THIRD PARTY FUNDING COMO FORMA DE GARANTIA DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA

10/07/2018

Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

  1. O Princípio Fundamental do Acesso à Justiça

O princípio do acesso à justiça trata-se de um direito fundamental que encontra previsão expressa no artigo 5o, inciso XXXV, da Constituição Federal, assim como nas principais Convenções Internacionais de Direitos Humanos, tais quais a Convenção Europeia de Direitos Humanos (artigo 6o) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 8.1).

Inicialmente, a garantia do acesso à justiça limitava-se ao direito formal de proteção judicial, “a teoria era a de que, embora o acesso à justiça pudesse ser um “direito natural”, os direitos naturais não necessitavam de uma ação do Estado para a sua proteção” (CAPPELLETTI, 1988, p. 9). Dessa forma, o Estado não precisava se preocupar com os problemas que pudessem vir a existir com relação à efetividade do acesso à justiça, não havendo a necessidade de lidar com o problema da “pobreza no sentido legal”, que poderia vir a impedir muitas pessoas de terem acesso à justiça e suas instituições, por exemplo.

Com o passar do tempo, as sociedades modernas passaram a reconhecer a necessidade de o Estado intervir para assegurar o efetivo acesso à justiça, principalmente na medida em que as reformas do wealfare state foram avançando, uma vez que de nada adiantava os novos direitos individuais e sociais, sem mecanismos que pudessem assegurar a sua reivindicação.

Nesse sentido, “o acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos” (CAPPELLETTI, 1988, p. 9).

O Novo Código de Processo Civil, buscando assegurar que os valores e normas fundamentais, tais quais o acesso à justiça, sejam observados, trouxe positivado em seu artigo 3o, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, estimulando formas alternativas para a solução de conflitos.

Segundo Marcus Vinicius Rios Gonçalves, com essa previsão expressa, o Novo Código de Processo Civil pretende assegurar o direito à proteção judicial efetiva, sendo que o acesso a justiça poderia ser traduzido “no direito de ação em sentido amplo, isto é, o de obter do Poder Judiciário uma resposta aos requerimentos a ele dirigidos.” (GONÇALVES, 2016, p. 65).

Portanto, extrai-se do artigo 3o do Código de Processo Civil que o Estado tem o dever de atuar de forma adequada, para outorgar a tutela requerida pelas Partes, não sendo permitida qualquer tentativa de afastar a apreciação pelo Poder Judiciário. Sendo certo que nada impede a busca de outros mecanismos de solução de conflitos, até mesmo não jurisdicionais, como estimula o próprio artigo supracitado em seus parágrafos, uma vez que “uma coisa é negar, o que é absolutamente correto, que nenhuma lesão ou ameaça a direito possa ser afastada do Poder Judiciário. Outra, absolutamente incorreta, é entender que somente o Judiciário e o exercício da função jurisdicional podem resolver conflitos” (BUENO, 2016, p. 36).

Contudo, apesar da garantia constitucional à inafastabilidade da jurisdição, é cediço que existem alguns obstáculos para o efetivo acesso à justiça, sendo que dentre os principais deles estariam o custo do litígio, haja vista que na medida em que o tempo de duração do processo aumenta, também se elevam os custos para a Parte, e apesar de o Novo Código de Processo Civil trazer varias inovações visando sempre a efetividade e agilidade da prestação jurisdicional, ainda assim, considerando as crises do processo e do sistema judiciário, sofremos com a morosidade das decisões e soluções definitivas dos processos.

Verifica-se, portanto, que apesar de estar previsto no ordenamento jurídico, existe uma série de fatores que precisam ser implementados para que seja possível e acessível uma prestação judicial célere, barata e satisfatória para todos aqueles que recorrem ao Poder Judiciário.

Destaque-se, ainda, que nos dias atuais, qualquer gestor empresarial, antes de iniciar um litígio, mesmo sabendo de seus direitos diante do caso concreto, calcula os custos financeiros para prosseguir com a tutela judicial, a fim de averiguar se realmente valeria a pena iniciar uma discussão judicial para ver garantido o seu direito. O que demonstra claramente, que os custos processuais são um impeditivo ao acesso à justiça não apenas para os mais pobres.

Diante disso, como uma forma de solucionar a tensão entre a necessidade de custear o processo, que acaba por envolver vultuosos valores, e o principio do acesso à justiça, tem se alastrado pelo mundo a prática da transferência subjetiva dos custos dos processos, uma vez que a falta de recursos suficientes para enfrentar um litígio não podem impedir o acesso à justiça.

 

  1. Transferência dos Custos Processuais à Terceiros (Third Party Funding)

Conforme vimos, todo e qualquer cidadão possui o direito fundamental, assegurado pela Constituição Federal e pelo Código de Processo Civil, de ir ao Poder Judiciário, contudo, para que possa usufruir de tal direito, existe uma série de custos com os quais a parte tem que arcar.

Assim, para que efetivamente todo cidadão tenha acesso à justiça, é necessário pensar em alternativas para aqueles que não possuem condições de arcar com os custos do processo. Em função disso, começamos a ver em todo o mundo um movimento relacionado à transferência dos custos derivados da tutela jurisdicional à um terceiro, estranho à relação processual.

Nesse sentido, entende-se que seriam possíveis convenções processuais firmadas com o intuito de transferir, total ou parcialmente, os custos de um processo para terceiros, que não integram a relação jurídica material, nem o processo.

Com essa pratica, os litigantes habituais poderiam efetuar a transferência negocial dos custos do processo, o que traria a previsibilidade e redução dos riscos provenientes do processo, beneficiando-os, na medida em que com a transferência dos custos para um financiador, a demanda não impediria, por exemplo, que o financiado participasse de eventual transação comercial, tal qual uma fusão, e ainda, não traria qualquer prejuízo para uma oferta pública de ações em bolsa, por exemplo.

No caso de litigantes eventuais, também é possível prever algumas vantagens, principalmente para aqueles mais pobres, promovendo-se, assim, o acesso à justiça, uma vez que, seria possível a propositura de ação por pessoas que não poderiam suportar o custoso processo judicial se não fosse pelo financiamento.

Dentre as formas de transferência subjetiva do custo do processo, podemos destacar o contrato de financiamento processual (third party funding), que, de modo geral, trata-se de um acordo em que um terceiro investidor, o “funder”, compromete-se a financiar o caso, efetuando o pagamento da totalidade ou parte dos custos decorrentes do processo. Em contrapartida, o “funder” recebe uma porcentagem do valor obtido ao final do processo pela parte financiada. Sendo que normalmente, no caso de a parte financiada não sair vencedora no litígio, o “funder” perde o valor investido.

Em outras palavras, trata-se de uma convenção processual através da qual um investidor, estranho à relação processual, assume os custos do processo, englobando inclusive honorários advocatícios e periciais, com a contrapartida de receber um parte da quantia obtida com a vitória no processo.

Conforme Jason Lyon, o financiamento de um processo por um terceiro consiste em uma mescla entre duas modalidades de empréstimos já praticadas nos Estados Unidos há um bom tempo, que seriam evoluções do Acordo de Honorários de Êxito (“contingency fee agreement”), quais sejam (i) o Financiamento Pré-Acordo; e (ii) a Ação Consorciada (“syndicated lawsuit”) (LYON, 2010/2011, p. 571).

Isso porque nos financiamentos pré-acordo, os advogados adiantam certas quantias aos seus cliente, para que possam custear sua subsistência durante o processo, e nas ações consorciadas, o autor busca investidores para a sua demanda, com os quais divide proporcionalmente a quantia oriunda da vitória no processo.

Tendo em vista a dinâmica de funcionamento do Contrato de Financiamento Processual, podemos verificar que trata-se de uma ótima solução para possibilitar o acesso à justiça àqueles que não tenham recursos financeiros suficientes ou que não tenham recursos disponíveis no momento, para suportar os custos de um litígio.

Portanto, como bem expôs PJ Kirby QC (“Head of Chambers at Hardwicke”), o Contrato de Financiamento Processual permite a propositura de ações em situações em que, por falta de recursos, não poderiam sem propostas, garantindo, assim, a efetividade ao acesso à justiça.

 

  1. Considerações Finais

A presente exposição buscou introduzir o tema da transferência do custo do processo a terceiros, na modalidade de financiamentos processuais, como alternativa para a garantia do efetivo acesso à justiça.

Conforme exposto, muitas vezes, a necessidade de recolhimento de custas processuais acabam impedindo o acesso à justiça não só pelos menos afortunados e por empresas que estejam passando por dificuldades financeiras, como por demais pessoas físicas e jurídicas que, considerando os custos e a longa duração dos litígios se sentem inibidos em exercer seu direito fundamental de acesso à justiça.

Nesse contexto, a prática de transferência dos custos do processo à terceiros se apresenta como uma solução efetiva para enfrentar os obstáculos ao acesso à justiça, especialmente com a implementação do contrato de financiamento processual.

Apesar de ainda pouco utilizados no Brasil e da ausência de legislação específica sobre referida modalidade de contrato, inexistem vedações legais, de forma que, para que todos os sujeitos de direito possam efetivamente ter acesso à justiça, é importante que o Brasil acompanhe esse movimento que está crescendo mundialmente acerca do “third party funding”.

O “third party funding” é um mecanismo que surgiu em processos judiciais do common law e que ganhou grande destaque na arbitragem internacional. E é justamente no campo da arbitragem que esta modalidade de transferência de custos processuais vem ganhando força e se tornando mais conhecida no Brasil.

Conclui-se, portanto, que os custos do processo, por mais que possam ser parcelados, ainda são fortes impeditivos ao acesso à justiça, e o Contrato de Financiamento Processual se mostra como instrumento hábil a permitir o amplo acesso à justiça não só por aqueles que realmente não possuem condições de suportar os custos do processos, como também por aqueles que, muito embora tivessem recursos disponíveis para custear o processo, não fosse o financiamento, se sentiriam inibidos de exercer seu direito de acesso à justiça, frente aos altos custos com os quais teria que arcar.

 

Notas e Referências

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris. 1ª Ed., 1988-2002.

GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado. 6a ed. – São Paulo: Saraiva, 2016.

BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2015.

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 19a ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2017.

MARINONI, Luiz Guilherme Bittencourt. O custo e o tempo do processo civil brasileiro. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/direito/article/download/1770/1467>. Acesso em 16/05/2018.

CÔRTES, Osmar Mendes Paixão; MAGALHÃES, Ana Luiza de Carvalho M. O acesso à justiça e a efetividade da prestação jurisdicional – o inciso LXXVIII do art. 5o da Constituição Federal inserido pela EC 45/2004. Revista de Processo | vol. 138/2006 | p. 79-91 | agosto/2006 DTR\2006\583.

CABRAL, Antonio do Passo. Convenções sobre os custos da litigância (II): introdução ao contrato de seguro e ao financiamento processuais. Revista de Processo | vol. 277/2018 | p. 47-78 | março/2018 DTR\2018\8980.

VIVEIROS, Leonardo. Entrevista concedida à INOVARB/AMCHAM em maio de 2017. Disponível em: <https://estatico.amcham.com.br/emkt/2017/files/entrevista-inovarb-amcham.pdf>. Acesso em 19/05/2018.

 

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