Para provar que o trabalho dignifica o homem

22/07/2016

Por José Ricardo Maciel Nerling - 22/07/2016

Dizem as más línguas que “o trabalho dignifica o homem”. Pela lógica tradicional desse dito, a partir do sentido que ele busca exprimir, se compreende que quem não trabalha não é digno, ou pouco digno é. Esse ditado foi tantas vezes repetido pelas bocas vulgares, desde os “doutores de boteco”, passando pelos “mensageiros de Deus”, chegando aos “nobres representantes da sociedade” no parlamento, que decidi me deter (de maneira pouco científica – e de certa forma até artística) a comprovar que o que eles falam, de fato, não é mentira.

Tomei como pressuposto a avaliação do trabalho na contemporaneidade, analisando o tema neste tempo. Mas concluí que, na verdade, é difícil afirmar que a dignidade possa ser medida de maneira justa pelo trabalho. Primeiro porque a própria economia de produção tem assumido um parâmetro coadjuvante em relação à economia de mercado, logo, a própria função do trabalho tem perdido a importância que já teve em outros momentos da história. Segundo porque, embora o ditado preceitue a dignidade ao trabalhador, se observarmos na prática, nem sempre trabalho e dignidade foram (ou são) complementos um do outro.

A maior parte dos seres humanos viventes trabalhou (ou trabalha) muito, e nem por isso se pode afirmar que esses homens e mulheres tiveram (ou têm) uma vida digna. Aliás, muito pelo contrário: não poucas vezes o próprio trabalho podou (e poda) das pessoas sua dignidade. Por esse último loco, poderíamos refutar por completo o ditado popular. Entretanto, olhando para o passado, não seria possível concluir ao contrário? É evidente que o trabalho possui uma importância considerável para explicar a história do mundo e a sociedade, seja esta antiga ou moderna.

Com o processo civilizatório e a construção dos impérios e do próprio conceito de nação (enquanto povo), o trabalho se manifestou por meio da exploração, especialmente através da escravidão. Nessa última, há, de fato, a apropriação da vida, do corpo e do trabalho de um homem por outro. Contudo, na verdade, o que se tira do trabalhador é sua própria dignidade, ou seja, de fato “o trabalho dignifica a vida do homem”, desde que esse homem seja o senhor de escravos, que detém sua própria dignidade, mais a dignidade do outro, fazendo dela o que quiser.

Num segundo momento, especialmente na idade média, mas com precedentes importantes na história antiga, há a presença dos trabalhadores servis (os servos), os quais, embora não fossem propriedade de alguém, deviam serviços a outrem: no caso, seu senhor. Nesse exemplo, os trabalhadores, de maneira especial na Europa feudal, estavam diretamente ligados à terra, como um acessório que acompanhava o objeto principal na sua compra. O servos e a terra eram o que chamamos hoje de “venda casada”. De fato, esses trabalhadores eram dignos... Dignos de pena.

Numa lógica aristotélica, todos os seres nascem com um talento nato, e a boa vida se consagra a partir do momento em que as potencialidades de cada sujeito são exploradas. Ora, se há destino, não há mais nada a se fazer, a não ser simplesmente aceitar a condição “divina” manifesta na realidade social de cada um. Assim, se és escravo, alegre-se por isso, pois estás cumprindo com valia a missão que tens na terra. A ideia é muito simples: “tudo deve ser mantido do jeito que tudo é”. Não importa se quem tem as propriedades hoje as conquistou à custa do trabalho alheio, pois assim era pra ser. E, se não foi, é porque houve uma quebra na ordem natural das coisas. Refuta-se!

O tempo passou e, por causa de alguns teimosos, certos dogmas antigos começaram a ser postos em questão, fossem eles religiosos, filosóficos ou econômicos. Com tudo isso, o que de fato aconteceu é que alguns perceberam que poderiam ser mais livres (e dignos) do que eram. Isso não quer dizer que essas pessoas abandonariam o que os ascendentes (por suas mãos ou mãos de outros) haviam conquistado até ali. E assim foi. Para encenar o que ocorre daqui em diante, criei um pequeno conto:

Era uma vez o advento da revolução francesa, a queda da Bastilha! Está declarado e assinado: dignidade a todos!

“_ Sou digno e livre!” Exclamou o rico.

“_ Sou digno e livre!” Exclamou o pobre.

Mas, infelizmente, não demorou muito para que um desses dois acima percebesse que, na verdade, “as coisas não eram bem assim”. A fome chegou para o segundo e, então, ouviu-se o seguinte:

“_Venham trabalhar nas minhas terras!” Da parte do latifundiário.

Logo mais: “_Venham trabalhar nas minhas fábricas!” Da parte do burguês.

“_Encontramos um jeito ‘moderno’ de fazermos os escravos aceitarem sua condição, demos-lhes salário, lhes retirando a mais valia.” Pensaram os dois acima.

 “_É preciso trabalhar, é mandamento bíblico, ou não terás comida sobre a mesa! Aliás, é cumprindo seu destino – mesmo que de sofrimento - que agradarás a Deus e serás ‘digno’ no céu.” Exclamou o líder religioso calvinista.

E lá se foi o trabalhador: plantar a comida que compra no mercado; produzir a geladeira que compra na loja de eletrodomésticos.

Enquanto isso, mais riquezas acumulava o detentor do bem de produção, beneficiando-se do trabalho e da dignidade dos “miseráveis”, do mesmo jeito que fizeram seus antepassados, os quais aplaudem seus atos em um quadro preto e branco pendurado na parede. Aliás, até o registro da empresa tem seus sobrenomes: “ora, uma pessoa jurídica com tamanho envolvimento familiar não tem como não dar certo”.

“_Mas veja bem, caro funcionário, se eu cheguei até aqui, você também pode chegar. Basta trabalhar duro, que um dia é a tua vez!” Disse o burguês.

E não é que chegou?! Carro importado, mansão, iate, viagens...

“Trimmmmm!”

Que pena, o sonho acabou...

São 5:30 da manhã, está escuro e frio, a chuva está batendo na janela... Mas é hora de trabalhar – ou o patrão irá se irar.

Pensou o trabalhador: “_Vai que um dia o sonho seja verdade... Pelo menos o capitalismo garante a minha dignidade; a menos que eu não ganhe na loteria. Por isso, não me venham falar em comunismo, onde ninguém trabalha. Não quero ter que levar ninguém nas costas.”

O tempo foi andando, as gerações foram passando, e os problemas não se resolviam. Cada vez mais desigualdade, cada vez mais violência, cada vez mais gente na miséria, e ninguém sem entender nada...

Foi então que o ilustre deputado, garboso e cheio de soluções, falou em plenário: “_ O melhor programa social é o trabalho. O trabalho dignifica o homem.”

Pensando bem, ele está certo, “o trabalho dignifica o homem”, menos o homem trabalhador.


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José Ricardo Maciel Nerling. José Ricardo Maciel Nerling é Graduando em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Membro do grupo de pesquisa “Direito e Economia às vestes do Constitucionalismo Garantista”, sob orientação do prof. Dr. Alfredo Copetti Neto. Acadêmico de Teologia e pós-graduando em História e Ciência da Religião pelo Instituto Superior de Teologia Aplicada, INTA. Aluno Especial do Mestrado em Direitos Humanos pela UNIJUÍ. E-mail: zejosers@yahoo.com.br.


Imagem Ilustrativa do Post: Work in progress// Foto de: Jonas Bengtsson // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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