção de soberania no período feudal significava tão-somente o poder de qualquer senhor feudal de poder cuidar de suas próprias questões no âmbito dos seus feudos, sem a dependência de qualquer outro senhor feudal.

Com o fortalecimento do poder real essa ideia de soberania será transmudada no conceito de imperium romano, ou seja, o poder de mando inerente à sua própria qualidade de pessoa. A noção de imperium deriva do dominium individual. Assim como o proprietário tem um direito absoluto sobre a coisa, pode também dispor desta coisa total ou parcialmente, conceder direitos particulares sobre ela, desmembrá-la ou transmiti-la por herança, o rei também tem um direito absoluto sobre seus súditos, pode alienar total ou parcialmente seu imperium, desmembrá-lo e transmiti-lo para depois de sua morte[1].

Esse conceito é reelaborado para servir aos novos desígnios políticos. A soberania passa a ser, nos séculos XVII e XVIII, esse direito de mandar, direito absoluto:

“De este modo, en el siglo XVII y en el XVIII, la soberania es el derecho de mandar, de que es titular el rey. Es un derecho que tiene los mismos caracteres que el derecho de propriedad. El rey es titular de él como de sus derechos patrimoniales. La soberanía es una propriedad, pero una e indivisible, inalienable. Es absoluta como todo derecho de propriedad, salvo ciertas restricciones relacionadas con la naturaleza de las cosas; (...) En fin, esta soberanía del rey se manifiesta sobre todo en la ley, que es la expresión de la voluntad real soberana”[2].

Essa ideia de soberania como absoluta persiste após a eclosão da Revolução, apenas com a substituição do rei pela Nação. Para Duguit, os legisladores revolucionários, vão conservar o arcabouço conceitual da soberania: o rei era uma pessoa, um sujeito de direito, titular do direito de soberania; como ele a Nação será uma pessoa, um sujeito de direito, titular do direito de soberania. A soberania do rei era una, indivisível, inalienável e imprescritível. A soberania nacional terá as mesmas características[3].

Essa concepção absoluta da soberania, como construção artificial para justificar o poder real, deveria desaparecer quando desaparecessem as circunstâncias nas quais esta se produziu. É o que estaria ocorrendo para Duguit nos tempos modernos (idos de 1910) onde essa concepção de soberania estaria em contradição violenta com as transformações sociais e políticas que estavam se realizando. Ele entendia que um sistema jurídico não tem realidade senão na medida em que possa estabelecer e sancionar regras que assegurem a satisfação das necessidades que se impõem ao homem em uma dada sociedade, num dado momento. Ora, um sistema de direito só poderia reunir tais condições de vitalidade se estabelecesse que: 1º os que tem o poder não podem realizar certas coisas; 2º eles devem fazer outras coisas.

A primeira característica de vitalidade do sistema, a restrição do poder do Estado, só pode repousar na liberdade do indivíduo, ou seja, a soberania se encontra limitada pelo direito do indivíduo ou liberdade, e o Estado não pode agir senão para proteger essa liberdade e na medida em que a proteja. A liberdade do indivíduo não pode ser limitada somente se for para preservar a liberdade de todos. Essa limitação só poderia portanto, ser feita pela lei, isto é, uma disposição geral votada pela Nação ou por seus representantes[4].

Essa proteção que a lei dá à individualidade não poderia ser assegurada nesta concepção imperialista de soberania porque, sendo esta absoluta, não pode ser apreciável por nenhuma outra instância de poder:

“En la concepción imperialista era lógico que no pudiera producirse ninguna acción contenciosa contra la ley. Suponía ésta la orden formulada por la voluntad soberana y, a causa de ello, se presumía que expresaba una regla de derecho. No se puede combatir la ley ante un tribunal, porque el tribunal es el encargado de aplicar el Derecho, y la ley es por esencia la misma fuente del Derecho. Además, la soberanía no es susceptible de gradación, y la ley es la manifestación directa de esta soberanía, y, por consecuencia, ninguna autoridad puede ser competente para apreciar su valor”[5].

A segunda caraterística de vitalidade do sistema, a realização de prestações positivas a cargo do Estado, impõe a necessidade de um sistema de direito público que dê um fundamento e uma sanção a esta obrigação positiva. Diante de tal exigência o sistema fundado na noção de soberania padece de impotência irreversível. Esse sistema funciona a contento nas sociedades em que incumbe ao Estado não mais do que o papel tradicional de garantir a regularidade dos serviços de defesa externa, justiça e de polícia. Neste tipo de Estado no qual a atividade dos governantes não tem mais do que este objetivo, a intervenção estatal se produz sob a forma de atos unilaterais, de manifestações do imperium, do poder de mando. No mundo moderno as novas necessidades exigem a prestação pelo Estado de serviços variados de modo que o fundamento do direito público não pode ser mais o conceito de soberania, mas sim o de prestação do serviço público. Ou seja, o Estado não tem somente o direito de mandar mas possui, primordialmente, deveres a cumprir:

“Y sin embargo, en todos esos servicios modernos, que cada día toman mayor extensión: instrucción, asistencia, obras públicas, alumbrado, correos, telégrafos, teléfonos, caminos de hierro etc., hay una intervención del Estado que debe estar sometida al Derecho, regulada y disciplinada por un sistema de Derecho público. Pero este sistema no puede estar fundado en el concepto de soberanía, porque se aplica a actos en los que no se advierta ningún rasgo del poder de mando. Se constituye, pues, forzosamente un nuevo sistema relacionado, por lo demás íntimamente con el anterior, pero fundado en una noción diferente, que se manifiesta en todo, que modela todas las instituiciones modernas del Derecho público y que inspira toda la jurisprudencia tan fecunda, de nuestro Consejo de Estado: tal es la noción de servicio público”[6]

Constrói então Duguit sobre essa noção de serviço público o seu sistema. O fundamento do Direito público não é o direito subjetivo de mando, é a regra de organização e gestão dos serviços públicos. O Direito público é o direito objetivo dos serviços públicos. Assim como o Direito privado deixou de estar fundado no direito subjetivo, na autonomia da pessoa mesma e descansa hoje na noção de uma função social que se impõe a cada indivíduo, o Direito público não se funda no direito subjetivo do Estado, na soberania, mas sim baseia-se na noção de uma função social dos governantes que tem por objeto a organização e o funcionamento dos serviços públicos[7]. É esta função social dos governantes na atualidade que vai determinar a sua subordinação ao direito:

“Los gobernantes están juridicamente obligados a asegurar la organización y el funcionamiento de los servicios públicos. Con este propósito dictan reglas generales las leyes. Este es el fin perseguido por los gobernantes y que les imprime su carácter. Ninguno puede violar esta regla, ni el particular, que no puede usar del servicio sino conforme a la ley, ni los gobernantes, ni sus agentes, que no pueden hacer nada para impedir i funcionamiento del servicio conforme a su ley. De este modo se puede decir que los servicios públicos son instituciones de Derecho objetivo”[8]

Esboçado assim o sistema de Direito Público na concepção de Duguit, vejamos o papel atribuído à Lei (Las transformaciones generales del derecho público - Capítulo III).

Entendia ele que em um sistema de direito fundado na noção de soberania a lei nada mais era do que a manifestação desta soberania. Nas palavras clássicas de Rousseau:

“Quando todo o povo estatui algo para todo o povo, só considera a si mesmo e, caso se estabeleça então uma relação, será entre todo o objeto sob um certo ponto de vista e todo o objeto sob um outro ponto de vista, sem qualquer divisão do todo. Então, a matéria sobre a qual se estatui é geral como a vontade que a estatui. A esse ato dou o nome de lei.

Quando digo que o objeto das leis é sempre geral, por isso entendo que a Lei considera os súditos como corpo e as ações como abstratas, e jamais um homem como indivíduo ou uma ação particular. (...)

Baseando-se nessa ideia, vê-se logo que não se deve mais perguntar a quem cabe fazer as leis, pois são atos da vontade geral, nem se o príncipe está acima das leis, visto que é membro do Estado; ou se a Lei poderá ser injusta, pois ninguém é injusto consigo mesmo, ou como se pode ser livre e estar sujeito às leis, desde que estas não passam de registros de nossas vontades”[9].

Nesse sistema de predomínio da vontade geral, da soberania absoluta, a lei era um mandato do soberano. Como tal, não podia ser injusta; se impunha a todos sem reserva ou restrição. A constitucionalidade mesma da lei não podia ser apreciada por qualquer tribunal e a responsabilidade do Estado legislador não podia colocar-se.

Porém, outra é, no seu entendimento, a idéia de lei na atualidade. Para Duguit a obrigatoriedade e imperatividade da lei deve ter um outro fundamento que não uma metafísica vontade geral. Sua concepção é a de que a regra de conduta social deriva do próprio fato social; não é transcendente, mas sim imanente em relação a esta sociedade. O homem se acha subordinado a esta regra não porque crê num dever superior, mas unicamente porque, de fato, vive em sociedade, e, portanto, se encontra dentro da disciplina social. São exemplos dessas noções imanentes as regras que proíbem o homicídio, a pilhagem, o incêndio, as violências, quaisquer que elas sejam. Tais exemplos são, para Duguit, regras obrigatórias antes mesmo de serem formuladas na lei positiva. A consciência humana percebe facilmente o caráter obrigatório de semelhantes regras e não vê nelas obrigações transcendentes correspondentes a um dever metafísico, mas sim uma necessidade que se impõe a todos os homens que vivem em sociedade.

Com base nesse entendimento se percebe porque a lei positiva tem força obrigatória. Não contém esta, propriamente falando, um mandato do soberano mas obriga porque formula uma regra de direito que é em si mesma obrigatória enquanto regra social. Duguit atribui a estas leis a denominação de normativas e formula diversos exemplos destas:

“El ejemplo más claro es el de las leyes penales, o al menos aquellas que definen las infracciones y las prohíben. Las leyes penales que fijan la pena entrán mas bien en la categoría de leis construtivas, de que hablaremos más adelante. En la legislación civil existen también ciertas disposiciones que son leyes normativas, como, por ejemplo, las que enuncian principios generales como el art. 1382 del Código Civil: ‘Todo hecho del hombre que causa un daño a otro, obliga a aquel por culpa de quien se ha producido, a reparlo’. En fin, muchas de las disposiciones insertas en nuestras Declaraciones de Derechos eran reglas consideradas como superiores y anteriores al legislador”.[10]

Além das que são evidentes por si, decorrentes dos fatos sociais, existe outra série que englobaria a existência da grande maioria das leis modernas: as construtivas ou leis orgânicas dos serviços públicos.

Duguit entende que é fato social irredutível que existe uma necessidade social inevitável, posto que é a condição mesma da vida social, de organizar certas atividades em serviço público e, por consequência há um valor social e uma força socialmente obrigatória em toda disposição de caráter geral ditada para a organização dos serviços públicos. Porém, tais leis construtivas não são diretamente decorrentes do fato social e sim formas particulares de explicitação das leis normativas e de organização dos serviços públicos. Como tais, devem se adequar a características decorrentes dessa natureza, quais sejam, a generalidade da lei (garantia da cidadania), e a adequação ao fim social ao qual esta se determina.

Deste modo, na visão de Duguit, as leis normativas por serem a própria tradução do fato social já obrigatório (ao qual falta apenas sanção organizada), não acarretariam a responsabilidade do Estado por ato legislativo uma vez que, não se dirigindo especificamente aos indivíduos, não seriam aptas a acarretar danos. As leis construtivas, dado o seu caráter de particularização de regras e dadas as suas caracterísiticas de normas de organização de serviços públicos poderiam ensejar, em determinados casos, essa responsabilidade[11].

Estabelecidos assim seus pressupostos doutrinários, Duguit passa a refletir sobre a questão da responsabilidade civil do Estado legislador em alentado estudo publicado na Revue du Droit Public et de la Science Politique de 1910 e desenvolvido no seu Tratado de Direito Constitucional. Começa o mestre francês a dizer que não se pode dar uma resposta genérica à questão da responsabilidade do Estado por ato legislativo. Deve se atentar para a natureza precípua do ato legislativo e sobre a situação de fato que este pretende regrar.

Distingue ele duas hipóteses: a primeira aquela na qual o legislador faz uma lei que interdita ou restringe uma certa atividade que até então era livre, mas que, num dado momento, é considerada danosa ou perigosa para o desenvolvimento físico, intelectual ou moral do indivíduo ou o desenvolvimento da nação; a segunda é aquela na qual o legislador faz a lei de interdição ou restrição não porque a atividade é nociva ou deva ser proibida como tal, mas para a organizar em serviço público, monopolizado ou não.

No primeiro caso entende Duguit que o legislador não faz mais do que formular uma regra de direito que dará uma sanção organizada a uma situação iníqua. A nova regra é uma lei normativa que apenas constata a evolução do direito, e os que enriqueceram em detrimento da coletividade não podem pretender que o legislador não intervenha para interditar, por meio de uma sanção efetiva, a continuação de tal indústria culposa:

“Com efeito o direito não é um conjunto de princípios absolutos e imutáveis, mas, ao contrário, um conjunto de regras cambiantes, variáveis com os tempos. Disso resulta que um fato, uma situação, mesmo considerados como lícitos durante um período muito longo que seja, não quer dizer que devam sempre ser considerados assim. Quando uma lei nova vem os proibir, aqueles que aproveitaram a legislação anterior não podem reclamar sobre a mudança, pois a nova legislação se limita a reconhecer a evolução do direito” (tradução nossa)[12].

Contra esse entendimento se levantava a objeção de que o fato era legítimo até o momento de promulgação da lei, assim, sendo no interesse da coletividade o estabelecimento da interdição da indústria legitimamente constituída, seria portanto lógico e justo que a coletividade suportasse a reparação do dano ocasionado a alguns no interesse de todos. Duguit refutava essa assertiva dizendo que para que alguém pudesse invocar o princípio da igualdade de todos diante dos encargos públicos era necessário que este alguém não se encontrasse numa situação por si mesma contrária ao direito. Tal situação seria intrinsecamente anti-social e a lei apenas reconheceria esse fato objetivo:

“Deve acrescentar-se que, se foi decidido que o legislador deve reconhecer o princípio da responsabilidade do Estado todas as vezes que uma lei nova introduz uma proibição, que ocasiona danos a uma determinada categoria de cidadãos, não haveria lei proibitiva nova que não devesse conter essa reserva, porque não há realmente aplicação que não seja, para alguns, uma causa de prejuízo. Isso seria entravar o legislador no cumprimento das reformas mais urgentes e mais necessárias” (tradução nossa)[13].

A segunda hipótese, a interdição para conversão da atividade num serviço público, acarretaria a responsabilidade do Estado. A atividade interdita não seria considerada contrária ao direito objetivo mas sim, proibida no interesse do serviço público; assim, é justo que a coletividade suporte as consequências desta interdição e que o patrimônio coletivo responda pela indenização aos particulares que tiveram o especial prejuízo[14].

Estabelecido o princípio da igualdade de todos diante da distribuição dos encargos públicos desde que a atividade não fosse contrária ao direito, Duguit procura responder à seguinte questão: se o legislador nada diz, os tribunais podem acordar uma indenização àqueles cuja aplicação individual da lei ocasiona um prejuízo especial?

Em resposta afirma o mestre de Bordéus que é devida a indenização aos prejudicados não somente quando a atuação do Estado importa em atentado a uma situação jurídica subjetiva, mas também todas as vezes em que o prejuízo é ocasionado aos particulares no interesse da coletividade, desde que estes não se encontrem numa situação ilícita:

“Na verdade, não só quando há violação de uma situação jurídica subjetiva que se dá lugar a uma indenização; é assim todas as vezes que um prejuízo é causado, no interesse da coletividade, a um indivíduo que não se encontra em uma situação ilícita” (tradução nossa)[15].

A razão de tal raciocínio é a de que, o ato legislativo possuiu uma natureza interna idêntica ao ato regulamentar. Se a aplicação do segundo enseja a responsabilidade do Estado o mesmo deve suceder com a aplicação do primeiro. A idéia de soberania absoluta, incontrastada do Parlamento, que fundamentaria a irresponsabilidade do Estado, é um anacronismo herdado da monarquia absoluta e não se justifica mais no mundo moderno onde é imperiosa a necessidade de um sistema em que todos, inclusive o Estado, estão submetidos ao direito e no qual avulta não mais a noção de imperium mas sim a de serviço prestado a todos, o serviço público, que se expressa tanto no ato regulamentar quanto no ato legislativo:

“Se comprende, pues, el sentido y el alcance de la transformación profunda que se ha realizado en el Derecho Público. No es ya un conjunto de regras aplicables a una persona soberana, es decir, investida del derecho subjetivo de mandar, que determinan las relaciones de esta persona con los individuos y las colectividades que se hallan en un territorio dado, relaciones eentre personas desiguales, entre un soberano y sus subditos. El Derecho público moderno se convierte en un conjunto de reglas que determinan la organozación de los servicios públicos y aseguran su funcionamiento regular e ininterrumpido. De la relación de soberano a súbditos no queda nada. Del derecho subjetivo de soberanía, de poder, tampoco. Pero sí una regla fundamental, de la qual derivan todas las demás: la regla que impone a los gobernantes la obligación de organizar los servicios públicos, de fiscalizar su funcionamiento, de evitar toda interrupción”[16]. 

A distinção entre leis normativas e leis construtivas granjeia aceitação em parte da doutrina. Georges Scelle, em 1913, em artigo na Revue du Droit Public et de la Science Politique, analisou uma lei da República Oriental do Uruguai de 26.12.1911 que instituiu o monopólio do Estado em certos ramos, os mais importantes, da indústria de seguros[17].

A finalidade da lei era dupla, de natureza social e financeira. De um lado pretendia democratizar essa indústria, substituindo por um monopólio de direito do Estado o monopólio de fato constituído em proveito de particulares ou de companhias, em grande parte estrangeiros. Por outro, este monopólio feito no interesse do Tesouro visava diminuir as possibilidades de ter de recorrer à cobrança de impostos e, assim, não agravando as energias produtivas de uma sociedade nascente.

Começa o autor por afirmar que a lei de 1911, em face dessa dupla finalidade, apresenta um interesse geral da coletividade e se insere dentro do movimento de intervencionismo que caracteriza a política social da maior parte dos Estados modernos. As condições da lei eram as seguintes:

1º - ela previa que o Estado poderia se fazer segurador contra toda sorte de riscos e declarava o monopólio público da indústria de seguros de vida, contra acidentes de trabalho e contra incêndios;

2º - ao Poder Executivo incumbia fixar, por decreto, em que datas o monopólio deveria se tornar efetivo para cada uma dessas três categorias de seguros;

3º - provisoriamente, as Companhias seriam autorizadas a continuar suas operações;

4º - sobrevindo o decreto executivo, as apólices que elas emitissem seriam consideradas nulas: penas de multa ou de prisão eram previstas em caso de desobediência;

5º - os contratos assinados antes da data do decreto de monopolização conservavam todo o valor jurídico mas deveriam ser registrados num prazo de quatro meses a partir da data do decreto sob pena de multa;

6º - a partir da promulgação da lei, nenhuma companhia, sociedade ou agência de seguros poderia se estabelecer ou se fundar no território da república para explorar os ramos de seguros que a monopolização havia previsto;

7º - quanto aos outros ramos de seguros, precisariam de uma autorização do Governo, autorização dada em caráter precário e revogável ad nutum através de notificação[18].

Para exercer a indústria ou monopólio de seguros foi criado em Montevidéu um Banco do Estado, com capital de três milhões de pesos. Ele deveria funcionar ao lado das Companhias então existentes e estava autorizado a adquirir somente caso a caso as carteiras de seguros das companhias ou agentes de seguro e a investir suas reservas em títulos da dívida pública ou outros valores seguros: imóveis, hipotecas etc. Havia portanto grande analogia entre essa situação e aquela estabelecida pela lei italiana de monopólio de seguros de vida.

Georges Scelle começa sua explanação por afirmar que, nas situações de monopólio de fato, como esta existente no Uruguai, a intervenção do Estado se legitima por si só, dado o caráter pernicioso do monopólio privado e a ausência de livre concorrência:

As companhias detêm um monopólio de fato. Segue-se que, monopolizando a indústria de seguros, o Estado não pode ser acusado de entravar a livre iniciativa de indivíduos ou prejudicar a livre concorrência. Isso, de fato, não existe. Toda companhia nova é obrigada a confiar subservientemente no trust das companhias já existentes, sendo este forte o suficiente para estrangular as necessidades de todos por processos de ‘dumping’” (tradução nossa)[19].

Estabelecida a finalidade pública da lei, ele afirma, na linha do pensamento de Duguit, que se deve distinguir as leis construtivas das normativas. Elas não tem a mesma natureza embora se apresentem ambas as duas sob formas abstratas e genéricas. No seu entender somente a lei normativa é realmente uma regra de direito pois exprime as condições da estrutura ou do equilíbrio social. A construtiva, por seu turno, se limitaria a explicitar os princípios postos pela normativa. Ela seria uma obra de intervenção pessoal do legislador, colocaria em aplicação a norma de direito e, como tal, estaria sujeita, assim como o ato da administração que aplica a lei de ofício, a causar dano aos particulares, ensejando, deste modo, a responsabilidade do Estado:

“Poderíamos, cremos nós, utilizar aqui uma das consequências da distinção, ainda muito encontrada, entre a lei normativa e lei construtiva. Estes dois tipos de ordens legislativas, que embora se apresentem ambos sob uma forma abstrata e geral, não têm no fundo a mesma natureza, a lei construtiva não tendo nenhuma outra finalidade que não aplicar os princípios colocado pela lei normativa. Este último somente é que é, na verdade, uma regra de direito, só ele exprime uma das condições da estrutura ou do equilíbrio social. Em o editando o legislador não cria nada, ele constata um estado de fato, ele traduz a regra de utilidade social. Ao contrário, em editando leis construtivas, ele intervém pessoalmente, porque ele deve fazer um apelo à sua inteligência ou sua engenhosidade para a implementação da mais eficaz e da mais segura das normas que ele constatou. Isso explica, em minha opinião, por que não pode haver qualquer ação por ocasião de uma lei normativa, uma vez que é aceito, por hipótese, que o legislador não fez, na verdade, obra pessoal; pelo contrário, ações de nulidade e de responsabilidade entendo muito bem quando se trata de leis construtivas porque o legislador se compreendem fortemente quando se trata de leis construtivas, porque o legislador não faz nessa matéria o que faz a cada dia o administrador: ele implementou a norma de direito, isto é, ele interveio pessoalmente, ele fez obra de iniciativa, e poderia, portanto, estar errado, cometer abuso de poder, ultrapassar sua competência ou desviar-se de seus fins”(tradução nossa)[20].

Para Scelle a lei construtiva teria a mesma natureza do ato regulamentar. Neste caso, conforme o regulamento, estaríamos diante de um comando que se limitaria a colocar em ação uma regra legislativa preexistente. Deste modo, o legislador ao editar prescrições construtivas nada mais faria do que inserir no mundo jurídico “leis regulamentares” e, não haveria portanto nenhuma razão para subtrair essas leis do regime jurídico próprio dos atos regulamentares, ou seja, de serem submetidos ao controle de legalidade pelo Judiciário e de ensejarem, nos casos previstos, a responsabilidade estatal:

No regulamento, não estamos diante de uma regra legislativa preexistente; do mesmo modo que nós não encontramos igualmente isso senão que na lei construtiva. Mas na lei normativa, nós nos deparamos com algo que não reencontramos no regulamento, isto é, uma regra de direito existente por si mesma, tirando dela mesma sua força obrigatória, de tal sorte que o regulamento não pode ser assimilado senão à lei construtiva e não à lei normativa. Mas se a lei construtiva e o regulamento são de natureza idêntica, o que dizer, senão que o legislador, quando edita prescrições construtivas, faz os regulamentos, ou as "leis regulamentares", se quiserem, mas em todo caso de atos que não têm nenhuma razão para fugir do regime jurídico dos regulamentos, isto é, que devem poder, como os regulamentos, ser submetidos ao controle da legalidade e engedrar, mesmo que sejam perfeitamente regulares, as acções de indenização, caso sejam preenchidas as condições necessárias para motivar a ação de indenização.

(..) Concluímos, portanto, que, juridicamente, de um ponto de vista geral, a irresponsabilidade do Estado legislador não pode ser posta em princípio senão que se trate de uma lei construtiva e que, em particular, durante uma interdição aos particulares para exercer um tipo de indústria para o monopolizar, os particulares lesados devem ser admitidos a fazer a prova do prejuízo que eles sofreram no interesse público" (traduação nossa)[21].

Outro autor que adere à tese da distinção de lei normativa e lei construtiva, ensejando a segunda a responsabilidade do Estado legislador, é Roger Brulle, em sua tese de doutorado De la responsabilité de l’État a raison des actes législatifs sustentada perante a Universidade de Bordéus em 1914.

Explica ele que as leis normativas, pelas quais o legislador constata e formula regras de direito objetivo, não podem dar lugar à responsabilidade estatal porque através destas o Estado apenas enuncia disposições gerais, ou seja, não entra em relação com indivíduos determinados. Afirma porém o autor, complementando o pensamento de Duguit, que, freqüentemente, na realidade dos fatos os elementos normativo e construtivo se mesclam dentro de uma mesma lei e, quando se coloca a questão da responsabilidade, é, por vezes, difícil de saber qual dos dois elementos é o dominante[22].

A resolução dessa dúvida passaria pela proposição da questão de se perguntar se a finalidade da lei poderia ser atendida por outras disposições que não aquelas que foram adotadas. Se o fim desta não pudesse ser adotado por outros meios que não os empregados pelo legislador, se estaria diante de uma lei principalmente normativa que não poderia ensejar a responsabilidade estatal. Ao contrário, se, modificando as disposições da mesma se pudesse igualmente realizar a mesma finalidade da norma jurídica se estaria em face de uma lei construtiva, em razão da qual seria admissível a responsabilidade do Estado. Ele exemplifica seu pensamento com a lei de 02.10.1872 sobre o monopólio estatal de fósforos químicos e a lei de 06.04.1910 que proibiu na França a venda de mamadeiras de tubo, então considerada uma das principais causas da mortalidade infantil na primeira idade. Ambas as leis contêm um elemento normativo e um construtivo. No primeiro caso, elemento normativo - obrigação de assegurar os recursos do Estado - é longínquo e não exige imperiosamente essa ou aquela medida para ser satisfeito uma vez que pode-se procurar, de outro modo, assegurar os mesmos recursos para o Estado. Já no segundo caso a norma da lei - proteção das crianças de primeira idade - necessita, para ser atendida, a medida construtiva adotada: não há outro modo de evitar a mortalidade infantil acarretada por esse sistema de mamadeira. Isto explica porque o legislador francês admitiu a indenização no primeiro caso (prevista no texto legal) e não no segundo[23].

Brulle conclui sua tese afirmando que a responsabilidade civil do Estado legislador nasce do risco gerado por sua legislação construtiva que, criada para expressar uma norma de direito em proveito de todos, lesa especialmente alguns indivíduos e, portanto, se coloca em contradição com sua própria finalidade precípua, qual seja, a de assegurar a igualdade de todos na fruição das benesses e na distribuição dos encargos sociais:

“Pode-se concluir, em suma, sobre esse ponto, que a responsabilidade do Estado legislador nasce do risco que a legislação construtiva, obra técnica e artificial que deve fazer reinar pelo bem de todos uma norma de direito, não lese especialmente alguns indivíduos, cuja atividade não está portanto contrária à regra de direito que a lei se propõe a organizar e colocar em obra” (tradução nossa)[24].

Maurice Hauriou agrega à noção de responsabilidade do Estado legislador um novo fundamento: o enriquecimento sem causa do patrimônio do Estado correlativo ao empobrecimento dos particulares que são onerados pelas proibições da lei.

O mestre da Universidade de Toulouse afirma inicialmente que o princípio geral em matéria de legislação é o da irresponsabilidade do Estado:

“"O princípio é a irresponsabilidade do Estado e a explicação jurídica é que os poderes de legislação e de justiça ainda não estão incluídos como direitos subjetivos, realmente integrados na pessoa jurídica do Estado. Eles ainda são poderes de órgãos incompletamente apropriados pela nação, e portanto esta não poderá ser responsabilizada. Como as leis são aprovadas e os julgamentos são feitos "em nome do povo francês", mas não ousamos dizer que tais atos são obra direta do Estado francês, ao passo que os atos administrativos, não hesito em classificá-los assim”(tradução nossa)[25].

A seguir estabelece a exceção: o Estado pode ser declarado responsável no que concerne à sua função legislativa se a medida legislativa esconde uma operação financeira destinada a enriquecer o patrimônio administrativo. Neste caso será, na realidade, na qualidade de administração pública e não na qualidade de legislador que ao Estado será imputada a obrigação de indenizar por enriquecimento de seu patrimônio. Ele dá como exemplos a lei de 02.08.1872 que previu uma indenização para a supressão das fábricas privadas de fósforos porque se tratava de estabelecer um monopólio do Estado, que é um enriquecimento do patrimônio deste, e, portanto devida a indenização. Assevera ainda que a jurisprudência do Conselho de Estado que determinou a não indenização dos fabricantes de sucedâneos de tabaco (arrêt Duchatellier, 1838) não foi justa, constituindo-se a alegação de que o “Estado não seria responsável pelas consequências das leis que, em um interesse geral, proíbem o exercício especial de uma indústria” um evidente sofisma uma vez que o pretendido interesse geral nada mais era do que um interesse patrimonial do Estado[26].

Maurice Hauriou estabelece entretanto que as medidas que não acarretam nenhum enriquecimento para o patrimônio do Estado não darão lugar à indenização a menos que haja disposição legal expressa nesse sentido. Assim, desde que não haja enriquecimento sem causa do Estado, não haverá direito à indenização  sempre que se tratar de modificações legislativas das regras de direito privado (supressão de formas de propriedade, modificações do regime sucessório etc..); obrigações decorrentes de novas leis de direito público (leis sobre saúde pública, higiene do trabalho etc..); interdições restringindo as liberdades individuais (proibição de venda de bebidas em certas localidades) e simples supressão ou destruição seja de objetos, ou estabelecimentos, seja de monopólios (estabelecimentos danosos, insalubres ou contrários às liberdades públicas)[27].

O fundamento de tal obrigação objetiva do Estado para Hauriou é o de que constitui um princípio geral de direito que ninguém pode se enriquecer em detrimento de outro sem uma causa jurídica:

“Não é que o exercício do poder público, e especialmente o exercício da legislação, não possam jamais motivar a indenização, ou que se deva rejeitar toda ideia de indenização em razão da natureza do ato legislativo que consuma o prejuízo. 

(..) Porém é preciso para isso que alguma circunstância geradora da indenização segundo o direito comum acompanhe a medida legislativa; não é a proibição, ou, de uma maneira mais geral, o comando contido na lei, que pode deflagrar a obrigação de indenizar, mas as circunstâncias nas quais o comando é interventivo. Essas circunstâncias podem ser de dois tipos: ou bem o legislador está em falta de haver feito a li; essa hipótese parece inverossímil; mas ela não o será em um país que admita a inconstitucionalidade das leis, porque uma lei inconstitucional pode ser uma falta; ou bem a lei pode acarretar um enriquecimento para o patrimônio do Estado, correlativo ao empobrecimento dos particulares que sã atingidos pela proibição da lei; nesse caso o princípio do direito comum que diz que ninguém deve se enriquecer em detrimento do outo deve agir em encargo do Estado”[28].

Concluindo, podemos dizer que a teoria de Léon Duguit acerca da responsabilidade do Estado cria uma tradição doutrinária (Georges Scelle, Roger Brulle, Maurice Hauriou etc.) para reconhecer que a ideia de soberania absoluta que fundamentaria a irresponsabilidade do Estado, é um anacronismo herdado da monarquia absoluta e não se justifica mais no mundo moderno onde é imperiosa a necessidade de um sistema de direito público em que todos, inclusive o Estado, estão submetidos ao direito e no qual avulta não mais a noção de imperium mas sim a de serviço prestado a todos, o serviço público, que se expressa tanto no ato regulamentar quanto no ato legislativo.

Isso abriria posteriormente caminho para o sistema (princípio atual) que se consolida a partir do arrêt La Fleurette, em 1938, que conclui que a responsabilidade do Estado legislador não é a aplicação aos danos causados pelas leis do princípio da igualdade diante dos encargos públicos, mas sim de considerar se no silêncio do legislador, as considerações no tocante à especialidade do prejuízo ou à natureza autoridade do sistema considerado exercem papel no mesmo sentido que no direito comum da responsabilidade pública, para impor a responsabilidade especial do Estado legislador.


Notas e Referências:

[1] DUGUIT, Léon. Las transformaciones del Derecho (público y privado). Buenos Aires: Editorial Heliasta, 1975, p. 10-13.

[2] ibidem, p. 14.

[3] ibidem, p. 15.

[4] ibidem, p. 24.

[5] ibidem, p. 59.

[6] ibidem, p. 26.

[7] ibidem, p. 38.

[8] ibidem, p. 38.

[9] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 60-61.

[10] DUGUIT, Léon. Las transformaciones ... . op. cit., p. 51.

[11] ibidem, p. 49-54.

[12] DUGUIT, Léon. De la responsabilité pouvant naitre a l’occasion de la loi. Revue du Droit Publique et de la Science Politique en France et a l’etranger, Paris, 1910, p. 641-642.

[13] DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. t. III. 3. ed. Paris, Ancienne Librairie Fontemoing & Cie, Éditeurs, 1930, p. 558-559.

[14] DUGUIT, Léon. De la responsabilité .... op. cit., p. 644-645.

[15] ibidem, p. 647.

[16] DUGUIT, Léon. Las transformaciones .... op. cit., p. 37-38.

[17] SCELLE, Georges. A propos de l’établissement du monopole des assurances en Uruguay. Revue du Droit Publique et de la Science Politique en France et a l’etranger, Paris, 1913, p. 637-677.

[18] ibidem, p. 640.

[19] ibidem, p. 643.

[20] ibidem, p. 660.

[21] ibidem, p. 661-662.

[22] BRULLE, Roger. De la responsabilité de l’État a raison des actes législatifs. Thèse. Bordeaux: Imprimerie de l’Université, 1914, p. 88-89.

[23] ibidem, p. 90-91.

[24] ibidem, p. 99-100.

[25] HAURIOU, Maurice. Précis de droit Administratif et de droit public. 11. èd. Paris: Recueil Sirey, 1927, p. 302-303.

[26] ibidem, p. 303-304.

[27] ibidem, p. 304-305.

[28] HAURIOU, Maurice. Notes d’arrêts sur décisions du Conseil de l’État et du Tribunal de Conflits publiées au Recueil Sirey de 1892 à 1928. Paris: Librairie du Recueil Sirey, 1929, p. 503-504 (tradução nossa).

BRULLE, Roger. De la responsabilité de l’État a raison des actes législatifs. Thèse. Bordeaux: Imprimerie de l’Université, 1914.

DUGUIT, Léon. De la responsabilité pouvant naitre a l’occasion de la loi. Revue du Droit Publique et de la Science Politique en France et a l’etranger, Paris, 1910.

DUGUIT, Léon. Las transformaciones del Derecho (público y privado). Buenos Aires: Editorial Heliasta, 1975.

DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. t. III. 3. ed. Paris: Ancienne Librairie Fontemoing & Cie, Éditeurs, 1930.

HAURIOU, Maurice. Notes d’arrêts sur décisions du Conseil de l’État et du Tribunal de Conflits publiées au Recueil Sirey de 1892 à 1928. Paris: Librairie du Recueil Sirey, 1929.

HAURIOU, Maurice. Précis de droit Administratif et de droit public. 11. èd. Paris: Recueil Sirey, 1927.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

SCELLE, Georges. A propos de l’établissement du monopole des assurances en Uruguay. Revue du Droit Publique et de la Science Politique en France et a l’etranger, Paris, 1913. .


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