Violação de direitos e seletividade na “guerra às drogas” no Brasil: um fenômeno nunca controlado.  

15/04/2021

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron, Gina Muniz e Eduardo Januário 

Enquanto o mundo anseia pelo fim da pandemia do COVID-19, paralelamente, um antigo fenômeno segue descontrolado no Brasil. Sem manchetes diárias na mídia ou comoção nacional, milhares de pessoas são enviadas para presídios e cadeias públicas lotadas. Diferente do coronavírus, que invade silenciosamente nossas casas, não escolhe suas vítimas e atinge a todos indiscriminadamente, a guerra às drogas tem alvo e classe social certos, além de entrar nos lares fazendo barulho mesmo, metendo o pé na porta.

O cotidiano da justiça criminal revela uma rotina de naturalização dos abusos cometidos por agentes de segurança pública, que atuam na certeza da convalidação de seus atos por parte dos atores do Sistema de Justiça, seja por omissão (não querem se indispor com as forças policiais), ou mesmo por intimamente concordarem com esta cruzada moralista, sem limites,contra as drogas etiquetadas como ilícitas.

A atuação defensiva, por vezes, é vista como empecilho à consecução da atividade punitiva estatal, principalmente quando se insurge em defesa do alvo preferido das agências punitivas: pobres, pretos e periféricos. Sim, no Brasil, essas pessoas fazem parte de um grupo de risco, contra o qual se presume a culpa e sempre recaem suspeitas, e nem mesmo dentro de casa estão a salvos do “vírus” do arbítrio estatal.

Para melhor entendimento de como chegamos a esse atual vale-tudo, necessário breve resumo acerca do contexto histórico dos primeiros passos dessa política criminal de drogas que encarcera, esmaga indivíduos vulneráveis e, não raramente, também vitima policiais, que são lançados para o front de uma guerra sem fim e, portanto, sem vencedores.

Uma política criminal de drogas mais rígida teve início na década de sessenta, a partir da adequação das normas internas brasileiras aos compromissos internacionais assumidos pelo país na repressão à circulação de drogas. O preâmbulo da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, ratificado pelo Brasil em 1964 (Decreto 54.216/64), revela uma suposta preocupação com a saúde física e moral da humanidade, considerando a toxicomania um grave mal para o indivíduo e perigo social e econômico para todos.

Ao lado da pretensão moralizadora, a função normalizadora/reacionária do combate aos entorpecentes como forma de reprimir a contracultura e movimentos de contestação, libertários, contrários às políticas belicistas e armamentistas, dentro dos quais se popularizaram o uso de maconha e LSD. Na medida em que este consumo ganha o espaço público, vai gerando o pânico moral que deflagrou intensa produção legislativa em matéria penal[i]

A repressão às drogas ganha tom autoritário a partir da ditadura militar,quando o Brasil “passa a dispor de modelo repressivo militarizado centrado na lógica bélica de eliminação/neutralização de inimigos. A estrutura da política de drogas requeria, portanto, reformulação: ao inimigo interno político (subversivo) é acrescido o inimigo interno político criminal (traficante”)[ii].

Este modelo vem acompanhado de evidente seletividade penal, sendo a distinção entre traficante e consumidor feita a partir do sujeito que porta/possui as drogas, reverberando pelas décadas seguintes e de fácil constatação empírica na atualidade: basta analisar os perfis dos acusados e condenados por tráfico de drogas e daqueles que eventualmente respondem pelo delito do artigo 28, da Lei 11.343/06.

Outrossim, não há dúvidas em afirmar que a lógica bélica continua sendo aplicada, notadamente pelo desdém das forças policiais às normas de direitos fundamentais consagradas constitucionalmente. Na lição de Vera Malaguci Batista, “existe uma renúncia expressa à legalidade penal através de um controle social militarizado e verticalizado sobre os setores mais pobres da população ou sobre os dissidentes”[iii].

Se até mesmo as guerras externas possuem normas de combate e regras mínimas de proteção aos civis (Convenções de Genebra, por exemplo), sujeitando seus infratores às Cortes Internacionais, a guerra às drogas, no Brasil, parece não encontrar limites nem mesmo na própria Constituição: o Estado brasileiro ignora direitos fundamentais de parte de seu próprio povo. Tampouco há responsabilização dos agentes públicos pelos Tribunais internos.

Violação de domicílio fora das hipóteses constitucionais e legais, violação da intimidade e da privacidade ao vasculhar aparelho celular sem autorização judicial, tortura física ou psicológica para obter “confissão” ou provas, “interrogatório de camburão”, são alguns dos abusos infligidos no dia-a-dia aos alvos prediletos do Estado, que reprime de forma prioritária e inútil a venda no varejo, feita pelos pequenos comerciantes pobres que normalmente agem em seus bairros periféricos.

Ademais, as polícias brasileiras possuem um roteiro novelesco padronizado que pode ser encontrado em qualquer processo de tráfico de drogas, independente de qual estado do país se dêem os fatos: “atitude suspeita”, “entrou em casa quando viu a viatura”, “se desfez de uma bolsa que continha droga”, “autorizou nossa entrada e indicou onde escondeu a droga”, são narrativas repetidas mecanicamente pelos agentes envolvidos no ato, que muitas vezes devem ser confundidos com padres ou outros líderes religiosos, já que o suspeito confessa voluntariamente todos seus “pecados” para eles.

Muitas dessas narrativas batidas e fictícias são suficientes para convencer juízes e promotores criminais da culpabilidade do autuado/acusado, que ignoram a ilicitude da prova produzida, iniciando-se persecução penal cujo roteiro também se sabe de cor, conforme bem delineado por Gina Muniz, em seu artigo “Quem é o réu: o tráfico ou o traficante?[iv].

Tendo como standart probatório os depoimentos das testemunhas policiais, o Judiciário se tornou mero carimbador da decisão condenatória já tomada pelos policiais, que se tornaram, hoje, os verdadeiros juízes dos processos de tráfico.

No entanto, os Tribunais Superiores, finalmente sensíveis às séries de violações de direitos perpetradas pelas forças de segurança pública, vem criando precedentes que podem significar uma guinada nos rumos dos processos de tráfico, coibindo prisões ilegais, a produção de provas ilícitas e forçando a polícia a agir conforme a Constituição.

Segundo precedentes reiterados das Quinta e Sexta Turmas do Superior Tribunal de Justiça (STJ), é necessária investigação prévia que indique elementos concretos da existência de crime permanente antes da violação de domicílio. Entendeu a Corte, a título de exemplo, que denúncia anônima e fuga da polícia, por si só, não configuram fundadas razões para violação de domicílio por parte da polícia.

A dispensa de mandado de busca e apreensão deve ser fundamentada em evidências de que o crime de fato está ocorrendo, como na situação em que a polícia presencia o comércio de drogas em frente a uma residência. Se, no entanto, tratar-se apenas de uma presunção, sem elementos concretos, a Corte tem julgado inválidas as violações de domicílios:

“a mera denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos preliminares indicativos de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado, estando, ausente, assim, nessas situações, justa causa para a medida (HC 512.418/RJ, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 26/11/2019, DJe 03/12/2019. Destaque-se que não se está a exigir diligências profundas, mas breve averiguação, como “campana” próxima à residência para verificar a movimentação na casa e outros elementos de informação que possam ratificar a notícia anônima” (RHC 89.853/SP, j. 18/02/2020).

No mesmo sentido, e reforçando a razão de decidir dos precedentes, decidiu a Quinta Turma que a informação de que o suspeito é conhecido dos meios policiais como traficante de drogas não justifica que a polícia invada domicílio e local de trabalho sem autorização judicial. Tal situação só seria possível pela existência de fundadas razões. Assim, a Turma deu provimento a recurso ordinário em Habeas Corpus para reconhecer a nulidade das provas do réu condenado por tráfico de drogas, absolvendo-o do delito (RHC 126.092).

Em recentíssimo julgado, decidiu a Sexta Turma do STJ que a apreensão de drogas na posse de uma pessoa não é motivo suficiente para que a polícia invada sua residência sem a autorização dos moradores, caso não tenha havido uma investigação prévia que indique a prática de crime permanente de tráfico no local. O colegiado reconheceu a violação de domicílio e, em consequência, a ilicitude da apreensão de entorpecentes no interior da residência, absolvendo o acusado (HC 611.918/SP).

Ressalte-se que a unificação deste entendimento pelas duas Turmas criminais do STJ harmoniza-se com o entendimento do Supremo Tribunal Federal fixado no Recurso Extraordinário n.º 603.616 (Tema 280/STF), no qual a Suprema Corte asseverou que a flagrância posterior, sem demonstração de justa causa, não legitima o ingresso dos agentes do Estado em domicílio sem autorização judicial e fora das hipóteses constitucionalmente previstas (art. 5º, XI, da CF).

Por fim, a Quinta Turma, em conformidade com precedente firmado pela Sexta Turma no HC 598.051, em decisão que mais impacta os órgãos de segurança, ratificou o entendimento de que cabe ao Estado demonstrar, de modo inequívoco e por meio de registro escrito e de gravação audiovisual, o consentimento expresso do morador para a entrada da polícia em sua casa, quando não houver mandado judicial (HC 616584/RS).

É inegável que estes entendimentos estabelecem limites necessários à atividade policial na guerra às drogas, promovendo perspectivas de redução de danos causados à população vulnerável, que já sofre de tantos outros males causados pela omissão do Estado e não deve ficar a mercê de abusos promovidos por quem deveria protegê-la. Porém, tais decisões significam pequeno paliativo, se fazendo imperiosa a reformulação da política criminal de drogas, a começar pela descriminalização do uso.

Atualmente, pende de julgamento no Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário nº 635.659/SP em que se discute a constitucionalidade da criminalização do porte de droga para consumo próprio, cujo resultado pela inconstitucionalidade do artigo 28, da Lei 11.343/06, causará significativa diminuição do poder letal e abuso do poder do Estado contra segmentos sociais vulneráveis, além de minimizar outros danos ocasionados pela criminalização, como a estigmatização do usuário, notadamente o preto, pobre e periférico, acrescentando-se, ainda, a redução de gastos públicos drenados de outras áreas[v].

Enquanto isso não ocorre, é preciso que os precedentes estabelecidos pelos Tribunais Superiores se reflitam efetivamente na prática policial e nas decisões judiciais, agora que finalmente se insurgem contra a sanha autoritária do Estado após décadas de condescendência com abusos de toda sorte praticados a pretexto de combater um inimigo da coletividade, mas que, na verdade, sempre serviu a um controle moral de opções pessoais e a uma política criminal higienista que segrega os indesejáveis.

 

Notas e Referências

[i] CARVALHO, Salo de. A política Criminal de Drogas no Brasil. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.64-65

[ii]CARVALHO, Salo de. A política Criminal de Drogas no Brasil. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.75

[iii] BATISTA, Vera Malaguci. Difíceis Ganhos Fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 45

[iv]MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves. Quem é o réu: o tráfico ou o traficante? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-22/gina-muniz-quem-reu-trafico-ou-traficante.Acesso em: 12/04/20121.

[v]MOREIRA, Rômulo de Andrade. Drogas: quanto custa proibir? Disponível em: https://romulomoreira.jusbrasil.com.br/artigos/1186022488/drogas-quanto-custa-proibir. Acesso em: 12/04/20121.

 

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