O Rock Brasil da década de 80 e o Niilismo Político Contemporâneo

07/10/2018

 

Passadas três décadas do fim do regime militar, 2018 nos traz um momento de reflexão sobre o próprio modelo de democracia que construímos nos 30 anos de vigência da Constituição de 1988. Não deixa de ser intrigante que depois de tantas mudanças no país, muitos dos representantes da geração Rock Brasil surgido na década de 80, tenham se manifestado simpáticos a propostas conservadoras cuja pauta reduz os espaços democráticos no país e legitima o endurecimento do regime[1].

Costuma-se atribuir ao movimento Rock Brasil um caráter essencialmente contestador e progressista, havendo contribuído significativamente para a derrubada do regime militar e a redemocratização do Brasil. O assim chamado Rock Brasil parece ter múltiplas facetas, introduzindo na cena musical brasileira dos anos 80 uma estética peculiar, a partir de uma nova linguagem musical que discutia em suas letras inicialmente temas como relacionamentos, desventuras amorosas no contexto de uma conjuntura política nacional em franca ebulição. Esta forma emergente de expressão musical impactou na própria forma de auto-compreensão do Brasil, influenciando as ideias e o comportamento das gerações seguintes, contribuindo para a redemocratização do país depois de décadas de repressão.

Na amplitude do movimento, encontramos momentos distintos, sendo o divisor de águas a intensificação do movimento pela redemocratização e a mobilização pela campanha pelas “Diretas Já” em meados da década de 80. Temos assim, um primeiro momento com as bandas que introduziam uma pauta mais propriamente voltada à emancipação dos costumes, como por exemplo, Absyntho, Gang 90 e Dr. Silvana, que traziam no contexto de um regime autoritário, uma agenda evidentemente libertária e subversiva, como podemos perceber em:

  “Ai, meu ursinho blau blau de brinquedo / Vou contar pra você um segredo / Só você mesmo pra me aturar / Ai, esse meu coração tão vadio / Se amarrou nesse corpo macio / Ela quer é me fazer pirar”

ou mesmo em:

“Eu e minha gata rolando na relva / Rolava de tudo / Covil de piratas pirados / Perdidos na selva”

e de forma mais explícita em:

 “Tudo aconteceu quando ela chegou atrasada / Eram 3 e meia, alta madrugada / E sua mãe a esperava no portão / Logo, pintou bate-boca, a mãe já gritando, / Tava quase louca e exigia em altos berros / Alguma explicação / Eu fui dar mamãe... (foi dar mamãe) / Eu fui dar um serão extra / Trabalhei com o patrão”

O primeiro disco da banda Blitz chegou às lojas com as duas últimas faixas do lado B riscadas pela censura (“Cruel, cruel, esquizofrenético blues” e “Ela quer morar comigo na lua”), além de ostentar o  lacre “impróprio para menores”, ajudando a impulsionar a curiosidade do público e as vendas sob a aura da subversão.

A partir da segunda metade da década de 80, ganham visibilidade as bandas que articularam de forma mais direta e contundente uma crítica institucional. Nesse contexto, encontramos RPM,  Titãs, Legião Urbana, Ultraje a Rigor e Capital Inicial.

 Do ponto de vista geográfico, a cena cultural do Rio de Janeiro catalisou boa parte do movimento, com importantes manifestações também em Brasília e em São Paulo. A cena paulista apresenta influências distintas como o punk e os temas relativos aos dilemas urbanos na megalópole. Em Brasilia, a crítica às instituições e ao poder.

No Rio de Janeiro, a presença de grandes veículos de comunicação e casas de espetáculos impulsionaram a visibilidade nacional do movimento. Aqui foi decisiva a atuação pioneira da Rádio Fluminense de Niterói como espaço dedicado às novas bandas e o Circo Voador, inicialmente montado no Arpoador, e depois transferido definitivamente para o bairro da Lapa, além da primeira edição do Rock in Rio, em janeiro de 1985.

Além da massiva divulgação em espaços na mídia, programas de TV como “Armação Ilimitada” contribuíram para a divulgação de novas formas de expressão, fundadas muitas vezes em um estilo de vida de celebração hedonista e irreverente que se desenvolvia quase sempre no ambiente despojado da praia e da prática de esportes “alternativos” como o surf e o vôo livre, contrastando com a dureza e sisudez dos “anos de chumbo”.  

Em comum a todas as bandas alinhadas ao movimento, o fato de serem integradas por jovens de classe média brasileira. Esta circunstância ensejou fortes críticas ao movimento rock brasil, já que seus integrantes não eram exatamente militantes políticos e nem apresentavam uma crítica social verdadeiramente consistente, parecendo ser antes mais um produto de marketing, como tinha sido décadas atrás a “Jovem Guarda”. Assim, o aparecimento do Rock Brasil além de uma forte influência de um estilo musical que se desenvolveu preferencialmente no contexto cultural dos Estados Unidos e Inglaterra, com letras em inglês e retratando uma realidade alheia à brasileira, dependia de acesso a instrumentos musicais muitas vezes caros e inacessíveis para parcela significativa da população.

                Politicamente não eram propriamente alinhados a nenhuma ideologia. Para a direita, eram jovens que queriam subverter a ordem e os costumes; para a esquerda, eram apenas “rebeldes sem causa”, para tomar o título de uma conhecida letra da banda Ultraje a Rigor:

“Minha mãe até me deu essa guitarra / Ela acha bom que o filho caia na farra /  E o meu carro foi meu pai que me deu / Filho homem tem que ter um carro seu / Fazem questão que eu só ande produzido /  Se orgulham de ver o filhinho tão bonito / Me dão dinheiro prá eu gastar com a mulherada / Eu realmente não preciso mais de nada”

Em “Alvorada Voraz”, a banda RPM trazia uma indignação com o encobrimento da corrupção e o auto-favorecimento do regime:

Fardas e força / Forjam as armações / Farsas e jogos / Armas de fogo / Um corte exposto /  Em seu rosto amor / O caso Morel / O crime da mala / Coroa-Brastel O escândalo das jóias / E o contrabando / E um bando de gente Importante envolvida... / Juram que não Torturam ninguém / Agem assim Pro seu próprio bem Oh!...”

            A crítica à repressão é pauta recorrente, como encontramos na banda Titãs em “Polícia”:  

“Dizem que ela existe / Pra ajudar! / Dizem que ela existe / Pra proteger! / Eu sei que ela pode / Te parar! / Eu sei que ela pode / Te     prender! / Polícia! / Para quem precisa / Polícia! / Para quem / Precisa / De polícia”.

Também a banda Capital Inicial põe o tema em dabate com “Veraneio Vascaína”:

“Cuidado, pessoal, lá vem vindo a Veraneio / Toda pintada de preto, branco, cinza e vermelho / Com números do lado, dentro dois ou três tarados / Assassinos armados, uniformizados / Veraneio vascaína vem dobrando a esquina  Porque pobre quando nasce com instinto assassino / Sabe o que vai ser quando crescer desde menino / Ladrão pra roubar, marginal pra matar / Papai, eu quero ser policial quando eu crescer”

                A ausência de orientação ideológica no movimento permitiu que os Titãs se considerassem deslocados no espaço, sendo antes “De lugar nenhum”:

“Não sou brasileiro / Não sou estrangeiro / Não sou brasileiro / Não sou estrangeiro / Não sou de nenhum lugar / Sou de lugar nenhum / Não sou de nenhum lugar / Sou de lugar nenhum / Não sou de São Paulo / Não sou japonês / Não sou carioca / Não sou português / Não sou de Brasília / Não sou do Brasil / Nenhuma pátria me pariu / Eu não tô nem aí, eu não tô nem aqui / Eu não tô nem aí, eu não tô nem aqui” .

 A década de 80 marcou também o fim da Guerra Fria e um certo desalento quanto ao futuro. A queda do Muro de Berlim expôs com clareza o vazio ideoloógico  que marcou a geração Rock brasil. Em “Mickey Mouse em Moscou”, a banda Capital Inicial assumia:

“Eu vejo eles dançando / Em cima do muro / No meio do mundo / No meio do mundo dividido / Spielberg, Eisenstein / Vodka, CIA / Las Vegas, Kremlin / Tolstói, John Wayne / Champagne, Caviar / Mickey Mouse em Moscou / Batman, Trotsky / Bolshoi, Rock'n'roll / Quem são estes homens / Que vivem atrás da cortina / Quem são estes homens / Ninguém mais vai jogar / Flores mortas no muro / Ninguém mais vai pichar / Frases fortes no escuro”.  

Não por acaso,  Cazuza, ex-vocalista da banda Barão Vermelho sintetizou:

“Meu partido é um coração partido / E as ilusões estão todas perdidas / Ideologia, eu quero uma pra viver”.

A despeito destas circunstâncias, Germano Schwartz em estudo sobre o assunto encontra nas músicas que embalaram a geração 80 elementos que indicam a consagração e o reconhecimento, pelo texto constitucional de 1988,  de um conjunto de reivindicações comprometidas com a democracia e com os direitos fundamentais. (Cf. Schwartz,  2014, 112 ss).

                A leitura que proponho, a partir das circunstâncias e paradoxos já descritos, é que o movimento Rock Brasil por ser repleto de ambiguidades se prestou a uma captura pelo próprio Mercado, que já não tinha interesse em manter de pé o compromisso com o regime militar. Depois do “milagre econômico” forjado ao custo de um alto endividamento externo, a depressão da “década perdida” trouxe para o Mercado o desafio de encontrar novos caminhos. Nesse sentido, não deixa de ser curioso que a indústria fonográfica tenha faturado milhões com a nova cena musical, apesar do seu caráter de crítica “contra tudo o que aí está” partindo da contestação ao próprio sistema econômico e da denúncia da corrupção, da falência do poder instituído e dos problemas institucionais do país na década de 80.

Contrário à repressão e à ditadura por limitar a liberdade, valor sempre reivindicado pela classe média, as bandas do Rock Brasil não ofereciam uma pauta necessariamente inclusiva, já que a crítica institucional sobre desigualdades sociais, inclusão, igualdade de oportunidades, etc não estavam no centro do debate.  

Do ponto de vista social, em um país divido por distintas classes, a experiência do cerceamento de direitos no regime militar brasileiro não pode ser tomada na dimensão da uniformidade.  Por evidente, o regime autoritário foi sentido pela classe média como um limite para o desenvolvimento de muitas prerrogativas inerentes à condição do indivíduo, tais como as liberdades de pensamento e a liberdade da pessoa física. Contudo, para a periferia, a dimensão do estado de exceção, ancorado em uma exclusão permanente, sempre existiu, não havendo desaparecido nem mesmo com a redemocratização.

Uma crítica social nestes moldes aparece apenas pontualmente na produção de bandas como Plebe Rude, que articulou um discurso social mais incisivo: 

“Não é nossa culpa / Nascemos já com uma bênção / Mas isso não é desculpa / Pela má distribuição / Com tanta riqueza por aí, onde é que está / Cadê sua fração? / Com tanta riqueza por aí, onde é que está / Cadê sua fração? / Até quando esperar / A plebe ajoelhar / Esperando a ajuda do divino Deus?”

A conclusão é a de que, apesar da contribuição para a queda do regime militar, não há no movimento propriamente uma crítica ideologicamente orientada. E por isso, a falta da dimensão da critica social, que só viria a ter alguma visibilidade a partir da articulação das expressões musicais da periferia, com o funk e o rap nas décadas seguintes. Assim, o niilismo ideológico permitiu a apropriação do movimento por forças igualmente conservadoras e autoritárias, contribuindo para o paradoxo de, por um lado, concorrer para a derrubada do regime militar, mas por outro lado, permitindo a permanência dos mesmos esquemas de dominação e exclusão sempre vigentes no país.

 

Notas e Referências

BRANDÃO, Aluisio, O Rock Brasileiro nos anos 80: A Relação Rock e Política na “Década Perdida”. 2017. Disponível em: http://www.celsobarbieri.co.uk/memorias/index.php?option=com_content&view=article&id=711:rock-politica-o-rock-brasileiro-nos-anos-80-a-relacao-rock-e-politica-na-decada-perdida&catid=103&Itemid=126

FERREIRA, Wilson Roberto Vieira. Por que Roqueiros dos anos 80 se Tornam Neoconservadores? 2014. Disponível em: http://cinegnose.blogspot.com/2014/05/por-que-roqueiros-dos-anos-80-se-tornam.html

ROCHEDO, Aline. Derrubando Reis. A Juventude Urbana e o Rock Brasileiro nos anos 1980. Rio de Janeiro: Pachamama, 2014.

SCHWARTZ, Germano. O BRock e as expectativas normativas da Constituição de 1988 e o Junho de 2013. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

 

[1] Aqui podemos trazer como exemplos, o apoio do cantor Lobão ao “Impeachment” de Dilma Roussef (https://www.youtube.com/watch?v=oVDgcxGFZKY), e as manifestações de Roger Moreira favoráveis ao candidato Jair Bolsonaro, (https://www.metrojornal.com.br/entretenimento/2018/09/12/roger-ultraje-rigor-visita-bolsonaro-no-hospital-e-diz-nosso-guerreiro-esta-firme.html), além do flerte de Paulo Ricardo com a mesma candidatura (https://www.diariodobrasil.org/rpm-paulo-ricardo-cita-o-nome-de-bolsonaro-durante-show-e-publico-vai-ao-delirio/)

 

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