Pensar além do castelo. Uma reflexão sobre furtos, roubos e o sistema penal – Por Guilherme Moreira Pires

27/02/2015

Gostaria de (de)limitar o espectro semântico para focar em dois dos comportamentos responsáveis por significativa parte de nossa população carcerária: furto e roubo.

O tráfico de drogas, carro-chefe da criminalização, deixo para outra oportunidade, especialmente porque, aqui, pretendo incumbir-me dum olhar mais lançado às vítimas e, no caso do tráfico de drogas, isso seria estratosfericamente distinto, com aberrações problemáticas a partir de múltiplas estruturas de pensamento: seja de referenciais mais abstratos, como dos bens jurídicos "protegidos" convenientemente evocados na legitimação do poder punitivo (quando em verdade se protegem funções sistêmicas, à luz de ficções retóricas que transcendem o indivíduo como referencial); ou seja na realidade da montanha de mortos  e encarcerados nessa asnática política sacrifical de derramamento de sangue e genocídio a conta-gotas (Zaffaroni).

Retornando: furtos e roubos. Subtrair algo de alguém, penso, também é alterar a forma como a vítima vive, é submetê-la e lançá-la noutras condições de mundo.

Além das implicações subjetivas e psicológicas (a depender do caso concreto), existe essa faceta. Muitas vezes, essa modificação circunstancial de um viver é mínima, outras vezes, sobremaneira significativa à vítima, conforme declarado no próprio discurso, exemplificativamente, do cidadão que foi arbitrariamente privado de sua bicicleta, de seu relógio, de seu computador.

Existe, em geral, um abalo não previsto na forma de viver. Esses cidadãos precisarão se ajustar ante as novas circunstâncias, ante as fissuras criadas; comumente se esforçam para comprar os itens perdidos ou, na impossibilidade, se esforçam para minimizar os danos perpetrados; é dizer: deparamo-nos com o emergir  de múltiplas possibilidades realísticas, que ocorrem diariamente.

Isso é péssimo para a vítima, sabemos.

Mesmo o mero prejuízo financeiro não é tão simples: acrescente-se que, para comprar seus itens, o cidadão precisa de dinheiro (em tese adquirido mediante trabalho); mediante, portanto, tempo de vida voltado a uma atividade. Em última instância, ainda que enquanto ficção, rouba-se potencialmente o tempo imbuído, não raro um tempo sofrível .

Ou seja, a indignação das vítimas não é exatamente infundada. Muito pelo contrário.

No entanto, cabe pontuar que, muitas vezes, o maior abalo, a maior implicação negativa vislumbrada, se trata, precisamente, do naufrágio da vítima nas águas do punitivismo; a modificação da pessoa, norteada por ódio, indignação, e toda sorte de pensamentos coléricos.

Pensamentos frequentemente incentivados pelas pessoas ao seu redor após a ocorrência: amigos e familiares que (re)alimentam sua indignação adicionando ou reforçando os piores ingredientes e sugestões possíveis, como "tem que matar, reduzir a maioridade penal, castrar", a lista é longa.

Se fizéssemos uma enquete, somente com vítimas desses delitos, provavelmente nos assustaríamos com as respostas punitivistas. Se as pesquisas menos delimitadas, envolvendo todos os cidadãos, já causam espantos (com defesa de linchamentos, espancamentos e execuções sumárias), seria improvável não esperar contemplar o poder punitivo uma categoria central orbitando de modo equivocado seus desejos e ideias (de)formadas de Justiça e solução de conflitos.

O atual sequestro do conflito por uma entidade retórica não carrega consigo maior poder de solução, mas de decisão, distribuindo uma resposta estéril e simbólica, tóxica e cínica, arbitrária, seletiva e loucamente racional.

Meramente lançar a vítima - atualmente reduzida à condição de dado político-sacrificial -, quando usualmente imersa nessa linguagem punitiva,  à condição de protagonista, (re)apropriando-a , conferindo-lhe poder sobre o referencial semântico da "solução", igualmente nos distanciaria da ideia de solução.

O sistema penal, com suas prisões, não nos remete exatamente a um modelo de solução de conflitos, mas de sequestro e tomada de decisões políticas, apenas tumultuando e atrapalhando, que ingressa enquanto resposta atrasada, com seus ingredientes "típicos" (tecnologias, operacionalidades, mecânicas de funcionamento, racionalidades, discursos legitimantes...)  amplificando toda sorte de danos, dores e sofrimentos.

Um desastre enquanto modelo de solução e Justiça; um sucesso para muita coisa.

Infelizmente, as vítimas precisam compreender as profundas limitações oriundas do devaneio de depositar esperanças no poder punitivo, nas construções, sistemas e subsistemas erigidos sob a estrela da punição enquanto categoria fundante; precisam rasgar os presentes lindes de sua morada da linguagem e transcendê-la, ampliá-la, para refletir além dos nossos reentrantes e confinados pontos de partida que elegemos (ou melhor,  que elegeram para nós: premissas, instituições e significações (im)postas, forçosamente validadas pelo mítico contrato social e seus discursos-irmãos-legitimantes).

Assim, também devem se incumbir a Justiça Restaurativa e inclusive os abolicionismos de compreender o poder da linguagem, para só assim sobrepujarem a atual linguagem do poder, que encontrou no poder punitivo seu castelo sistêmico mais colossal, monumental e ameaçador.

Castelo tão influente, tão alto, que nutrimos - todos nós - enormes dificuldades de pensar além. Eis o desafio que deveríamos abraçar, ao invés de fracassada e frustradamente insistirmos em adotar discursos legitimantes que já foram brutalmente golpeados e desconstruídos.

O mosteiro está em ruínas, o rei está nu, todos os discursos legitimantes foram obliterados e já caíram; mas sempre há quem reconstrua o mosteiro, jure que o rei está coberto (se necessário até produzem-lhe roupas), e busque salvar os discursos legitimantes: reformados, reconstruídos, revestidos com as novas roupas do rei.


 

Imagem ilustrativa do post: Welcome to my Kingdom //  Foto de: William Cho // Sem alterações

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