Trono e Poder: Navegar sem temer as ruínas (destronando autoridades) – Por Guilherme Moreira Pires e Patrícia Cordeiro

22/05/2016

"Todos querem abeirar-se do trono; é a sua loucura – como se a felicidade estivesse no trono! – Frequentemente também o trono está no lodo."

Nietzsche

Na potência surrealista e profundidade desestabilizadora de Warat, no estilo mordaz e irreverente de Feyerabend, em certas passagens de Nietzsche (como a destacada), parece existir uma certa leveza anárquica, uma suavidade fervente, incendiária, comparável às experimentadas por tantos anarquismos e anarquistas – uma leveza interligada à destruição de algo (não só a marteladas), que, uma vez destroçado, nos deixa mais leves, mas não necessariamente mais quietos; a inquietude é importante.

De alguma forma, este é um texto sobre liberdades. Mas, que liberdades?

Liberdades, de movimentações e experimentações libertárias, resistências e dissidências anarquicamente singulares, não capturadas, capazes de rasgar os delineados e demarcados lindes da zona de conforto dos manuais e caixinhas da vida (zonas demarcadas de conforto também metodológico, teórico, científico, criminológico), sacudindo as águas para além das artificialidades, reducionismos e violências dos sistemas sedimentados e fluxos pré-estabelecidos, territórios e fronteiras, zonas e tabus instituídos, por tantos desconhecidos, que provavelmente nem mais estão vivos, mas cujos cadáveres encontram-se cristalizados nos, aqui sim, ainda vívidos tentáculos do poder (nos controles, hierarquias e autoridades do presente).

Não desejamos por, mas transpor (mapeamentos, limites, correntes), num atravessar-rasgar.

Há manuais que nos dizem o que é belo, o que é justo, o que é bom,  o que é divertido, e até o que é inspirador. Há manuais que nos dizem até onde vai a crítica, mapeando-a, e até documentando quem tem a autoridade para lançá-la (e obviamente quem não tem).

Há manuais sobre como sistemicamente reacionar ante as situações codificadas como crime (em outro manual, ou melhor, em uma espécie de cardápio de crimes); e até há manuais para se entender outros manuais.

Manuais-mapas, unidades sistêmicas, violências e castrações, permutam as complexidades das versatilidades anárquicas (múltiplas e libertárias) pelas (sobre)posições totalizantes de poder, sacrificando as primeiras pelos dejetos sedimentados que nos regem; mundos melancólicos e gosmificados.

Submissão, obediência e complacência às movimentações dos múltiplos tentáculos (controles, hierarquias, sequestros) que nos violentam, vigiam, regulam, capturam, catalogam, ameaçam, deformam, deprimem, destroçam; usam, reusam, imbecilizam, sacrificam: tentáculos que nos observam, suprimem, controlam, e (no limite) nos matam.

Cessar de alimentar os dejetos de mundos melancólicos (como o poder punitivo) é básico; e para a morte dos dejetos, a morte de certos desejos também é bem-vinda. Aqui, novamente, a versatilidade da anarquia em muito contribuiria, não fosse tão menosprezada e violentada pelos energizadores de mundos melancólicos e culturas repressivas.

Contra as totalizações, obediências, adestramentos, (sobre)posições autoritárias; contra todo o Estado que nos parasita e reifica; contra a complacência de rebanho ante a ideia (e no limite o desejo) de autoridade.

Sem coroar parasitas, e (oxigenar) a autoridade naturalizada que nos habita.

Para além do carimbo de autoridade dos governos, deuses e especialistas que articulam como melhor nos conduzir, ressoam criticidades e liberações questionadoras, desestabilizadoras, com potência de transposição de linguagem, rasgando os limites da caixinha demarcada do permitido e possível.

O rompimento da linguagem-crime é apenas um exemplo de ruptura possível, sendo possível pensar (e questionar) muito além, com transposições ativadoras de revoltas, abalos e transgressões, aonde quer que seja, desencadeando liberdades de verdade (sobremaneira distintas das liberdades de papel, dos códigos e manuais, com os quais dormem tantos juristas, que também, bem que poderiam ser literalmente de papel, assim se dissolveriam e nos violentariam menos).

Isso dito, ao nos movimentarmos para além dos fechamentos e limites instituídos, sacudimos as águas para além desses confins limítrofes, navegando como piratas para além da geografia oficialmente estabelecida (com seus mapas incompatíveis com a complexidade do mundo), não encarcerados por nenhuma cartografia do poder.

Saberes, sistemas e poderes demarcadores do possível não mais nos governam, não mais castram nossa imaginação recebendo gratidão, e então as liberdades já não são de papel.

Essas movimentações irreverentes desencadeiam potentes ondas que balançam, provocam tremores nas bases e na ordem do território instituído; ondas que desobedecem as linhas pontilhadas, e desconhecem os limites e fechamentos impostos, ou melhor, que muito bem os conhecem, mas não os reconhecem nem os respeitam complacentemente, como legítimos, necessários e imprescindíveis, atravessando-os, engolindo-os, mastigando-os e cuspindo-os rumo à estratosfera: limites e demarcações arremessados para longe, ficções e artificialidades limitantes e violentas dilaceradas e mastigadas, para que não nos mastiguem.

Ondas com o potencial de transpor e transfigurar, dilacerar e mastigar o limitado acervo informacional da burocracia de lugares ordeiramente mapeados, catalogados, permitidos na geografia do poder, também supressor de movimentações, discursos, posições não transcritas e não circunscritas na zona instituída do possível, forjado e imposto, acorrentado aos fluxos vigentes e demandas de ordem do momento.

Navegando sem obedecer as categorias e mapeamentos da área territorial oficial, avistar e alcançar lugares que sequer foram catalogados torna-se uma possibilidade real; e inúmeros lugares esplendidos que inexistiam na cartografia oficial, logo, não-lugares (desse referencial), são então revelados.

Um desses lugares (não-lugares) nos remete à miséria do voto, mais precisamente, contra tal miséria ludibriosa (contra os deuses não-deuses, conjuradores e partícipes instituidores, legitimadores, apoiadores dos jogos asquerosos do poder). Imprescindível abandonar o olhar adestrado, condicionado a focar-se nas linhas pontilhadas da cartografia oficial do poder, em cada contexto, dilacerando também os limites dos mapas e manuais das militâncias (militantes ou militares?), que por vezes embaralham-se desastrosamente.

Limites intragáveis mastigados e cuspidos para fora do mundo, para que não violentem nossas vidas; e assim seguimos nos movimentando, para além da reserva oficial de demarcação do possível, energizando as ondas provocadas por nós, em cada movimentação irreverente à demarcação incidente sobre nós e o mundo; ondas gigantes que repercutem sobre as imóveis bases do poder, que, ante tantas fissuras, finalmente se movem, cessando de mostrarem-se imóveis, ainda que por instantes. Valorizar e replicar os instantes, também é importante. Gotas que formam oceanos, e que são oceanos.

A versatilidade carrega consigo uma potência, e a potência anárquica das versatilidades de tantas singularidades mastiga a simplicidade e arbitrariedade dos fechamentos que nos são apresentados como imprescindíveis, úteis e necessários.

Nômades que são, transitando, e mais que ativando, vivendo e sendo complexidades, os libertários jamais se cristalizaram numa cadeira de criminologia; decerto anarquizam (e desestabilizam) mesmo tais territórios, com enorme potencial de contribuição, mas cientes de que o estupor (e o fascínio) nos presentes espaços, também oxigena a autoridade demarcadora e totalizante da qual se pretende desvencilhar.

Navegar para além das demarcações do possível (é possível), anarquizando e destronando deuses, liberando e desencarcerando as próprias movimentações, não reféns das margens de um mapa de movimentos, de uma doutrina, de uma determinada tradição cartográfica oficial e hegemônica,  não acorrentados nos grilhões de servidão a um senhor, livres de um rei ou governo, não interruptores dos trilhos do tempo, seguindo – e destronando! – sem temer as ruínas.

Seguir sem temer.

Sobre os desfavorecidos e amargurados, apaixonados (condicionados) pela continuidade das autoridades regentes do mundo, que seguem navegando encarcerados, acreditando em discursos de ordem (enquanto seguem ordens), e seguindo fielmente um mapa – ou manual – oficial forjado pelo rei e seus burocratas especialistas, servos legitimantes e demais apoiadores do melancólico sonho de serem bem (ou melhor) governados, o que arriscamos dizer é que poderiam ter sido mais felizes (e menos violentados, castrados, adestrados, coisificados, usados, reusados, sacrificados), se tivessem dedicado menos tempo e esforço em andar nas linhas demarcadas, pontilhadas, e mais tempo e esforço incumbidos em como desvelar, dessacralizar, destronar as origens de tanta infelicidade e violência.

Se abolissem de si toda a complacência (de rebanho), para com os jogos do poder, readquirindo e redimensionando a extensão, repercussão e ressonância do potencial outrora perdido, castrado, dilacerado, suprimido, quanto tempo aguentariam as autoridades e suas pretensões de totalidade?

Seguimos promovendo ondas que paradoxalmente reacendem chamas libertárias, que descongelam o que se solidificou, e anarquicamente derretem a autoridade.

Seguimos navegando anarquicamente, sem almejar instituir uma instância, um novo castelo sistêmico do poder, e isso curiosamente gera desconfianças, especialmente dos que se recusam a imaginar um mundo sem tronos, ou dos que não acreditam que alguém não os cobice, precisamente por declarada ou secretamente cobiçá-los muito, a ponto de não imaginarem outros prazeres não atinentes aos controles.

Não entenderam que nossa felicidade está nas liberdades.

O trono não está no lodo; o trono é o lodo.

Que precisa ser questionado, obliterado, incinerado,

derretido, extirpado, erradicado, aniquilado.

Até que o lodo sedimentado tenha sido finalmente

destronado.

"Ser governado significa que todo movimento, operação ou transação que realizamos é anotada, registrada, catalogado em censos, taxada, selada, avaliada monetariamente, patenteada, licenciada, autorizada, recomendada ou desaconselhada, frustrada, reformada, endireitada, corrigida.

Submeter-se ao governo significa consentir em ser tributado, treinado, redimido, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; tudo isso em nome da utilidade pública e do bem comum.

Então, ao primeiro sinal de resistência, à primeira palavra de protesto, somos reprimidos, multados, desprezados, humilhados, perseguidos, empurrados, espancados, garroteados, aprisionados, fuzilados, metralhados, julgados, sentenciados, deportados, sacrificados, vendidos, traídos e, para completar, ridicularizados, escarnecidos, ultrajados e desonrados.

Isso é o governo, essa é a sua justiça e sua moralidade! ...

Oh personalidade humana!

Como pudeste te curvar à tamanha sujeição durante sessenta séculos?" Pierre-Joseph Proudhon


Notas e Referências:

CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira.  A castração da imaginação e os Etapismos de um Amanhã prolongado, eternizado, que nunca vem: imaginação capturada e ativadora de novas-velhas capturas. Empório do Direito, 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/a-castracao-da-imaginacao/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 30/03/2016.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Tradução, notas e posfácio:Paulo César de Souza.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Anarquismos: potências, dissidências e resistências. Complexidades para além das leis e da Prisão-Prédio. Empório do Direito, 2015. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/abolicionismos-e-anarquismos-potencias-dissidencias-e-resistencias-complexidades-para-alem-das-leis-e-da-prisao-predio-por-guilherme-moreira-pires/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 30/03/2016.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos entre disputas, controles, capturas e cruzadas: militantes ou militares? Empório do Direito, 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/abolicionismos-entre-disputas-controles-capturas-e-cruzadas/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 30/03/2016.

PIRES, Guilherme Moreira. Nossa complacência de rebanho e o potencial adormecido. Existe solução? Empório do Direito, 2015. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/nossa-complacencia-de-rebanho-e-o-potencial-adormecido-existe-solucao-por-guilherme-moreira-pires/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 30/03/2016.

PIRES, Guilherme Moreira. Símbolos, linguagem e poder: análise da coesão forjada a partir de uma perspectiva anarquista (e abolicionista). Empório do Direito, 2015.  Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/simbolos-linguagem-e-poder-analise-da-coesao-forjada-a-partir-de-uma-perspectiva-anarquista-e-abolicionista-por-guilherme-moreira-pires/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 30/03/2016.

PIRES, Guilherme Moreira. Liberdades de papel: algo sobre controle institucional, pressões e censura. Empório do Direito, 2016. Disponível em: <emporiododireito.com.br/liberdades-de-papel/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 18/04/2016.

PIRES, Guilherme Moreira.  Deuses brincando com vidas (Poesia anarco-abolicionista).  Empório do Direito, 2016. Disponível em: <emporiododireito.com.br/deuses-brincando-com-vidas/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 18/04/2016.

PIRES, Guilherme Moreira.  Brasil em Crise: todos brincando com a bola da democracia. Histórias de amor ao poder do tabuleiro (anti)democrático. Empório do Direito, 2016. Disponível em: <emporiododireito.com.br/deuses-brincando-com-vidas/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 18/04/2016.

PROUDHON, Pierre-Joseph.(1851), Idée générale de la révolution au XIXe siècle. Antony: édition de la Fédération Anarchiste. Publicado em 1979.

WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista  pelos  lugares  do  abandono  do sentido  e  da  reconstrução  da  subjetividade.  Florianópolis: Fundação Boietux, 2004.

WARAT, Luis Alberto. Manifestos para uma Ecologia do Desejo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1990.


 

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