Sobre medo, perigo, e crime - Por Daniela Villani Bonaccorsi

10/11/2017

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

“Um dia…pronto! me acabo.
 Pois seja o que tem de ser.
Morrer: que me importa?
O diabo é deixar de viver!“ 

Mario Quintana 

Somos iguais aos animais, em que riscos terríveis podem acontecer a eles e a nós. Mas somos diferentes deles porque eles só sofrem como se deve sofrer, isto é, quando acontece. E nós, ansiosos e tolos, antecipamos o medo, o perigo e sofremos sem que ele tenha acontecido. Sofremos imaginando o que pode vir a acontecer. Ele pode acontecer? Pode. Mas ainda não aconteceu e nem se sabe se acontecerá.

Mas, o que o perigo tem a ver com uma análise jurídica? Muito... É ele que hoje justifica os inúmeros crimes de perigo abstrato, sim, “abstrato mesmo”. Apesar da Constituição marcar o rompimento da sociedade com uma antiga ordem caracterizada por um longo processo histórico de cunho autoritário e, sobretudo, que marca “o reconhecimento da existência de um núcleo inviolável de direitos, constituído pelos direitos fundamentais, cuja tutela é a prioridade máxima do Estado e que não podem ser suprimidos nem mesmo a pretexto de atender à vontade da ampla maioria [...]”, ela não controla o incontrolável, o medo e os perigos que são inerentes à vida moderna.

Por imposição constitucional, o modelo de direito penal moderno passou a se pautar com característica eminentemente objetiva e fundada na proteção de bens jurídicos fundamentais. Somente se pode incriminar condutas quando o bem jurídico a ser protegido estiver presente entre as garantias e direitos fundamentais insculpidos na Constituição. A proposta do denominado direito penal constitucional é conseqüência direta dos relacionamentos entre o indivíduo e o Estado, para que esse seja meio para a tutela da pessoa humana, dos seus direitos fundamentais de liberdade e de segurança social.

E, como consequência, dessa forma o denominado modelo penal garantista foi recebido representando o fundamento interno ou jurídico da legitimidade da legislação e da jurisdição penal, vinculando normativamente a coerência com princípios constitucionalmente reconhecidos e limitando o poder com fins garantísticos.

Mas, não são poucas as descrições e propagandas de condutas e atividades que poderiam oferecer perigo aos bens jurídicos. Contemporaneamente, vivemos numa sociedade complexa. Temos medo de tudo. Medo da possibilidade de um mal, medo da possibilidade de um assalto, medo do porvir. Não, não há controle, e nesse mundo em contínua expansão, a propaganda da violência toma proporções cada vez maiores, onde se tem como pretexto um“direito penal de riscos”, caracterizado por uma excessiva intervenção estatal, uma “legislação de emergência” sem o estabelecimento de princípios axiológicos ou um modelo garantista, mas o desenvolvimento “hipertrófico” do direito penal, com tendências intervencionistas e preventivas.

Hoje, há uma proliferação de tipos penais classificados como crimes de perigo abstrato, que passaram a ser característica do moderno direito penal. Recorre-se ao direito penal como forma de prevenção para os riscos de uma sociedade moderna, afinal, nada como a boa e velha ameaça de pena para difundir uma idéia de que a “segurança” e “paz social” reinarão... “Temos assistido a uma crescente antecipação de tutela, mediante a configuração de delitos de perigo abstrato, com caráter hipotético e muitas vezes improvável do resultado lesivo e pela descrição aberta e não taxativa da ação.”

Mas, apesar da vitimização e insegurança generalizada, dentre os princípios constitucionais penais garantísticos, na atualidade do modelo penal deve haver fundamentação no princípio da ofensividade do bem jurídico, que parte da idéia de que não há crime sem ofensa, lesão ou perigo concreto de lesão.

Considerando-se o modelo garantista, não é suficiente adequar uma conduta punitiva à forma, mas “asseverar a relevância penal dos comportamentos que se mostrem realmente, ao menos em termos potenciais, lesivos ao bem-jurídico.” Se o direito penal visa à tutela do cidadão e minimação da violência, as proibições penais justificadas devem ser necessárias. Impende levar em consideração que estão reconhecidos em nível normativo privilegiado não somente os clássicos princípios liberais, senão também outros novos, como é o caso do princípio da necessária ofensividade no direito penal. “A necessária lesividade do resultado, qualquer que seja a concepção que dela tenhamos, condiciona toda justificação utilitarista do direito penal como instrumento de tutela e constitui seu principal limite axiológico”.

Há ofensa ao Princípio da Ofensividade na incriminação de condutas que não trazem a possibilidade concreta de dano, porque não basta uma constatação meramente formalista do delito, mas uma relevância quando o bem jurídico passa a ser concretamente afetado.

Ao compreender-se a fundamentação dos princípios constitucionais penais e seu modelo garantista, analisando a excessiva criação dos chamados crimes de perigo abstrato, busca-se demonstrar que a validade de uma medida punitiva não depende apenas de requisitos formais.

O sistema jurídico-penal não poderia, unicamente, fazer frente às realidades da sociedade de perigo ou dos modernos riscos da vida, em razão da intervenção efetiva do Direito Penal significar o sacrifício de garantias essenciais. Nesse sentido:

“A punição por perigo abstrato significa uma sanção fundamentada apenas no desvalor da ação, independentemente da presunção de qualquer resultado, pois é a mera presunção do perigo. A intervenção penal nessa seara deve ser evitada, porque fundamentada em mera desobediência à norma, o que, além de contrariar a própria razão de ser da norma penal (...) é cruel e vedado pelo nosso Código penal que não admite crimes sem resultado.” (BRODT, 2005, p. 113) 

Com o fundamento constitucional do direito penal, em conformidade com o princípio da ofensividade dos bens jurídicos, o perigo concreto constitui pressuposto à tipificação penal e“a sanção penal só se justifica quando a conduta do agente tenha submetido o bem jurídico tutelado penalmente pelo menos a um perigo real, concreto”.

Assim, há de se questionar a validade dos crimes que não causem dano ou perigo de dano. Não é possível punir o que ainda está para acontecer, mesmo que exista medo... Para aceitar garantias constitucionais é preciso coragem. Essas, não existem sem perigo nem medo, mas a despeito dele. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

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