Senso comum democrático: ensaio abolicionista contra a pureza do poder (Parte 2) – Por Guilherme Moreira Pires

20/09/2016

Leia a Parte 1 aqui.

"O poeta é um rebelde sem premeditação, demolidor de tudo e de si próprio. De si próprio, creio eu, pois demole tudo o que emuralhou seu coração." (WARAT, Luís Alberto)

O senso comum democrático sacrifica forças sublimes e potentes da vida, em prol da cristalização do "bom poder", do "poder justo", das legítimas instâncias de poder e controle; produções de uma teoria do "bom governo", com racionalização da violência e submissão, atreladas a monopólios repressivos, culturas do castigo e da obediência, culturas repressivas.

Intensas imagens libertárias, de outros mundos (não repressivos), outras possibilidades, escoam rumo ao ralo da submissão ao poder; uma submissão à economia de fluxos hegemônicos, e também com tempero democrático, palavra de ordem atualíssima (no incremento e aperfeiçoamento dos controles) no século XXI, em que a retórica dos direitos alcançou proporções discursivas sobremaneira elásticas, sabidamente sem a materialização das ressonâncias anunciadas pela promessa constitucional.

O recente impeachment de Dilma Rousseff no Brasil (2016), evento protagonizado por figuras corruptas, resulta na mudança da gerência política dentro (e mediante) um jogo que era energizado pelo próprio PT, que até então controlava boa parte do jogo e da diagramação de poderes construída (com o também oportunista PMDB), perpetrando violências injustificáveis em prol da governabilidade; um jogo bastante aberrante, sem dúvidas.

Como evidenciado, votos decididos de forma quase que inteiramente independente ao que se passava na trajetória do julgamento (por diversas vezes, a defesa sublinhou que ninguém apreciava com seriedade os argumentos expostos, sendo tudo mera formalidade), não diferem exponencialmente acerca do que se passa no cotidiano, das ruas aos tribunais; é dizer, esse vislumbre, de um circo descompromissado com as garantias constitucionais, enquanto irradiação da mentira que orbita os discursos legitimantes do poder, não representa ruptura alguma com a concretude do que se passa no Brasil, muito menos a hipertrofiada ruptura, profunda e extraordinária, que muitos proclamam contemplar; trata-se de uma fração ínfima do que se passa noutros mundos, do que se passa principalmente nos andares de baixo; caminhamos para pior, e o esgotamento inventivo das esquerdas é parte do problema.

A imagem de políticos que sequer estavam presentes na exposição da defesa, recorda juízes que sequer leem os processos, contando com estagiários e toda uma equipe que diariamente faz as sentenças.

A percepção estonteante, com tons de choque, sobre os argumentos em defesa sequer estarem sendo efetivamente ouvidos no julgamento aludido (sem nem entrar no mérito dos mesmos), e que igualmente nos remete ao cotidiano de violência e violações contínuas (é dizer, continuidades), opera perturbando o senso comum democrático dos imersos nessa construção do poder, produzindo visões legalistas de ruptura típicas de referenciais legitimantes.

"Ruptura" e "golpe" são palavras que podem ou não fazer sentido a depender dos referenciais e sentidos atribuídos; como só se mostra possível mencionar ruptura da ordem democrática se assumirmos o mesmo em todos os confins da grande fotografia. Mas então, se tudo é ruptura, nada é ruptura, senão continuidade, ao menos em sentido amplo, ao contrário do que vendem as narrativas épicas de fim da democracia por respeitados juristas comprometidos com tal palavra, profissionais sérios, mas reféns da continuidade dos discursos legitimantes do poder.

Se mostraria possível problematizar acerca das possibilidades de emprego dessas palavras em distintas estruturas de pensamento, e assim alçarmos algumas conclusões; mas o certo é que a palavra ruptura, empregada em tantas narrativas, opera em comparação às juras derivadas da promessa constitucional, quer dizer, opera em torno de mentiras, conjuntos purificados, e então, claro, se poderá dizer que se trata de uma ruptura terrível, que não representa a simetria da imagem prometida.

Seria, no entanto, uma estrutura construída em torno de imagens de capturas, obliterando a possibilidade de outras construções deslegitimantes do poder, contrárias ao jogo político; um jogo asqueroso, mais que evidenciado, escancarado no circo em questão, e que segue com as aberrações em rede nacional, como a mais recente sobre um PowerPoint acompanhado de palavras de convicção, referindo-se a Lula.

Embora grotesco (sobre isso não restam dúvidas), todos os dias essa sede ávida por condenações ativa movimentações insanas, ainda que não via PowerPoint ou em rede nacional; é dizer, enxergo não como ruptura inédita acerca do que se passa no país (é claro que não!), mas uma exposição (inclusive institucional), para muitos mais clara, de um modus operandi, migrado parcialmente aos limítrofes "andares de cima", na promoção de violências e redesenhos pontuais, em zonas que encontravam-se praticamente noutra dimensão interpretativa, com garantias que muitos dos andares de baixo apanhariam caso invocassem.

O circo nos andares de cima, como produção do poder, nos remete a um jogo que infelizmente foi jogado de bom grado pelos governistas (em sentido amplo) enquanto ganhavam, cujas críticas para si mostravam-se frequentemente suprimidas, aliviadas, e no limite até proibidas, eis que não seria o momento oportuno (como sempre se repetia em cada momento de cada ano, sempre apresentado como difícil, sendo necessária a união e a coesão, e assim se justificando atrocidades).

Mas este não é um ensaio dedicado especificamente à conjuntura, senão que tem a ver com aspectos sobremaneira mais amplos e abrangentes, que, claro, puderam ser bem observado ante a agitação dos trilhos do jogo, uma agitação para muitos desconfortável, no limite intragável, que ativou incômodos reveladores de posições e sistemas de crenças, agentes que insistem em se posicionarem discursivamente no interior do dever-ser falsificado, na venda de combos de legitimação sistêmica de culturas repressivas.

Volto-me a indivíduos aparentemente livres, que renunciaram suas singularidades anárquicas em prol da obediência e sujeição às produções sistêmicas do poder: Estados, escolas, prisões, exércitos, tribunais, manicômios, bancos etc., integrantes de culturas repressivas, nas quais merecem destaque o Estado, o poder punitivo e o capitalismo. É talvez nas escolas que se inicia o mais importante marco de obediência, ensinando desde cedo a sujeição ao corpo repressivo no comando, muito antes que nas Universidades.

Conferir: "Estado Moderno, Escolas e Universidades: conservação e aprimoramento da versatilidade dos controles no presente" e "‘O professor’ perante as instituições de ensino e a produção institucional da subjetividade".

O que isso tem a ver com a parte 1, sobre o "Brasil em Crise" (em que se problematiza inclusive essa última palavra)?

São esses ingredientes repressivos responsáveis pela irradiação do que chamo de senso comum democrático na atualidade; ingredientes encarceradores do pensamento libertário, que titubeia enquanto existência possível diante de sua supressão  (cerceamento legitimante do poder instituído), com uma complacência usualmente ilimitada frente às múltiplas violências do governo, reiteradamente explicadas (sem qualquer vergonha) como frutos de tensões difíceis, passíveis de compreensão, e no limite até amor ou compaixão. Senso comum.

Isso é demasiado sério. Blindagens perfeitas para a produção de uma passividade adoradora do bom poder, que nos livraria do retrocesso e até terror que, dizem, nos aguardaria caso não perpetrassem cada violência justificada como questão de governabilidade, ou de disputa /barganha inevitável do jogo. O ilimitado temor do que pairaria se não "bem governados" fôssemos. Uma aproximação de Hobbes, filósofo do rei, esse conjurador e ativador do terror de um mundo não tutelado por uma entidade transcendental, por um gélido monstro irradiado para governar. Ruptura ou continuidade?

Há que se optar entre ser um pensador libertário, da vida e do mundo, e um legitimante do poder. Um Hobbes minimalista ainda é um Hobbes. Um discurso legitimante de culturas repressivas ainda é parte do problema, mais que das soluções. De falsas soluções, como as da complacência legitimante do jogo, ainda que com temperos democráticos, há de se estar farto, eis que as megametas do poder, não abrangem a felicidade das pessoas (apenas de algumas), perceberam libertários.  E isso abrange direitas e esquerdas, responsáveis pela atual extensão dos tentáculos do poder.

Mas transgredindo para além dos mecanismos e ressonâncias do poder, paira o indeterminável campo das liberdades, concretamente experimentadas, sem abstrações totalizantes; sem sobreposições e hierarquias demolidoras da horizontalidade.

Liberdades potencializadas por sujeitos não complacentes, não obedientes aos lindes do possível instituído, não obedientes ao território vendido como limite intransponível, e até cartilha de resistência, como anseia o pensamento naturalizador de culturas repressivas, refém do sedimentado, representante de aberrações escandalosas (como o cárcere), sequestradoras do único, do tempo, da linguagem, das situações, pessoas etc.

O senso comum democrático simultaneamente confisca, aglutina, martela e achata o potencial crítico, replicando as ressonâncias desses achatamentos nas narrativas (d)e lutas e compreensões - dentro do jogo instituído. Achata imaginações.

No escrito "A castração da imaginação e os Etapismos de um Amanhã prolongado, eternizado, que nunca vem: imaginação capturada e ativadora de novas-velhas capturas", delineia-se uma oposição à eternização das culturas repressivas por estratégias conferidoras de sobrevida ao poder.

Crítica intensificada pela imagem da mortalidade do poder desenhada, navegando sem temer o transcender do alcance das linhas pontilhadas, sem converter-se em sombra dos edifícios repressivos.

Há que se posicionar incorporando a mortalidade ou imortalidade do poder. No entanto, assim que se tiver optado pela imortalidade do poder como estruturante, se terá dado a morte do sujeito do pensamento libertário, adorando centralidades e suas autoridades, valendo-se de racionalizações e falsos pragmatismos; valendo-se de simulacros.

Enquanto o senso comum democrático é irradiado e permeia na legitimação de cada instituição, que, apesar da farsa aparente, avoca para si tons de autoridade ante a presunção de legitimidade (bem atacada pontualmente, mas não destruída), a partir desse caldo de discursos atrelados, não à concretude do desvelado no presente, mas a um dever-ser programacional equivocadamente energizado.

Na atualidade, a passividade complacente, disposta a atribuir mil e uma justificativas ao poder, não se situa mais em visualizar ou não a farsa institucional e das redes de legitimação, tamanha a obviedade de tais falsas promessas com estatuto de sonho, como o conjunto de promessas derivadas do "Estado Democrático de Direito".

Direitas e esquerdas: em geral todos visualizam a obviedade da farsa, cada qual a sua maneira, e, nada obstante, enganam-se em suas respectivas narrativas justificadoras de culturas repressivas, excluindo da compreensão do conjunto repressivo a parte que julgam necessária, uma necessidade e imprescindibilidade pensada a partir do pensamento não rizomático, dicotomias rasas de front. O pacote considerado como cultura repressiva, isso sim varia exponencialmente, entre direitas, esquerdas, libertários, o que pode ser lido em "Estado Moderno, Escolas e Universidades: conservação e aprimoramento da versatilidade dos controles no presente".

Abraçar e perseguir ou não o dever-ser instituído pelos discursos progressistas legitimantes do poder: aqui consequentemente se separam estrategicamente libertários e esquerdas, com interpretações e conclusões extremamente distintas, porém, ambos com distanciamentos colossais acerca das direitas (o que parte dessas esquerdas falsifica).

Vale sublinhar que a anarquia não é sinônimo nem fracionamento de esquerdas, e que se cristalizar num plano de controle ocupacional (perseguindo cargos, representatividade, avanços democráticos) pré-abolição das prisões, para apenas depois "abolir", enquanto fechamento etapista atualmente apresentado por políticos progressistas, não se mostra interessante, nada obstante a existência dos que não condicionam as coisas; alguns libertários, e uma fração ínfima das esquerdas, que percebe que a retórica dos direitos humanos e seus combos acerca do direito penal constitucional "para salvar a democracia", não são a única forma, e nem a melhor, para se opor às múltiplas violências do dia-a-dia. Esse território discursivo precisa ser expandido; não dá conta da complexidade da vida, encarcerando-a.

Sobrepujar a versatilidade dos controles demanda uma pluralidade de formas, e há pessoas que, trabalhando numa série de espaços repressivos, promovem coisas grandiosas, o que enxergo, todavia, mais como uma "infiltração" que propriamente representação do "produto da casa", eis que "a casa", sejam os tribunais de justiça (sic), as procuradorias, as escolas ou o que for (nesse sentido), não nos remetem a construções libertárias, mas de poderes desinteressados para com a felicidade das pessoas, produtos discursivamente costurados e ligados às centralidades que nos regem. Todo cuidado é preciso nesses espaços. Eles são uma armadilha.

Se este ensaio parece ter mudado abruptamente de assunto, a ponto de para muitos não mais fazer sentido, pode ser o sinal de que o empenho das pessoas nas análises de conjuntura não está acompanhando do necessário rompimento com o senso comum teórico, penal e criminológico, e obviamente democrático, a especificidade estruturante talvez mais influente entre os "discursos de resistência", a mais complexa de ser criticada, eis que lida como intolerável, absurda mesmo para a maioria dos que desvelam o senso comum criminológico e exportam candidaturas que logo se vendem.

A própria existência das oposições aos projetos neoliberais, que atualmente encontram no esgotamento das esquerdas partidárias um bloqueio constitutivo, carecem de um "reinventar", e até teriam muito a ganhar com a versatilidade libertária ante culturas repressivas, todavia, optam por garantir que tais perspectivas libertárias não se difundam, precisamente por exporem essa carência, sempre apartada do verbo "abolir" tensionado complexamente.

Desde junho de 2013, perspectivas libertárias passam a ser atacadas por uma esquerda que sequer lembrava das sombras de tais potências deslegitimantes do jogo (jogo que disputam, é claro). É certo que a anarquia tornou-se um incômodo maior, e ressonâncias virão, entre elas, o aumento da reiterada desqualificação capitaneada pelos representantes desse esgotamento, desesperados por coesão, que esnobarão nosso desapego ao "voto crítico".

A menção à "pós-democracia", enquanto crítica e chave interpretativa, fora reacendida intensamente com a troca da gerência política através de teatro conservador, mostrando-se relativamente comum entre as "esquerdas críticas" do país, para sintetizar o que se passa.

Não acredito que seja uma chave vazia, mas seu evocar encontra-se instaurado nas críticas legitimantes do jogo: trata-se de um pacote interessante, com uma crítica ampla, entretanto, não é a partir daí, ou melhor, não se situam discursivamente em tais chaves, perspectivas efetivamente destrutivas de culturas repressivas; sendo tal chave igualmente uma produção do poder; uma produção em que se acastelam linhas artificiais divisórias, para purificar e salvar seus respectivos discursos, dissolvendo as imagens de continuidade e coexistência sistêmica acerca das redes de violências e aberrações que há muito orbitam a palavra "democracia", no  "Estado Democrático de Direito", produzindo uma atmosfera de "transformação inédita" acerca de violências já conhecidas; e, assim, tudo se torna extraordinariamente distinto do que era, artificialmente...

Um artifício que dá conta de expor sua indignação (em muito válida) ante tudo o que toca, mas de contornos retóricos, ativando um discurso do terror em formato bem hobbesiano acerca das "ameaças à democracia" em jogo, adaptada, claro, à atual conservação do poder atrelada ao ideal democrático, e, por suposto, a um senso comum democrático, igualmente às promessas constitucionais.

Mostrava-se perfeitamente possível manifestar-se contrariamente às movimentações criticadas, de forma até incisiva e potente, mesmo sem valer-se de narrativas em tom apocalíptico acerca de rupturas em todos os cantos; as grandes narrativas convertem-se em capturas, e a complexidade é triturada nesse caldeirão hegemônico, que tragou para si essa chave na costura das grandes narrativas de resistência.

Nesses rumos, o esgotamento das esquerdas permanecerá tragado, e sendo cada vez mais engolido pela versatilidade dos controles, assim como significativa parte dos libertários, ativos altivos, capturados nas narrativas dos primeiros, com noções simplificadas de "prática" e "luta". Altivos e moralistas, empregados de legitimações oxigenadoras de culturas repressivas.

Noutro giro, exemplificativamente (para se entender) o que se passa: enquanto defensores do capitalismo como "algo justo" rasteiramente insistem em expor imagens de pobreza como "derivadas de esquerdismo" e "falta de capitalismo" (essa ignorância não cessa), esquerdas tendem a repetir imagens melancólicas, como de favelas militarizadas e jovens morrendo nas mãos de polícias, vendidas como "falta de democracia".

"A democracia nunca teria chegado aí", dizem. Isso se repete, de forma contextualizada, ante cada faceta terrível inerente ao que existe nas democracias, como se fossem coisas contrárias, entidades estranhas invasoras. Tudo muito triste. (Rápida nota pessoal: um abolicionista famoso uma vez me disse que seria esse o papel dos juristas, e que isso está bem. Não consigo interpretar como "isso está bem". Não consigo. Nossa miséria não será tamanha, o limite não pode ser isso. É inadmissível que o limite seja esse).

Retornando ao exemplo: ambos os grupos são cegos para a fotografia maior, não a enxergam como uma imagem delineada por interações já desvendadas e significativamente simétricas à programação, mas um amontoado de cores estranhas, que, por algum erro, entes externos, inconsistência, problema reformável, não está funcionando conforme o dever-ser perseguido por esses, o dever-ser falso desde os referenciais efetivamente perseguidos, cujos tentáculos, desde seus direcionamentos, mecânicas, programações, forças, perseguem outro dever-ser, programacional, o precisamente tracejado na constituição do diagrama de poderes vigente.

Tanto os que purificam capitalismo, quanto os que purificam a democracia, ignoram que muito do que criticam não é "a falta de", mas o próprio objeto defendido, que, com pretensões de pureza, ejeta para outras áreas, categorias e palavras, sua parte da conta, partes da imagem.

É dizer, assim como os primeiros ignoram a pobreza como parte inerente no capitalismo, as esquerdas adoradoras da palavra democracia ignoram as violências inerentes à fotografia, associando-as com quaisquer outras coisas, menos democracia. Entender que essa palavra não comporta, e nem é sinônimo de tudo-o-que-há-de-bom, é um começo básico para cessarmos legitimações de culturas repressivas.

Muitos imersos no senso comum democrático sabem disso, mas ignoram, prosseguindo reiteradamente na purificação estratégica, e perpetrando um blackout acerca da auto-crítica indesejada.

O que mudam são os combos discursivos desesperados por confirmar suas narrativas e assim manter a própria coesão. As dinâmicas, todavia, são demasiado parecidas.O poder emburrece, imbeciliza, achata ainda mais os sujeitos das dicotomias rasas de front situados em territórios de insistente legitimação.

Há que se produzir o ingovernável, recobrar a arte de não ser rasgado em nossa subjetividade, impedir a dissolução do único, experimentando liberdades sublimes sem obediência aos discursos do poder, sem seus governismos e monstros rivais que almejam o trono para nos "bem governar".

Deleuze acertou ao dizer que na prática não existe governo de esquerda? Sempre acende uma luz, que pisca incansavelmente, relembrando dessa dinâmica purista. Ora, podemos dizer que tal esquerda se corrompeu, se tornou outra coisa, cessando de ser esquerda, claro.

Mas esquerda atualmente não é isso mesmo? Larvas que energizam o jogo de legitimação da democracia representativa, e que assim produzem aberrações? Quando o fazem, são simplesmente desqualificadas da condição de esquerdas? Não é mais esquerda, e pronto? Esquerda não tem mesmo a ver com governo? Fantástico. O terreno assegurador de coesão resta límpido; agora nada está mais na conta da esquerda. Assim é muito fácil defender qualquer coisa.

Reafirmo ser preciso derrubar a pureza de certas palavras, como democracia e esquerda, ainda que não seja possível afirmar que "esquerda" efetivamente seja isso; o que não remete a um salto à direita, como conjecturam tantos alvejados pela crítica, estruturando pensamentos a partir das aludidas dicotomias rasas de front.

Criticar emancipa, e não demanda selo de vivência, crachá, titulação, broche, conta de banco. Navegar sem grandes barcos, sem salvaguardar o corpo e a lógica do rei, não garante tesouros, mas pode ser determinante às nossas liberdades, que se dão no agora, e não esperam o tempo proposto pelos megaplanos das esquerdas e direitas legitimantes do jogo político, cada qual com suas armas, mentiras, promessas.

Quando os problemas de uma democracia nunca são reconhecidos como dela, mas sempre de uma falta, democracia converte-se em senha de (e da) soldagem repressiva que conecta redes e campos legitimantes do poder, auto-proclamados resistências a esse mesmo poder; uma conversão em senha estruturante da violência racionalizada, que opera como espécie de costura crucial da tessitura discursiva do poder. (Não por acaso, Luigi Ferrajoli se apresentou em Buenos Aires como militante do positivismo crítico, tendo livros vendidos ao lado de teorias do bom governo e boas prisões democráticas - entre muitas aspas, por favor).

É construindo ninho nessa palavra [democracia] que positivistas, contratualistas, garantistas, minimalistas, juristas representantes de culturas repressivas, gozam contentes e dormem felizes, tranquilos, negligenciando o presente, permutado pelo dever-ser retoricamente sedimentado, cristalizado, sem intransigência criativa, permutada, reduzida a justificacionismos e legitimação do poder.

Uma complacência ilimitada para com a imprescindibilidade de centralidades, controles, sequestros, hierarquias; uma inventividade para a conservação e aprimoramento da versatilidade dos controles e legitimações, carente de linhas de fuga, carentes de desestabilizações anárquicas nos fluxos instituídos, "perversões" marginais desde os referenciais repressivos,

Não acastelar-se nas significações e produções do poder.

Interromper as injeções, os bombardeios de ideias repressivas.

Estancar as capturas, castigos e controles que nos parasitam e deformam, dissolvendo hierarquias, autoridades e centralidades; pretensões de totalidade que desqualificam toda insurgência e incontinência marginal, catalogada como transgressora das regras e cartilhas de como se "bem comportar", desde numa manifestação, às práticas cotidianas, até sobre o que pensar - movimentações lidas como prejudiciais "à luta real"; é dizer, obediência ao conteúdo retoricamente delimitado enquanto tal, suprimindo complexidades. Grades.

Seguir e navegar sem temer, com a intransigência marginal que transcende o tabuleiro do jogo democrático, tensionada por existências não dispostas a negociar sacrifícios e desistências frente aos amigos democráticos do poder, os servos do poder, os escravos do poder; que jamais perdem de vista a possibilidade de nos controlar. Mas nossas palavras não se perderão: são gotas que formam o oceanos; e gotas que são oceanos, relembrando Bakunin e Warat, anarquismo e surrealismo.

No purificado ninho democrático delineado, não há imaginação potente; sonhos e desejos sublimes são tragados, dissolvidos, restando o espaço dos dejetos sedimentados, num justificacionismo ilimitado cujo massacre da imaginação se dá bloqueando a inventividade anárquica, artística, poética, singular, complexa, restando primordialmente a imaginação para culturas repressivas (até nos relacionamentos amorosos), o que associo a imaginários, um conjunto mais estático e engessado, de atmosfera sistêmica, (de)formado pelas produções do poder, e igualmente enquanto produção do poder.

Os libertários surrealistas, os poetas, os professores marginais, os transgressores de todos os tempos, cada qual separado e todos juntos, sob uma forma sem amarras, sem contornos rígidos, estáticos e autoritários, despertam os sentidos, desejos, sonhos, mundos adormecidos.

Sem o despertar dessa zona proibida, sem ativar esses territórios de uma contra-cultura, sem liberar os cadeados instituídos, não há o "abolir" acerca desses conjuntos que cortam e rasgam a América Latina, o ocidente, o mundo - sem tudo isso, não há sequer abolicionismo penal.

Sem liberar as amarras da genialidade inventiva - anti-repressiva - suprimida e cristalizada, sem a ruptura com a premissa, pretensão e dogma de legitimidade das produções do poder, não se dissolvem castigos e autoridades, não se abole o fascínio por sistemas de controle social e constelações repressivas; a destruição de culturas repressivas, sem longos etapismos supressores da criticidade (e do presente), se dá nesse instante.

Não quero promessas exclusivamente para daqui a três ou quatro décadas. (Nowhere - Now here - aqui e agora). O longo amanhã, talvez não o tenhamos. Mas o presente, todos os vivos o experimentam. Assim como é impossível catalogar os limites da genialidade artística (em sentido amplo, e considerando todos como artistas em potencial), bem como da imaginação libertária, se mostra impossível uma construção crítica de um sistema de respostas antes das perguntas, sistemas que certamente existem (a exemplo do sistema penal), mas que não têm nada de crítico.

Não penso na construção de sistemas. A pretensão reformista ou mesmo abolicionista, capturada pelo coroamento de progressismos, democracia representativa, positivismos, etapismos e fechamentos insensatos, até contratualismos, jamais promoverão essa contra-cultura do poder: querem mapas e códigos sistematizados, receitas de ocupação de espaços, redesenho e instauração de instâncias de poder.

Uma característica dos legitimantes sistêmicos: o terror à imprevisibilidade da vida, um temor hobbesiano do horizonte de possibilidades ampliado ao se potencializar liberdades, dissolvendo códigos, sistemas e autoridades.

Podem até ser bem inventivos para legitimar castigos, controles, hierarquias e toda produção do poder, mas jamais potências libertárias, existências artísticas de genialidade sublime, não superiores ou inferiores, mas únicas, que não estão abaixo de qualquer autoridade, qualquer deus, qualquer ficção ou abstração estruturante do poder.

A potente arte de viver sem ser governado nas próprias práticas, potência existencial constantemente recobrada por libertários, como singularidades anárquicas, não demanda títulos, nem se interessa na legitimação ou tomada do poder; não se interessa em discursos de representatividade no poder, nem se sustenta em promessas de um bom governo, um bom controle do outro, boas prisões; transitam como nômades, e traduzem elementos estranhos aos espaços repressivos, ainda que dentro deles, sempre lutando contra o poder, ainda que de formas invisíveis aos olhos de muitos, sem grandes pirotecnias, recordando, com Proudhon e Warat (...é dizer, recobrando anarquismos e surrealismos com profundidade), que os eventos importantes da vida não são compostos apenas de mega explosões e enfrentamentos espalhafatosos; existem potentes atos silenciosos negligenciados, perdidos, ignorados pelos que apenas acordam no momento das grandes explosões; e que, assim, nem sequer compreendem o que se passou.

Os que navegam com outras potências sublimes, e com eles vivem diariamente essa arte, sem quebrarem, sem serem governados (e sem governar!), seguindo sem temer a ruína; esses são, cada um e todos juntos, mais potentes e sublimes que todos os governantes e autoridades da história do mundo.

Não existe um único rei, ou filósofo do rei, jurista progressista ou general condecorado mais potente.... que um único abolicionista libertário... comprometido em destronar culturas repressivas... um abolicionista de culturas repressivas.

Me recordo de um escrito de André Breton, La clara torre! (Le Libertaire, 1952), compilado em "Surrealismo y Anarquismo", organizado por Plínio Augusto Coelho; texto que transcrevo (p. 41-43):

"Fue en el negro espejo del anarquismo donde el surrealismo se reconoció por primera vez, mucho antes de definirse a sí mismo y cuando era apenas una asociación libre de individuos, que rechazaban espontáneamente y en bloque las opresiones sociales y morales de su tiempo. [...] En ese momento, el rechazo surrealista el total, absolutamente inapto para dejarse canalizar en el plano político. Todas las instituciones sobre las que reposa el mundo moderno y que acaban de resultar en la Primera Guerra Mundial son tenidas por nosotros como aberrantes y escandalosas. Contra todo aparato de defensa de la sociedad es que luchamos, para comenzar: ejército, 'justicia', policía, religión, medicina mental y legal, enseñanza escolar. Todas las declaraciones colectivas, así como los textos individuales del Aragon del pasado, de Artaud, Crevel, Desnos, del Éluard de antaño, de Ernst, Leiris, Masson, Péret, Queneau o los míos, testimonian la voluntad común de hacer se los reconociera como flagelos y, como tal, que fuesen combatidos. Sin embargo, para combatirlos con alguna posibilidad de éxito, es preciso atacar su armadura, que, en último análisis, es de orden lógico y moral: la pretendida 'razón' en uso y de etiqueta fraudulenta que recubre el 'sentido común' [...] No se llamen ya Tailhade, sino Baudelaire, Rimbaud, Jarry, a quienes todos nuestros camaradas libertarios deberían conocer, así como deberían conocer también a Sade, Lautréamont o el Schwob de El libro de Monelle. [...] Es bien sabida la rapiña despiadada que se hizo de aquellas ilusiones durante el segundo cuarto de este siglo. Por una terrible ironía, el mundo libertario con el cual se soñaba fue substituido por un mundo en el que la más servil obediencia es obligatoria, donde los derechos más elementares son negados al hombre, donde toda la vida social gira en torno del policía y del verdugo."

Em Cabezas de Tormenta: ensayos sobre lo ingovernable, um dos livros de Christian Ferrer, sublinha-se, acerca dos pensamentos libertários (anarquistas) contra culturas repressivas:

"Se comprenderá que un movimiento de ideas tan radical haya nacido casi extinto. Su tareas eran las de un Hércules; sus enemigos, antiguos e inmensos como pirámides; y sus fuerzas, limitadas [...] Fueron sus cabezas de tormenta. Los primeros en anunciar y promover algunas libertades que hoy se disfrutan en partes del mundo [...] De no haber existido anarquistas nuestra imaginación política sería más escuálida, y más miserable aún." (FERRER, Christian, 2006, p. 11-12)

Não fossem esses ventos libertários, nossa imaginação e nossos limites estariam ainda mais reduzidos aos discursos legitimantes do poder, às "críticas democráticas", cujo background simbólico e plano de fundo interpretativo só podem operar mediante imagens forjadas de um dever-ser que, mais que "não é", não poderá ser; equações que ignoram constantes e direcionamentos de potentes ressonâncias.

E, assim, seus artífices instauram e ratificam não apenas um pressuposto geral de legitimidade da existência do poder, senão que ainda um atestado de continuidade e preservação, mesmo assumindo e admitindo não funcionar simetricamente como nas regras e juras derivadas da promessa constitucional, e retórica dos juristas, especialista em humanidades e demais caricaturas do poder, personagens que evocam democracia, ativadora das redes linguísticas de legitimações do poder: positivismos e contratualismos, humanismos, reformismos, garantismos e mininalismos, direitos e garantias (linguagem simplificadora mecanicamente usada para tudo), senhas de uma senha maior no século XXI, "democracia", para cravar no mundo a imprescindibilidade das produções do poder.

Produções acompanhadas de uma complacência torpe norteada por um dever-ser fruto de equacionamentos ingênuos, equivocados, pouco sensíveis à problemática do poder e suas ressonâncias; típico de uma semiologia negligenciadora da problemática do poder (Warat referia-se como semiologia tradicional, distinta de uma semiologia do poder, mais crítica acerca dessa questão).

Senso comum democrático e redes de legitimação que ejetam para as categorias inimigas e adversárias, todos os problemas que encontram em si, atribuindo-lhes sempre a uma outra coisa, externa (a própria narrativa de "golpe" costuma agarrar-se em versões de forças externas como protagonistas da barbárie, quando existe um encaixe de forças possibilitadoras de violências que se perduram no dia-a-dia); trata-se da construção purista de categorias repressivas, e que, precisamente por o serem, precisam ejetar conteúdo para outras categorias, um modus operandi simultaneamente defensivo e ofensivo, atrelado à auto-preservação sistêmica de categorias estruturantes de culturas repressivas, preservadas e aprimoradas.

E tudo enquanto se blindam de críticas libertárias, apontando "purismos" na negativa libertaria de apoiar, aplaudir e energizar culturas repressivas, numa defesa infinita de categorias sistêmicas purificadas, como democracia, essa senha hegemônica, interpretada como oposta à ditadura pelo senso comum democrático, dentre suas dicotomias rasas de front.

Enquanto libertários propulsionam críticas potentes e contundentes, o senso comum democrático reduz o aporte a purismos utópicos, interpretados a partir dos próprios purismos categóricos, e uma boa dose de teimosia reativa, sobremaneira etapista e sem imaginação, complacente às justificações do poder; complacência também cristalizadas nas esquerdas que ingressaram nas guinadas governistas (ao invés do contrário); uma esquerda profundamente legitimante do jogo, como se sublinha na parte 1, abrangendo a perpetuação de culturas repressivas.

É preciso enfatizar: anarquia não é esquerda, historicamente do lado de fora da configuração que originaria tal naturalização, e não se circunscrevendo nos lindes dessa linguagem.

A anarquia não é armazenável, nem nos pressupostos mais amplos dessa linguagem, nem nas pontualidades atualmente ditadas pelos energizadores do senso comum democrático; mesmo os mapeamentos de anarquistas um tanto dogmáticos e simpáticos às esquerdas são interpretados como apoio à direita, de modo que, nesse estupor, não há mesmo muito o que esperar, senão a (de)formação desses libertários ante uma guinadas governista herdeira de grandes legitimações, traduzindo-se em libertários que mais pareciam governistas.

Desses tipos, "a direita de fato não gosta" (comemoram esquerdas), mas não se enganem, as culturas repressivas - que abrangem esquerdas e direitas - adoram essa governo sobre o território do possível instituído, suprimindo imaginações, congelando criticidades.

A arte libertaria de navegar sem ser governado, e sem violentar a vida, não pode ser tragada pelo senso comum democrático dos que sonham em traduzir redesenhos reformistas nos discursos ocupacionais, ou mesmo revolucionários instauradores de instâncias de poder, reprodutores de fascínio por autoridades, controles e hierarquias; oxigenando poderes e desejos que são armadilhas; como ser bem governado resulta numa grande armadilha, a exemplo de boas prisões. Capturas. Armadilhas.

Pela potente e sublime decisão, verdadeiramente enérgica e vívida, de se opor a todo esse jogo de estupor representante e estruturante de culturas repressivas, seguir sem temer as ruínas, contra a pureza do poder e de suas significações acobertadoras de controles, segue como um compromisso, não ético ou moral, mas libertário, até poético, especialmente consigo (não para agradar o mundo - até porque, mundos melancólicos odeiam tais resistências sublimes, as caçam e trituram, destroçam sem remorso);  contra os juristas e burocratas que revivem e reificam as imagens desgastadas dos filósofos legitimantes do poder, filósofos dos reis de outrora, e de toda produção repressiva, e depressiva, melancólica, de mundos marcados pelas correntes do poder.

Todo contratualismo, positivismo crítico, garantismo, reformismo, dejetos progressistas e seus adversários dentro das dicotomias rasas de front, não interessam mais a um abolicionista de culturas repressivas, que um grão de nada, e não são maiores que um único suspiro libertário - são ingredientes propagandísticos, na pior acepção possível, costurados aos "melhores" discursos legitimantes, aqueles "dignificantes", progressistas, mesclados com o evocar dos direitos e garantias fundamentais, que insistem em destacar: "claro que encarcerar é importantíssimo, mas não de qualquer forma", "claro que um juiz pode destroçar tantas vidas, mas apenas enquanto ultima ratio" e assim sucessivamente. Senso comum criminológico. Que, mesmo quando superado pelos criminólogos críticos, em geral não rasga, não transcende o senso comum democrático, dentre outras produções do poder, estruturantes de culturas repressivas.

O senso comum democrático também é formado por premissas que nunca se discutem, tomadas como óbvias, e assim se pensa sempre "a partir de", com estruturas de pensamento encarceradas e obedientes às profundas naturalizações do cotidiano cristalizadas na linguagem aprendida

Um "aprender" que mais se assemelha a um "adestrar", cuja existência poderia destoar dessa obediência complacente às margens das linguagens aprendidas, com a permutação desse "cristalizar", de legitimação reativa, para o "abolir", potente dissidência, compromisso existencial, verbo incendiário e anárquico, dotado de vigor para uma práxis artística, cotidiana, ativadora de complexidades e liberdades potencializadas, experimentadas, degustadas, saboreadas.

O pensamento libertário energiza outras linguagens e sociabilidades possíveis, ativa complexidades e uma imaginação não tragada pelo senso comum triturador de possibilidades libertárias; nesses não-lugares (inexistentes desde referenciais validadores repressivos), o abolicionismo de culturas repressivas, passando pelo abolicionismo penal, (se) nutriu (de) ressonâncias vívidas, potências sublimes, existências artísticas que viviam a arte de não serem governados, abolindo carcereiros e linguagens repressivas, com muita anarquia e desprezo às significações, representações, imagens, centralidades e autoridades do poder.

Se jamais tivessem existido anarquistas, a anarquia como potência libertária, incendiária, ingovernável e inegociável, nossa imaginação provavelmente seria ainda mais miserável.

Reinventar tais experimentações e movimentações não é tarefa fácil, mas cada libertário, perscrutando caminhos singulares, atravessa e abala as expectativas dos representantes de "bons governos", "bons sistemas" e "boas prisões", e até dos representantes da crítica permitida, na qual se inserem tantos juristas do rei, tão preocupados em controlar e "punir bem". (E proferindo absurdos sobre "combate à corrupção", com cartilhas de medidas absolutamente estéreis e ludibriosas, nas quais direitas e até representantes "da esquerda crítica" se arvoram em busca de votos. Mais do mesmo. Continuidades).

Para se romper com as dicotomias rasas de front, navegar além do jogo instituído é preciso. Ou, se ficará eternamente debatendo sobre Jean Willys versus Bolsonaros, direitos humanos versus prisões e punitivismo e ditadura versus democracia. Podemos mais. Não é possível nos contentarmos com tamanha miséria.Transformar o mundo demanda também transformar as imagens dissimuladas, transfiguradas e devastadas do presente, em ventos libertários.

Os espelhos negros da anarquia se sujam, mas nunca se quebram. Caçados e perseguidos em abundância, eles seguem, sem temer, destronando autoridades, ruindo sistemas com suas singularidades incorrigíveis, não formatadas pelo poder.

Livros "Direito Penal Democrático" e "Direito Penal Constitucional" seguem vendidos por tantos "juristas da resistência" e "criminólogos criativos", expandindo controles, capturas e redes, perpetuando a defesa de "castigos com direitos humanos" e novas prisões.

Consumidores frenéticos dos discursos legitimantes, constroem suas ideias a partir de premissas furadas, de uma filosofia e teoria política estruturante de culturas repressivas, norteadas pelo enfrentamento de dicotomias que no fundo não são dicotomias, senão que complementos da versatilidade dos controles, e de uma ampliação do abismo interpretativo em que nos encontramos, carente de imaginação libertária.

Bons governos, boas prisões, bons castigos e boas autoridades: eis parte do conjunto repressivo que guia tantos dos imersos no senso comum democrático (e que não me interessam). Por vezes escapam de um ou outro, mas seguem legitimando e energizando religiosamente as autoridades do poder que juram combater.

Dicotomias rasas de front. Amigos de muitos dos monstros gélidos que abolicionistas libertários de culturas repressivas se empenham em abolir. Embates de autoridades que brincam com vidas, energizando falsas dicotomias do possível, que também constituem e parasitam suas identidades. Potências sublimes perdidas em embates autoritários que mastigam a complexidade da vida. Trituradores do único dissolvido em centralidades. Parte superior do formulário

"Deuses" brincando com vidas (perdidas).

Saúde,


Notas e Referências:

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