Políticas Sociais no Neoliberalismo, Responsabilização das Famílias e Violações de Gênero

12/03/2017

Por Fernanda Ely Borba – 12/03/2017

O cotidiano de trabalho em processos judiciais ligados especialmente às Varas de Infância, Família e Violência Doméstica faz com que nos deparemos frequentemente com a fragilidade das políticas sociais de corte neoliberal e a luta surda da população socialmente desfavorecida para acessar aos direitos sociais. Nessas situações, recorrer ao Poder Judiciário revela-se na última alternativa para reclamar o acesso a direitos que em tese deveriam ser materializados por meio do sistema de proteção social brasileiro.

A reconstrução do cenário socioeconômico e cultural dos agrupamentos familiares que protagonizam tais processos judiciais é, caracteristicamente, demarcada pelos reflexos das expressões da questão social[1], notadamente da desigualdade social, pobreza[2], da crescente violência (estrutural e de gênero) e criminalidade e de rupturas e descontinuidades no tocante a participação das figuras parentais na relação de cuidado entre as gerações.

Se por um lado tais processos mais amplos de desigualdade social acabam por repercutir na qualidade das relações familiares[3], por outro, a tendência que marca as políticas sociais nos países em desenvolvimento refere-se à redução do Estado e à responsabilização cada vez maior das famílias no desenvolvimento das ações que, em primeira instância, caberiam à esfera estatal. Conforme Pereira-Pereira (2006)[4] e Mioto (2006)[5], trata-se do processo de "Familização das Políticas Sociais" ou Welfare Mix, no qual as famílias são utilizadas como "braço direito" do Estado na execução das políticas sociais.

De acordo com Mioto (2006), no Brasil prevalece concepção conservadora, encampada pelo neoliberalismo, na qual a sociedade e a família devem partilhar responsabilidades com o Estado. Reflete que na contemporaneidade, a família passa a ser valorizada como importante espaço de proteção dos indivíduos, (re)emergindo como lócus privilegiado e adequado ao desenvolvimento humano e social, recaindo sobre ela um conjunto de atribuições num contexto de grave crise econômica e fiscal do Estado e de precarização dos serviços públicos, numa clara redução das responsabilidades do Estado.

Perversamente, os processos de desmonte das políticas sociais e de progressiva transferência das responsabilidades do Estado para as famílias traduz-se em mais uma das muitas formas de violação de gênero, à medida que recai às mulheres a tarefa de desempenhar responsabilidades estatais, o que se processa sobretudo por meio do trabalho não pago[6]. Ou seja, apropriando-se da tradicional divisão sexual do trabalho[7], o recuo estatal no campo da proteção social incide na sobrecarga das mulheres no tocante ao cuidado das crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, dentre outros segmentos sociais, na maior parte das vezes sem a devida contrapartida dos serviços de proteção social.

O enfrentamento das desigualdades de gênero vai muito além das medidas pontuais focalizadas nas situações cujo direito já foi violado. Requer, acima de tudo, o combate das desigualdades sociais e da concentração de renda, aliada à adequada provisão de serviços de saúde, educação, socioassistenciais, lazer, cultura, dentre outros. Portanto, pressionar o Estado a implementar políticas sociais universais consiste num importante mecanismo para combater as violações de gênero, tendo em vista que extrapolam em muito a dimensão exclusivamente conjugal ou intrafamiliar.


Notas e Referências:

[1] Para Iamamoto (2006), a questão social é indissociável da forma de organização da sociedade capitalista, e diz respeito ao conjunto das expressões das desigualdades sociais nela engendradas. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana – o trabalho -, das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos. Expressa, portanto, desigualdades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por disparidades nas relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilização. Dispondo de uma dimensão estrutural, atinge visceralmente a vida dos sujeitos numa luta aberta e muda pela cidadania, no embate pelo respeito aos direitos civis, sociais e políticos e aos direitos humanos. IN: IAMAMOTO, Marilda Villela. Questão social, família e juventude: desafios do trabalho do Assistente Social na área sociojurídica. IN: SALES, Mione Apolinário et al. (orgs.) Política Social, família e juventude: uma questão de direitos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

[2] Conforme Telles (1992), a pobreza, antes de mais nada, é uma condição de privação de direitos. IN: TELLES, Vera da S. A cidadania inexistente: incivilidade e pobreza. Um estudo sobre trabalho e família na Grande São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 1992.

[3] Para Szymanski (2006), as mudanças que ocorrem no mundo afetam a dinâmica familiar como um todo. No nível particular, as famílias refletem os problemas dos contextos mais amplos em que vivem. Muitos são atingidos pelo estresse causado por mudanças radicais nas esferas econômicas e sociopolíticas da sociedade. IN: SZYMANSKI, Heloisa. Teorias e “teorias” de famílias. IN: CARVALHO, Maria do Carmo Brant de (Org.). A Família Contemporânea em Debate. 7 ed. São Paulo: Educ/Cortez, 2006.

[4] PEREIRA-PEREIRA, Potyara Amazoneida. Mudanças estruturais, política social e papel da família: crítica ao pluralismo de bem-estar. IN: SALES, Mione Apolinário et al. (orgs.) Política Social, família e juventude: uma questão de direitos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

[5] MIOTO, Regina Célia Tamaso. Novas Propostas e Velhos Princípios: a assistência às famílias no contexto de programas de orientação e apoio sociofamiliar. IN: SALES, Mione Apolinário et al. (orgs.) Política Social, família e juventude: uma questão de direitos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006.

[6] CAMPOS, Marta Silva; TEIXEIRA, Solange Maria. Gênero, família e proteção social: as desigualdades fomentadas pela política social. Rev. Katálysis. Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 20-28, junho de 2010.

[7] HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. In: Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, set./dez. 2007.


Fernanda Ely BorbaFernanda Ely Borba possui graduação (2004) e mestrado (2007) em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. É Assistente Social do Poder Judiciário de Santa Catarina desde o ano de 2008, lotada no Fórum da Comarca de Chapecó/SC. Atualmente é aluna do curso de pós-graduação lato sensu Abordagens da Violência contra Crianças e Adolescentes, promovido pela PUC/RS. Integra o  Núcleo de Pesquisas Sobre Violência (NESVI/UNOCHAPECO). Participa da União Brasileira de Mulheres (UBM) sediada em Chapecó/SC. Compõe a Associação Catarinense dos Assistentes Sociais de Poder Judiciário de Santa Catarina (ACASPJ), exercendo o cargo de presidente do Conselho Fiscal (triênio 2017-2020). Estuda o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes desde o ano de 2002, quando passou a integrar o Núcleo de Pesquisas em Violência do Departamento de Serviço Social da UFSC (NEPEV/DSS/UFSC). 


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito. 


 

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