“Retrossocialização”: os retrocessos que fazem de execução penal uma pena de execução

27/12/2015

Por Samuel Lourenço Filho - 27/12/2015

Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais "elevado". (Foucault, 2012. p.16)[i]

“Ressocializar para um futuro conquistar”, esse é o lema de um dos aparelhos de Justiça do estado do Rio de Janeiro, especificamente da Secretaria de Administração Penitenciária. Entende-se que há um anseio em transformar ao comportamento dos internos, algo estritamente ligado ao maniqueísmo, onde os crimes os tornaram pessoas ruins e agora, o Estado tem o compromisso (leia dever) de tranformá-los em pessoas boas. Tentaram fazer isso com Marcos Arruda Brandão, mas não deu certo. Não daria, certamente, afinal é de o censo comum afirmar que os internos não querem nada, que são íntimos da ociosidade e fazem dessa intimidade um celeiro de pensamentos e práticas que não correspondem à punição, melhor, não correspondem à correção. Nesse caso, não é Marcos que desestimula as “constantes” ações do Estado. É o próprio Estado que inviabiliza a oportunidade da chamada ressocialização, desestimulando e promovendo possíveis retrocessos ante a proposta ressocialiatória da Lei de Execução Penal que conta com o trabalho e com os estudos.

Marcos Arruda foi condenado com uma sentença elevada, mais de 60 anos de prisão. Cumpre pena desde os “anos 90”, passou por Carandiru em São Paulo e Frei Caneca no Rio de Janeiro, alega ter vivido horrores na execução de sua pena, contudo decidiu prosseguir “andando do lado do bem”.  Em 2008 já em Regime semi aberto, foi beneficiado com as saídas temporárias para fins de trabalho e visita periódica ao lar. Trato de beneficiado, pois presos no Rio de Janeiro não possuem direito, e sim deveres e possíveis benefícios. Tudo aquilo que se constitui como direito da pessoa privada de liberdade, passa por critérios objetivos e subjetivos culminando em condições meritrocráticas para analisar se vale a pena conceder o direito ao apenado.

Enquanto executa a pena[ii], Arruda segue trabalhando nos dias úteis e visitando a família aos domingos. Com o tempo e confiança ele consegue o “pernoite” que é a possibilidade de dormir em casa nos dias de visita familiar, segundo o proposto na Lei de Execução Penal, art.122. Disposto a mudar de vida trabalhando, visitando seu lar e segue sendo reintegrado à sociedade de forma harmônica, Arruda, entende que precisa estudar, pois o estudo ampliaria seus horizontes e lhe seria favorável para a continuidade dos planos que tomou para si apesar da prisão. O que temos é a ressocialização acontecendo, então não é apesar da prisão, mas “através da prisão”. A reintegração do sujeito é gradativa e agora ele se dispõe a estudar, e o Estado que segue colaborando com tudo até o presente momento, vai continuar apoiando as provocações judiciais de Marcos Arruda que agora deseja ir para a escola após o trabalho.

Após tramitação intensa na Vara de Execução Penal, suspensão das saídas temporárias (início dos desestímulos), recursos aceitos e toda a agitação, em 2012, Arruda consegue sair para estudar, seus estudos rompem o ano de 2013, e só! Em 2014 acaba a validade do ofício de liberação, e Marcos Arruda que é um aluno com boas notas não pode mais ir para a escola sendo suspenso seu direito e interrompida a sua disponibilidade de ser ressocializado via educação e estudos.

Hoje, 25 de dezembro de 2015, Marcos Arruda Brandão continua sem poder ir para a escola. Passou todo esse ano sem ter acesso ao colégio, fez as petições devidas, pagou honorários para sua defesa, mas não pode estudar. E a “arte as sensações insuportáveis” continua insuportável. Os toques judiciais na alma de Marcos são para neutralizá-lo em relação a tudo, e o pior com todo descaso na apreciação de um pedido. A distância, sob regras rígidas e coagido, Marcos é obrigado a ficar sem estudar e os retrocessos da reintegração social são evidentes, e infelizmente, ele, acompanha a Execução Penal executar seus sonhos. A execução parte daqueles que possuem os instrumentos necessários e uma magistrada sem dó e piedade, com requintes de frieza e descontextualizada com a vida de Marcos, decide seu futuro, afirmando que ele não deve estudar, pois isso seria uma ameaça para a sociedade e que, o mesmo, devido à sentença alta poderia evadir.  Segue um fragmento da decisão letal aos sonhos de uma pessoa que tentou viver sob a balança e a espada:

“Assim, a própria progressão de regime, de per si, constitui um benefício ao apenado independentemente da concessão das saídas extramuros ora requeridas. Constato, destarte, que a concessão no presente momento da saída extramuros do apenado para frequência a curso não se coaduna com o objetivo da pena, servindo, inclusive de estímulo para eventual evasão, razão pela qual INDEFIRO o pleito deduzido, ao menos no presente momento, podendo o pedido ser reapreciado posteriormente”.

As questões são:

Será que a juíza tomou a ciência devida dos autos?

Estudar não coaduna com a pena? O que coadunaria? Apenas a prisão com cadeados e grades?

Saberia ela que Marcos não precisa evadir, pois há 8 anos cumpre suas saídas temporárias sem atrasos, saindo da Unidade 06:00 e retornando as 21:00 horas?

Ao apreciar a peça de 2014, não percebeu que se tratava da renovação dos pedidos outrora já deferidos para continuidade dos estudos, e não uma petição para primeiras saídas?

Quase um ano da petição protocolada, não deveria ocorrer uma averiguação maior na tramitação, devido ao tempo?

Bem, a conclusão que chego é que a Execução Penal tentou executar os sonhos de Marcos Arruda, e que proximidade nenhuma havia entre o processo, a pessoa do Marcos, a proposta ressocializatória via estudo e a vida processual em relação ao Executor da sentença. De longe, mas bem distante mesmo como propõe a epígrafe eles julgarão Marcos.  Apesar das dores e de uma frustração com a decisão judicial e de toda sensação insuportável, o querido Brandão faz sobreviver seus sonhos e resiste para poder concluir  seus sonhos de concluir o Ensino Médio.

Como podem decidir pelo futuro do outro com uma irresponsabilidade maior que a atribuída ao condenado? Como podem julgar uma pessoa sem ao menos observar as decisões anteriores? Se há tantos critérios para a concessão do benefício, onde estava o senso mínimo para perceber que já fazia um bom tempo que o réu não queria evadir, apenas queria estudar e não houve quem permitisse? Talvez estavam distantes como citou Foucault. Quem sabe maior estímulo à evasão não seja a concessão do benefício para os estudos, e sim a negação do acesso ao mesmo.


Notas e Referências: 

[i] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 40 ed. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 16 [ii]  A execução do processo consta nesse link: http://www4.tjrj.jus.br/consultaVepWeb/resultConsPublica.do?tpCons=vep&txtRg=0092252428&indTodosMov=S
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Samuel Lourenço Filho, cumprindo pena em prisão Albergue Domiciliar, sob o monitoramento eletrônico da SEAP- MT, e graduando em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – UFRJ.

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Imagem Ilustrativa do Post: Study // Foto de: Moyan Brenn // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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