Us against Them – Por Lucas Laire Faria Almeida

29/09/2017

“Black and blue
and who knows which is which and who is who”

(Roger Waters, 1973).

A atual tendência expansionista do Direito Penal é caracterizada pela violação de princípios penais e processuais penais clássicos (tais como tipos abertos, a flexibilização das regras de causalidade e imputação, a antecipação de tutela, penal a esferas anteriores ao dano, etc.) influenciada por uma sociedade de risco, defina por EUGÊNIO RAUL ZAFFARONI como o novo autoritarismo cool do século XXI.[1]

Recentemente, o Ministro de Estado da Defesa Raul Jungmann, em reunião para discutir (mais um) plano de segurança aventou a ideia de um projeto de lei que defende a abolição do sigilo profissional entre advogado e cliente, uma vez que entrevistas realizadas em presídios seriam acompanhadas, monitoradas, gravadas, registradas e arquivadas[2], como medida de combate a criminalidade organizada.

A ideia, prontamente refutada pela Ordem dos Advogados do Brasil, ganha corpo e apoiadores, especialmente ante a grave crise de segurança que pela qual passa o Brasil, sendo a situação pontual do Estado do Rio de Janeiro posta por sua mídia local (ou seria global?) em maior evidencia, como um diário de uma guerra urbana, filmado e reportado em tempo real aos telespectadores.

A expressão “guerra” é a mais comumente adotada, as Forças Armadas são convocadas e toda uma narrativa legitimadora de enfrentamento é construída. O discurso de nós e eles[3] nunca foi tão enfatizado (e Roger Waters não foi tão necessário), a ruptura social nunca esteve tão evidente.

Não é novidade que o Estado historicamente, enquanto forma organizada e ritualizada de exercício de poder sempre elegeu aqueles sobre os quais se deve fazer viver e aqueles que se deve deixar morrer, como forma autofundante de seu exercício e perpetuação, definindo-se assim no conceito de Racismo de Estado, a forma suprema do Biopoder, trabalhado por FOCAULT[4].

O inimigo declarado (hostis judicatus) sempre esteve presente, como bem nos lembra ZAFFARONI: O hostis, inimigo ou estranho nunca desapareceu da realidade operativa do poder punitivo nem da teoria jurídico penal (que poucas vezes o reconheceu abertamente, e quase sempre, o encobriu com os mais diversos nomes).[5]

Todavia, um Estado em guerra contra seu próprio povo, contrária a sua própria razão de ser, um Estado politicamente organizado se faz com um ordenamento jurídico democrático (legitimado pelo seu povo), por intermédio sobretudo, da promulgação de uma Constituição. Em verdade, podemos afirmar sem embargo, que o Estado, inexiste sem o direito, já que a sua certidão de nascimento, de ente soberano e independente, se dá com a Constituição. Bem como demonstra AFRANIO SILVA JARDIM: “Se o Estado não é um fim em si mesmo, mas um meio, parece- me inevitável a conclusão de que serve ele de instrumento para objetivos colimados pelo homem”. (JARDIM, 2003, p. 2)[6]A sistematização do Estado, tem como objetivo maior, o benefício do homem que vive em sociedade (delinquente ou não), tendo os Direitos Humanos como seu núcleo e a efetivação destes o seu principal objetivo.

Dessa forma uma Constituição garantidora de Direitos Humanos conduz naturalmente a um Direito Penal e Processual Penal igualmente garantistas, na medida em que se limita a atuação do poder punitivo e se preserva liberdades individuais com critérios técnicos de racionalidade jurídica. Por isso resistiremos, por isso não nos renderemos. O compromisso com a liberdade é antes de tudo um compromisso constitucional.

Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 05 de outubro de 1988, os princípios processuais do contraditório, isonomia e ampla defesa passaram à categoria de garantia constitucional (art. 5°, inciso LV). Atendo-se a este fato, ROSEMIRO PEREIRA LEAL classificou tais princípios como institutivos do Processo, Assim tais princípios possuem elevado grau de relacionamento e interdependência, o que acarreta na ausência de delimitação e teorização satisfatórias de cada princípio, que uma vez bem individualizados (consequentemente valorizados) tendem a reforçar e reafirmar o status de garantia constitucional do Processo, que nas palavras do doutrinador é concebido como: “Instituição regente e pressuposto de legitimidade de toda a criação, transformação, postulação e reconhecimento de direitos pelos provimentos legiferantes, judiciais e administrativos.” (LEAL, 2004, p.97) [7]

O direito de ação e o direito do Estado processar e punir, se equipara ao direito de defesa, estando ambos na mesma linha hierárquica, não podendo um sobrepor ao outro. O jurista italiano LUIGI FERRAJOLI ainda entende que, o juiz desenvolve papel fundamental para o equilíbrio das partes, devendo perseguir assim todas as condições necessárias para a configuração do contraditório, alcançando a paridade das partes, além de garantir o direito de defesa: A paridade das partes, à qual retornarei a propósito de garantia procedimental do contraditório, requer por sua vez duas específicas condições orgânicas, relativas à sua configuração e colocação institucional. A primeira condição concernente à acusação. Se é indispensável que o juiz não tenha funções acusatórias, é igualmente essencial que a acusação pública não tenha funções judiciais. […] A segunda condição concernente à defesa, que deve ser dotada da mesma dignidade e dos mesmos poderes de investigação do Ministério Público. Uma igual equiparação só é possível se ao lado do defensor de confiança é instituído um defensor público, isto é, um magistrado destinado a funcionar como Ministério Público de Defesa. (FERRAJOLI, 2002, PÁG. 467) [8]

A ampla defesa, direito fundamental esculpido no art. 5º, LV da Carta Política de 1988, deve ter proteção máxima, já que o que se discute é a liberdade e dignidade de um ser humano, bem supremo e direito fundamental. Dessa forma não está disponível às partes, facultar em se defender por profissional habilitado ou não, devendo sempre haver a dita defesa técnica, que é realizada por profissional habilitado para tanto

A importância da defesa técnica é reconhecida também pelo nosso Código de Processo Penal (CPP) quando proclama que “nenhum acusado, ainda que foragido, será processado ou julgado sem defensor” (art. 261) e, ainda, “se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvando-o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação” (art. 263). A falta da defesa constitui nulidade absoluta no processo penal (Súmula 523 do STF). A defesa deficiente, precária, débil ou inepta equivale à sua ausência, é pior, porque mascara a própria defesa.

Em seu magistério TUCCI entende que a ampla defesa na Constituição abrange “três realidades procedimentais, a saber: a) o direito a informação (Nemo inauditus damnari potest); b) a bilateralidade da audiência (contraditoriedade); e c) o direito à prova legitimamente obtida ou produzida (comprovação da inculpabilidade).”[9] Ora daí se infere a extrema relevância do contato pessoal, reservado, entre o cliente e o seu defensor (público ou particular), sob pena de frustrar o comando constitucional.

Os pontuais casos em que Advogados se utilizam de suas prerrogativas para servirem como emissários, longa manus de seus representados, devem ser tratados com a legislação já em vigor. Ao atuar com habitualidade para de facções criminosas, tais profissionais podem ser enquadrados nos tipos de associação (art.288, CP) ou organização criminosa (Lei 12.850/2013), uma vez que efetivamente as integram e desempenham uma função estratégica dentro de uma estrutura, conforme já exploramos com maior profundidade em nossa obra específica.[10]

Bem diferente da proposta de tratar a priori os profissionais responsáveis pela efetivação da defesa técnica, como potenciais criminosos e responsáveis pelo já histórico caótico quadro de segurança pública. Ora, as drogas, granadas, fuzis, balas perdidas e homicídios não se materializam nos parlatórios dos estabelecimentos prisionais e sim nas cidades e comunidades com policiamento precário e sucateado! Trata-se de uma tentativa (mais uma) de se eleger um bode expiatório para a incompetência de gestores públicos que ainda insistem falida política de repressão as drogas. Uma clara transferência de responsabilidades.

E já que estamos falando de organizações criminosas… Não seria o caso de questionar ao Ministro de Estado da Defesa se o projeto de lei em voga abrange também o monitoramento e gravação das conversas entre Advogados e alguns de seus colegas de Ministério ou até mesmo dos Advogados do Presidente da República (denunciados pelo Ministério Público Federal nas iras da Lei 12.850/2013)? Ou além de atentar contra o princípio constitucional da ampla defesa, o referido projeto de lei também vai ferir o principio constitucional da isonomia?


Notas e Referências:

[1] ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Tradução Sérgio Lamarão. 14. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Coleção Pensamento Criminológico).

[2]  https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/06/05/ministro-da-defesa-defende-lei-para-registrar-comunicacao-entre-presos-advogados-e-familiares.htm

[3] Us and Them. Pink Floyd, The dark side of the moon. Capitol Records.1973.

[4] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Tradução Sérgio Lamarão. 14. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Coleção Pensamento Criminológico) pg 23.

[6] JARDIM, Afranio Silva. Direito Processual Penal 11ª Ed. Rio de Janeiro, 2007.

[7] LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo – Primeiros Estudos 5ª ed São Paulo: IOB Thonsom, 2004.

[8] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

[9] TUCCI, Rógerio Laurita. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. Tese. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1993.

[10] ALMEIDA, Lucas Laire Faria. Crime Organizado: aspectos dogmáticos e criminológicos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017.


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Imagem Ilustrativa do Post: Chainlink Prison Fence // Foto de: Jobs For Felons Hub // Sem alterações

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