Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenadores Gina Bezerra, Jorge Bheron e Eduardo Januário
Iremos analisar no presente artigo a possibilidade de condenação ex officio pelo Poder Judiciário. Tal possibilidade está prevista expressamente no art. 385 do Código de Processo Penal, o qual dispõe:
“Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.”
Inicialmente, devemos lembrar que o nosso Código de Processo Penal é de 1941, e muitos de seus dispositivos representam os valores e princípios jurídicos que vigiam à época de sua elaboração, mas que estão em contraposição aos princípios albergados pela Constituição Federal de 1988.
De acordo com Vicente Greco Filho, “a Constituição da República preocupou-se mais em estabelecer garantias para o processo penal do que para o processo civil, tanto que, em relação a este último, além das garantias gerais, os princípios constitucionais são inferidos, de regra, mediante a interposição do sistema e não por meio de textos expressos.”[1]
Esse é o caso do dispositivo legal ora em análise. Como cediço, nossa Carta Magna estabeleceu como um dos princípios basilares do processo penal o sistema acusatório, que é um dos pilares do sistema de garantias individuais em nosso ordenamento jurídico.
Neste sistema processual, o juiz é um sujeito passivo, rigidamente separado das partes, e o julgamento é um debate paritário, iniciado pela acusação, a quem compete o ônus da prova, e desenvolvido, com a participação da defesa, mediante um contraditório público.
Dessa forma, o processo penal, do ponto de vista estrutural, caracteriza-se por ser uma disputa entre duas partes, acusação e defesa, isto é, entre o Ministério Público e a defesa, e é decidido pelo juiz, que se encontra numa posição de independência, equidistante e acima das partes, incumbindo-lhe apreciar o caso que lhe é submetido pelo órgão acusador, não podendo condenar para além da acusação.
Devemos lembrar que o princípio acusatório opõe-se ao princípio inquisitório, no qual o juiz participa ativamente do processo, visto que intervém autonomamente neste, sem necessidade de provocação do Ministério Publico, coordena a investigação e procede à colheita da prova, para posterior julgamento por ele.
O sistema inquisitório coloca em xeque a imparcialidade do juiz, já que ele ficará umbilicalmente ligado à investigação e acusação, de forma que será inevitável a condenação do réu, apesar da eloquência de possíveis teses defensivas, especialmente aquelas que visem anular o processo penal, em virtude de não ter se observado alguma garantia estabelecida legitimamente em favor do acusado.
Conforme os ensinamentos de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar sobre o sistema acusatório, “com origem que remonta ao Direito Greco, o sistema acusatório é o adotado no Brasil, de acordo com o modelo plasmado na Constituição Federal de 1988. Com efeito, ao estabelecer como função privativa do Ministério Público a promoção da ação penal (art. 129, I, CF/88), a Carta Magna deixou nítida a preferência por esse modelo que tem como características fundamentais a separação entre as funções de acusar, defender e julgar, conferidas a personagens distintos. Os princípios do contraditório, da ampla defesa e da publicidade regem todo o processo; o órgão acusador é dotado de imparcialidade; o sistema de apreciação das provas é o livre convencimento motivado.”[2]
Não por outra razão, a legislação processual penal tem buscado retirar do juiz poderes no curso das investigações, e até mesmo no curso do processo penal, de forma a preservar sua imparcialidade, para que possa proferir uma justa decisão ao final do processo.
Assim, verificamos, a título de exemplo, a reforma efetivada no ano de 2008 na lei processual penal, que alterou substancialmente a ordem da inquirição das testemunhas no curso do processo penal.
Com a referida mudança, apenas para lembrarmos, o juiz que antes sempre iniciava as perguntas para as testemunhas, agora será o último a realizar os questionamentos, e somente se for necessário para complementar as informações prestadas às indagações feitas pelas partes anteriormente.
Mais recentemente, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio de Melo, no âmbito do HC 160.496, deferiu liminar para suspender a condenação de um réu, em decisão tomada após determinação do juiz de primeiro grau por produção de prova de ofício em favor da acusação.
O magistrado de primeiro grau alegou ter agido em busca da verdade real. Mais um princípio que sucumbe à necessidade de se preservar a imparcialidade e independência do Juiz, não podendo ele determinar de ofício a produção de provas, ainda que a pretexto de se alcançar a verdade real.
Seguindo essa linha de entendimento, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, em julgamento unânime, concedeu, de ofício, o Habeas Corpus (HC) 188.888/MG, de relatoria do Ministro Celso de Mello.
O Ministro Celso de Mello firmou o entendimento, em seu voto, de que o magistrado competente não pode converter, ex officio, a prisão em flagrante em prisão preventiva no contexto da audiência de custódia, pois essa medida de conversão depende, necessariamente, de representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público.
Como podemos verificar, cada vez mais está se reconhecendo a impossibilidade do juiz adotar providências de ofício no curso do processo penal, tais como a produção de provas e a decretação da prisão preventiva.
Portanto, de modo a compatibilizar o nosso Código Processo Penal aos ditames do sistema acusatório adotado pela Constituição de Federal de 1988, entendemos pela inconstitucionalidade do art. 385 do Código de Processo Penal.
Notas e Referências
CONJUR. Marco Aurélio suspende condenação por causa de prova obtida a pedido de juiz. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-12/marco-aurelio-suspende-condenacao-prova-obtida-pedido-juiz. Acesso em: 27 out. 2020.
STF, 2ª Turma reconhece impossibilidade de prisão preventiva sem requerimento do MP ou da Polícia Judiciária. 2020. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=452951&ori=1. Acesso em: 27 out. 2020.
GRECO FILHO, Vicente, Manual de Processo Penal. 9. ed. São Paulo. Saraiva, 2012.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues, Curso de Direito Processual Penal. 11ª ed. Salvador. JusPodivm, 2016.
[1] GRECO FILHO, Vicente, Manual de Processo Penal. 9. ed. São Paulo. Saraiva, 2012, p. 77.
[2] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues, Curso de Direito Processual Penal. 11ª ed. Salvador. JusPodivm, 2016, p. 57.
Imagem Ilustrativa do Post: Martelo, justiça // Foto de: QuinceMedia // Sem alterações
Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/martelo-leilão-justiça-legal-juiz-3577254/
Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/