VAI EM PAZ MOÏSE: UM SER HUMANO, UM REFUGIADO

04/02/2022

Coluna Por Supuesto

Há várias dimensões, camadas, formas de apreciação e de análise dos fatos acontecidos no quiosque Tropicália, na barra da Tijuca no RJ, e cujo desfecho infeliz foi o assassinato de Moïse.

A história já foi contada, repetida, ouvida, mas ainda não foi suficientemente assimilada nem processada. Como Cartaphilus, o herói de “El inmortal” de Borges, Moïse, “O Ninguém”, é hoje “o Alguém: um simples mortal é todos os homens”. 

No inconsciente coletivo paira o drama da finitude, da sensação de que em algum momento tudo pode acontecer com qualquer um. Estamos de acordo, nenhuma vida tem mais valor do que outra, reafirmamos isso em plena pandemia, quando pensamos chegar ao limite e as “escolhas trágicas” assomavam nos debates jurídicos como algo quase inevitável. Mas, ainda assim, algumas mortes viram símbolos da degradação da forma de organização social em que se desenvolve o cotidiano.

Para o cientista do direito, trata-se do choque doloroso entre o ideal projetado no texto constitucional, nos valores consignados como princípios, que queremos efetivar, e a realidade. Uma realidade que entrega as condições mais extremas e devastadoras de um sistema sustentado pelo capital, de vorazes tecnologias, mas de vidas descartáveis. Ao final, era uma dívida, pouco mais de 100 reais.      

A morte ocasionada a golpes de Moïse Kabamgabe revela mais uma face da banalização da vida. No bojo, a tragedia contínua e lacerante camuflada na extrapolação mental de quem diz depois de matar: “resolvi extravasar a raiva”. É trágico, desumano, mas, incompreensível?  

Há quem, apressadamente, só enxergue a ação do criminoso, e então conclui que o todo não passa de um fenômeno resultado de uma “patologia individual”, no caso de 3 pessoas cujos níveis de socialização e de autocontrole são a amostra da decadência, fruto da permissão e o colapso da “família tradicional”. Há, portanto, que voltar aos valores “tradicionais”: mais disciplina, mais autoritarismo. Paradoxalmente, no limite do encontro com o político são profundamente antidemocráticos.  

Na sociedade de mercado, no que se refere à equação “crime e castigo”, é fácil se desentender do desemprego e da exclusão social, e esconder a violência intrassistêmica constante, de dramáticas consequências no interior dos lares, na empresa, na escola, na relação entre aqueles que destilam a retórica do ódio e logo a transformam em discurso.

Violência misturada, naturalizada, mas que deixa o plano da superficialidade e se apresenta com crueldade nos episódios do militar da marinha que matou a tiros o vizinho porque se sentiu ameaçado por um homem negro; no assassinato da vereadora no Rio de Janeiro no 2018; na letalidade constante doa agentes armados contra as crianças e jovens de Paraisópolis que tem no Baile Funk a forma mais democrática e livre de divertimento, porque pelo Estado para quem a cultura é um estorvo no orçamento, nunca passaria a ideia de financiar um parque, uma tela de cinema, um clube de leitura ou outra forma de “arejar a cabeça”. Violência que puxada pelo fio termina, precisamente, na própria arquitetura de um sistema de privilégios, desigualdade econômica e desprezo pelos pobres.

Numa sociedade de milicias, na qual o próprio Executivo federal não cansa nem perde tempo para promover o uso de armas – os decretos 10.627 10.628, 10.629, e 10630, todos de 2021, constituem claramente um abuso das faculdades presidenciais, questionadas no STF e que não foram decididas a causa do pedido de vista do Min. Nunes Marques – a mensagem transmitida é que os conflitos devem ser solucionados a partir da violência. Isso se desprende, com clareza meridiana, no depoimento dos suspeitos: “fomos proteger o funcionário do Tropicália” e começaram a agredir ao jovem de 24 anos com um taco de beisebol. Na banalização da vida proteger é agredir, é avançar pela força, excluindo qualquer outra possível saída ao conflito. É a mensagem cotidiana de violência que a linguagem sórdida do governo conhece e pauta e que transcorre impunemente.   

Desde logo, há também um registro da carência de sensibilidade e ineficácia do poder público, que demora dias para iniciar uma investigação, apesar da vítima ter sido espancada e amarrada, morta, abandonada sem vida. Como deve ser um atentado à vida para que a guarda municipal do Rio atenda o chamado desesperado de uma testemunha? Quais devem ser as características da situação para que a apuração tenha a devida presteza?

E Moïse era um ser humano refugiado, um migrante forçado, negro, congolês. Quem conversou alguma vez com um refugiado sabe que a paz é a procura frequente de quem conhece a guerra. E a paz deveria se traduzir, como apontava Ralph Bunch, não só em que os homens não lutem militarmente, uns contra os outros, senão em que também tenham pão e arroz, liberdade e dignidade.

A de Moïse é outra vida desperdiçada, com a singularidade de que buscava o aconchego na sociedade que lhe reconheceu o crachá e a identidade de refugiado. Mas aqui no Brasil um refugiado tem que “correr atrás” e tem que “capturar os direitos em pleno voo”. A simplicidade do desconhecimento da realidade do refúgio faz pensar a muitos que a pessoa refugiada ou “foge” de seu país porque “algo deve”, ou que são despreparadas ou não merecedoras de uma oportunidade. É um engano. Conhecemos refugiados com preparo acadêmico, capazes de contribuir – e muito - ao crescimento do Brasil. É claro que não são todos os casos e que outros chegam sem esse preparo, mas lhes sobra disciplina e um valor civil inestimável.    

A sociedade, como conjunto de relações, é formada por seres humanos inatamente educáveis. A estatura moral e intelectual, a psiquê e a forma de reagir aos estímulos, positivos ou negativos, são condicionadas pela nossa formação e pelo entorno econômico-social em que desenvolvemos a existência. Por isso uma sociedade pode ser diferente e ser reconstruída, ainda que em tempos de crise e de demonstrações de tamanha crueldade, pareça uma tarefa titânica e sem futuro. E por isso temos que falar disto com seriedade e clareza, em salas de aula, na escola, na faculdade, no dia a dia de uma geração que vive entre as perdas e os ganhos do sistema que lhes incute o consumo e lhes nega o futuro. Em por isso que falar de direitos e de direitos humanos, de constituição, de refugiados, de vida e de como avançar a um grau maior de civilização.

E por isso o assassinato de Moïse não é algo isolado ou espontâneo. Senão um elemento do contexto de decomposição ético-valorativa própria dos períodos mais duros de redução de direitos.

Não sai da minha cabeça teimosa e “zurda” que tudo está, lá no fundo, na materialidade disfuncional do sistema, contrário às pretensões de 1988, rebelde à política pública predesenhada na Constituição, alimentada por aqueles que nunca absorveram nem aceitaram a expansão de valores diferentes ao machismo, ao patriarcalismo, à xenofobia e ao racismo.   

É desse processo que se desenrola ante os nossos olhos, e do qual é vítima a sociedade, por agentes plenamente conscientes de seu papel de vitimários, que o Brasil precisa sair, por supuesto, triunfante e fortalecido, neste 2022, na disputa eleitoral de outubro.

Vai em paz Moïse.       

 

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