A Questão criminal: inflexões e reflexões sobre Estado, delito, linguagem, ideologia e poder (Parte 1) – Por Guilherme Moreira Pires

21/03/2015

Parte 1

Deselegantemente pergunto a você, que cometeu o erro de clicar neste artigo: é possível edificar um pensamento criminológico crítico negligenciando alguma destas palavras: "Estado", "delito", "linguagem", "ideologia" e "poder"?

É possível, em 2015 ou em qualquer momento desta nossa longa história, dissertarmos criticamente sobre poder negligenciando o que emerge da linguagem?

Negligenciando o poder da linguagem e a linguagem do poder?

É possível abordarmos o delito desatrelado do arquétipo de Estado?

Desvinculado da problemática do poder?

Longínquo(a) da questão ideológica?

Desconsiderando os lindes e horizontes da linguagem?

Em suas possibilidades e impossibilidades, elementos inclusivos e excludentes, visíveis e invisíveis, estruturais e estruturantes, ontológicos e metafísicos – podemos criticamente eleger um pedaço de toda esta discussão como a parte coerente e descartar o restante?

Podemos?

Em um livro inteiro (2014) abordando as palavras "Estado" e "Delito" à luz da Filosofia da Linguagem, não cheguei nem perto de exaurir tantas interações e interdependências semânticas.

Outros autores muitíssimo melhores também não alcançaram essa montanha última, se é que ela existe. Mas, ainda assim, tentaram. Tentamos. Estamos buscando.

No caso, o processo – de considerar todos esses elementos e seguir (des)construindo o pensamento e os caminhos – não é desprovido de sentido próprio, tampouco um meio neutro para a montanha; e igualmente não existe um método único tendente a desbravá-la.

O simples fato de se buscar pensar em todas essas interações, entre palavras cotidianamente repetidas com naturalidade, tais como se simples e sem poderes fossem,  já demanda todo um esforço interpretativo, sobremaneira poderoso, enérgico e complexo; esforço este majoritariamente não vislumbrado nos "atores" ou "operadores" jurídicos.

E dizemos "operadores" num sentido de alguém que opera alguma coisa, talvez alguma técnica e, no caso do Direito Penal, uma técnica planetária de controle social.

Dizemos "atores", ainda, não raro numa acepção de um teatrinho mágico, um clubinho arbitrário de iniciados que, com suas varinhas da "técnica" e da "razão", manuseiam um poder que pouco compreendem, à luz de determinadas regras implícitas e explícitas, validando-o com seus discursos legitimantes e assim moldando uma comunidade interpretativa em que a linguagem de seus trajes, rituais, gestos, símbolos, palavras, oratória, mesmo da arquitetura dos espaços jurídicos, ecoa sistemicamente, sobrepujando e engolindo os limites que jura resguardar.

Cada parte do todo repercute e fora moldada num diálogo com poderes, para o diálogo com poderes, e enquanto poderes passíveis de ativação;estruturas mistificadas - mais sagradas que profanas...

Sempre existem resistências (ainda que somente em potencial), com pessoas buscando minimizar ou mesmo nulificar efeitos nocivos destas intersecções, resistências estas, porém, cuja tendência, desafortunadamente, é a de serem engolidas pelas estruturas de pensamento e mecânicas de funcionamento dominantes, tendentes não à desconstrução, mas à autopreservação de suas operacionalidades.

Ao mesmo tempo em que nada é verdadeiramente uma unidade coesa (nem mesmo uma pequena família ou grupo nos remete a uma unidade coesa, muito menos um Estado), existe um esforço no sentido de tornar essa unidade coesa, de persegui-la enquanto modelo, tornar a unidade verdadeiramente uma unidade, o máximo possível, valendo-se inclusive da introdução de elementos identificadores, que cunhem esse elo artificial de coesão mediante seleção de elementos desejáveis e sacrifício de indesejáveis: seja através de uniformes, hinos, símbolos, discursos, qualquer elemento passível de instaurar ordenação e conferir sentidos (sempre excludentes de algo) desejáveis e convenientes.

Isso é facilmente vislumbrado em alguns arquétipos de Estado; e defensável que, embora os elementos instrumentalizados não sejam sempre os mesmos, todo e qualquer arquétipo de Estado abusa dessa estratégia de edificação física e discursiva.

Estaria um advogado criminalista "veterano", com décadas de atuação "nas costas" – ao qual a linguagem social confere o privilégio de ser chamado de “doutor” – apto a falar da questão criminal, enquanto negligencia a relação entre Estado, delito, linguagem, ideologia e poder? E quanto àqueles aos quais esta mesma linguagem confere o privilégio de serem tratados como “excelência(s)” ou “ilustríssimo(s) (além de senhores doutores)?

A problemática do delito nutre uma relação indissociável com a problemática do Estado e, consequentemente, com as problemáticasdo poder e da linguagem. Estas tratam-se de questões umbilicais que não podem ser negligenciadas, sob pena de se edificar tão-somente uma visão formatada e simplista do assunto, com supressão inclusive histórica, de modo reducionista por excelência.

O bacharel em Direito, o advogado criminal, o professor de Direito Penal, os dogmáticos, os "especialistas da pena" – esses que enchem as bocas para falar do "delito" – compartilham uma pequena grande peculiaridade: como regra, negligenciam criticamente todas essas palavras.

E querem, ainda, falar sobre "delito". Lecionar "Teoria do Delito". Cuspir "delito".

E isto sem estudarem e refletirem sobre "Estado", "linguagem", "ideologia" e "poder"... E, consequentemente, sem estudarem "delito". Tem-se um paradoxo: quanto mais estudam a questão criminal nesse sentido, menos entendem a questão criminal, mais distantes se mostram. Quanto mais falam de "delito", menos sabem o que é isso: o que representa e quais suas repercussões e impactos na realidade, na sociedade, nas pessoas.

Os "saberes jurídicos", na acepção extremamente engessada aqui criticada, não exaurem a questão criminal. Isso há que ficar bastante claro.

Os usuais legitimadores da pena forjam mundos grosseiros, extremamente limitados e limitantes, que impedem o abastecimento do novo no imaginário social.

Conversas sobre "linguagem" soam estranhas a esses "especialistas", soam um tanto quanto "místicas": eis que ignoram a bolha da linguagem e, orgulhosos, enchem os pulmões de ar para bradar sobre como as "ideologias" são terríveis, longes de compreender o caráter inescapável da linguagem – como pensamos a partir de signos linguísticos e como somos também linguagem; como se dá a relação de nossas estruturas de pensamento com nossos lindes semânticos e horizontes interpretativos, como podemos considerar nossas limitações e arbitrariedades, buscando reduzi-las.

Ademais, vale lembrar que o argumento da superação das ideologias marca e possibilita o coroamento e ascensão de uma ideologia em especial, a referente aos neoliberalismos, cujas estruturas de pensamento passam a energizar-se invisivelmente, influindo tanto no moldar de uma realidade física a ponto de acastelar-se: igualmente, como na linguagem, não se compreende a existência de uma bolha cujo conteúdo é de uma visão formatada e fragmentária da realidade, tendo em vista que, para o referencial (dentro da bolha), essa bolha – que não sabe ser bolha – é precisamente o mundo.

Permanecemos com "especialistas" atuantes no âmbito penal, muitos que até trabalham "para o Estado", mas que sequer sabem o que é um Estado; sábios oficiais que repudiam Teoria do Estado, Filosofia Política, Sociologia... "Sábios", excelências ilustradas, que alegam nada disso "ser Direito", exercendo poderes que encontram na "técnica" – o mais fascinante território discursivo e realístico de mecanismos de legitimação e (re)produção – verdadeiro condado discursivo com jatos e labaredas de poder, que também moldam e constroem verdades.

Depreende-se dessa mesma técnica um fogo forjador de verdades por excelência. E aqui está, de fato, a excelência.

"Quando é que nós vamos começar a estudar Direito?" – perguntam aos montes os alunos, referindo-se às "disciplinas introdutórias" na graduação. Como pontuou o criminólogo Thiago Fabres de Carvalho no final de uma palestra (mesa Violência e autoritarismo do Estado): a sociologia é encarada como "perfumaria". Os sujeitos querem "operar", aplicar a "lei", o "método", a "técnica" na sociedade, mas também não sabem o que é sociedade e nem entendem o que é isso que tanto visam introduzir.

Nesse embalo, tem-se X, o vencedor da meritocracia, que agora trabalha orgulhoso para o Estado, valendo-se da nobre e gloriosa "técnica jurídica"... Mas que desconhece a dimensão dessa técnica, do que é Estado, delito e sociedade.

O que esse indivíduo pode criticamente falar sobre a questão criminal, sem (re)produzir os mais rasteiros discursos criminológicos do cotidiano? Talvez não muito.


Notas e referências:

[1] Palestra: Mesa: Violência e autoritarismo do Estado - I Seminário de Pesquisa Social: Brasil em crise - Universidade Federal do Espírito Santo, 2014. https://www.youtube.com/watch?v=GbXT5AFmeiA&feature=youtu.be                     


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