Separação de bens convencional. A polêmica relacionada à partilha de bens - Por Gilberto Bruschi

01/11/2016

Importante questão a ser debatida no presente ensaio é em relação à partilha de bens e se o cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da separação convencional de bens, seria ou não herdeiro do falecido, mesmo com a existência de testamento que diga o contrário, compondo, desta forma, o rol dos herdeiros necessários.

Há o entendimento de que o cônjuge sobrevivente não deve ser considerado herdeiro e que, portanto, na existência de testamento que preveja, por exemplo, a partilha dos bens voltada totalmente para o descendente, a este devem ser destinados todos os bens deixados pelo falecido, tanto os que compõem a parte legítima como a disponível.

Exemplo de tal posicionamento foi exarado pelo Superior Tribunal de Justiça, por sua 3ª Turma, em acórdão que discutia o ponto principal do presente trabalho, decidindo que, em nenhuma espécie de regime de separação de bens, legal ou convencional, o cônjuge sobrevivente concorre com os decentes.

Nesse passo, antes de explicarmos nossa opinião sobre tema tão relevante, convém transcrever um trecho do voto da relatora, Min. Nancy Andrighi, proferido em tal acórdão:

“Por tudo isso, a melhor interpretação é aquela que prima pela valorização da vontade das partes na escolha do regime de bens, mantendo-a intacta, assim na vida como na morte dos cônjuges. Desse modo, preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, haja ou não bens particulares, partilháveis, estes, unicamente entre os descendentes.

A separação de bens, que pode ser convencional ou legal, em ambas as hipóteses é obrigatória, porquanto na primeira, os nubentes se obrigam por meio de pacto antenupcial – contrato solene – lavrado por escritura pública, enquanto na segunda, a obrigação é imposta por meio de previsão legal.

Sob essa perspectiva, o regime de separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.829, inc. I, do CC/02, é gênero que congrega duas espécies: (i) separação legal; (ii) separação convencional. Uma decorre da lei e a outra da vontade das partes, e ambas obrigam os cônjuges, uma vez estipulado o regime de separação de bens, à sua observância.

Dessa forma, não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, salvo previsão diversa no pacto antenupcial, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge sobrevivente não é herdeiro necessário”.[1]

Data maxima venia, não é possível que este entendimento seja considerado razoável, tendo em vista a ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.829, I, do Código Civil.

Tal argumento deve ser considerado retrógrado e obsoleto, uma vez que apenas poderia fazer sentido quando sob a égide do Código Civil revogado de 1916.

Esta, aliás, é a posição de Flávio Tartuce ao nos ensinar que “o cônjuge sobrevivente é herdeiro necessário, qualquer que seja o regime de bens do casamento, e se este for o da separação convencional, ele concorrerá com os descendentes à herança do falecido”.[2]

Há que se destacar, no mesmo sentido, o Enunciado n. 15 do IBDFAM, elaborado no X Congresso Brasileiro de Direito de Família – “Famílias Nossas de Cada Dia”, Belo Horizonte – outubro de 2015, que assim dispõe: “Ainda que casado sob o regime da separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente é herdeiro necessário e concorre com os descendentes”.

Para Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery a interpretação correta a se fazer é:

“Cônjuge herdeiro necessário. Separação convencional (CC 1687 e 1688). O cônjuge sobrevivente casado sob o regime da separação convencional de bens (CC 1687 e 1688) não é alcançado pela exceção do CC1929 I, que se refere, apenas e expressamente, aos regimes da comunhão universal e da separação obrigatória que, no sistema do CC, não se confunde com o da separação convencional. Como o CC 1829 I estabelece exceção à regra geral sobre sucessão do cônjuge (CC 1830 e 1845), essa exceção deve ser interpretada restritivamente, como manda o princípio da hermenêutica – excepciones sunt strictissima interpretationes (Maximiliano, Hermenêutica, n.235 e 271, pp 205 e 225). A regra do CC 1845, para fins do CC 1829 I, se aplica ao cônjuge sobrevivente casado sob o regime da separação convencional. Havendo herdeiros descendentes, o cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da separação convencional de bens é herdeiro necessário em concorrência com esses mesmo descendentes do de cujus. (...)”.[3]

José Carlos Van Cleff de Almeida Santos e Luís de Carvalho Cascaldi, assim esclarecem:

“Concorrência do Cônjuge com descendentes – (...) De acordo com o tipificado no art. 1.829, I, do CC, o cônjuge é chamado à sucessão concorrendo com os descendentes do autor da herança, salvo se o casamento tenha ocorrido por meio do regime da comunhão universal, da separação obrigatória de bens e da comunhão parcial, desde que, nesse caso, o autor da herança não houver deixado bens particulares.

Assim, o cônjuge será herdeiro quando o casamento for regido pelo regime da separação convencional, desde que o autor da herança tenha deixado bens particulares a inventariar”.[4]

Já, segundo a lição de Carlos Roberto Gonçalves[5] a interpretação correta é:

“O Código Civil de 2002 alterou profundamente esse panorama, trazendo importante modificação na ordem de vocação hereditária. Incluiu, com efeito, o cônjuge como herdeiro necessário, concorrendo com os descendentes e ascendentes, e não mais sendo excluído por essas classes.

Nos termos do art. 1.846 do Código Civil, “pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima”. Não podem eles ser afastados pelo arbítrio do autos da herança, sendo-lhe defeso diminuir, onerar, gravar, ou mesmo suprimir a legítima dos herdeiros necessários, salvo caso de deserdação (arts. 1961 e s.)”.[6]

No âmbito do STJ, acórdão proferido no primeiro semestre de 2015, dá a exata noção do comportamento atual daquela corte com relação ao fato do cônjuge sobrevivente colocar-se na posição de herdeiro necessário do “de cujus”, julgado pela Segunda Seção e relatado pelo Ministro João Otávio de Noronha, que assim decidiu:

“CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE. HERDEIRO NECESSÁRIO. ART. 1.845 DO CC. REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS. CONCORRÊNCIA COM DESCENDENTE. POSSIBILIDADE. ART. 1.829, I, DO CC. 1. O cônjuge, qualquer que seja o regime de bens adotado pelo casal, é herdeiro necessário (art. 1.845 do Código Civil). 2. No regime de separação convencional de bens, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes do falecido. A lei afasta a concorrência apenas quanto ao regime da separação legal de bens prevista no art. 1.641 do Código Civil. Interpretação do art. 1.829, I, do Código Civil. 3. Recurso especial desprovido”.[7]

Passando ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acórdão recente mantem o mesmo norte traçado pelo Superior Tribunal de Justiça, no aresto acima citado, seguindo o entendimento de que o cônjuge sobrevivente, ainda que casado sob o regime de separação de bens, concorre com os descendentes:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO E PARTILHA. DECISÃO RECORRIDA ACOLHE IMPUGNAÇÃO DE HERDEIRA E EXCLUI VIÚVA-MEEIRA DA RELAÇÃO DE HERDEIROS, PORQUE CASADA COM O DE CUJUS NO REGIME DE SEPARAÇÃO CONVENCIONAL DE BENS, FIXADO EM PACTO ANTENUPCIAL. INCONFORMISMO DA VIÚVA-MEEIRA. ACOLHIMENTO. DECISÃO REFORMADA. 1. Cônjuge sobrevivente deve ser mantida no rol de herdeiros, em concorrência com os descendentes. Necessária interpretação de hipótese restritiva da sucessão hereditária, que não abarca cônjuge casado sob regime de separação convencional como excluído da concorrência com herdeiros do cônjuge falecido. Exegese do artigo 1.829, caput e incisos, CC/02. 2. Recurso provido”. [8]

Por fim, não há dúvidas que, de acordo com o Código Civil, ainda que haja testamento deixando todos os bens aos descendentes, em detrimento do cônjuge sobrevivente, deve prevalecer o entendimento de que há ruptura do testamento que pretenda excluir o cônjuge sobrevivente do rol dos herdeiros necessários, ainda que o regime de bens escolhido no casamento seja o da separação convencional, sob pena de atropelamento e subversão da ordem de vocação hereditária surgida com o vigente Código Civil que tem por escopo a proteção do cônjuge sobrevivente casado sob o regime da separação.


Notas e Referências:

[1] STJ, REsp. 992.749 /MS, 3ª T., rel. Min. Nancy Andrighi, j. 1º.12.2009, DJe 05.02.2010.

[2]  Há concorrência do cônjuge no regime da separação convencional de bens. Disponível em: < http://professorflaviotartuce.blogspot.com.br/2015/06/stj-ha-concorrencia-do-conjuge-no.html>. Acesso em: 28 de out. 2016

[3] Código Civil Comentado. 11ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, nota n. 10, ao art. 1.829 , p. 2.091.

[4] Manual de Direito Civil. 2ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 975.

[5] Direito Civil Brasileiro, 3ª ed., Saraiva, vol. VII, 2009, p. 150

[6] No mesmo sentido, conferir, ainda, Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 124 e s, v. 6 - Direito das Sucessões.

[7] STJ, REsp. 1.382.170 – SP, Segunda Seção, rel. Min. Moura Ribeiro, rel. p/ o acórdão Min. João Otávio de Noronha, j. 22.4.2015, DJe 26.05.2015. No mesmo sentido: STJ, REsp. 1.472.945 - RJ, 3ª T., rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 23.10.2014: “Recurso Especial. Direito das Sucessões. Inventário e partilha. Regime de Bens. Separação Convencional. Pacto antenupcial por escritura pública. Cônjuge sobrevivente. Concorrência na sucessão hereditária com descendentes. Condição de herdeiro. Reconhecimento. Exegese do art. 1.829, I, do CC/02. Avanço no campo sucessório do Código Civil de 2002. Princípio da vedação ao retrocesso social”.

[8] TJSP, Ag. 2036160-68.2015.8.26.0000, 9ª Câm. Dir. Priv., Rel. Des. Piva Rodrigues, j.  3.6.2015. Com o mesmo posicionamento, embora não tão recentes: TJSP, 4ª Câmara de Direito Privado, Ag 0080738-58.2012.8.26.0000, Rel. Des. Milton Carvalho, j.  30.8.2012: “Agravo de Instrumento. Arrolamento. Sucessão testamentária e legítima. Casamento pelo regime da separação convencional de bens. Cônjuge supérstite é herdeiro necessário do “de cujus” e concorre com os descendentes na legítima, ainda que beneficiado em testamento com 50% dos bens do espólio. Inteligência dos artigos 1.829, I, e 1.845, do Código Civil. Recurso provido”; TJSP, 2ª Câmara de Direito Privado, Ag. 0007645-96.2011.8.26.0000, Rel. Des. José Carlos Ferreira, j. 04.10.2011 “Agravo de Instrumento. Inventário. Decisão que declarou que o cônjuge supérstite não é herdeiro nem meeiro. Viúva que foi casada com o autor da herança pelo regime da separação convencional Decisão que contraria a lei, em especial os artigos 1.845 e 1829 do Código Civil. Decisão reformada Agravo provido”.


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