O que esperar do/a juiz/a em um acordo de delação premiada?

27/06/2016

Por Soraia da Rosa Mendes - 27/06/2016*

É inegável: vivemos um momento, como define Casara, de espetacularização do processo penal[1]. Um tempo no qual o sistema de justiça criminal muitas vezes identifica-se como um aparelho responsável menos pela satisfação do desejo de democracia, do que de um desejo de audiência, muitas vezes também alimentado pelo êxtase que causam decisões de magistrados/as que, descolando-se da função de garantia, assumem a de “intérprete dos sentimentos do povo”[2].

É... como cantaria Caetano, realmente, “alguma coisa está fora da ordem...” 
.

Neste contexto, muito se tem dito e escrito sobre a delação premiada em seus mais diferentes aspectos. De modo que, também eu, gostaria de compartilhar com os leitores e as leitoras do Empório algumas das impressões que fiz constar no capítulo que subscrevo, juntamente com Kássia Cristina de Sousa Barbosa, na obra “A Delação/Colaboração Premiada em Perspectiva”[3], recentemente lançada e da qual tive o prazer de ser organizadora[4].

Embora, como bem dizia Pavarini, “a irrupção da negociabilidade no sistema penal ser responsável pela involução para um Direito Penal desigual, fragmentário e, sobretudo, inefetivo e incerto”[5] (sendo a incerteza e a inefetividade um tema do qual pretendo me ocupar nesta coluna em breve) meu ponto específico, neste momento, é um tanto mais restrito, dizendo respeito ao papel do/a juiz/a[6] na homologação de acordos de delação premiada (eufemisticamente chamada colaboração premiada) quando firmados em situação de privação da liberdade do/a delator/a.

Quero deixar claro que não se trata aqui de uma desarrazoada contraposição à atuação das forças policiais e do Ministério Público no combate à corrupção. Afinal, somente se compraz com o enfraquecimento de tais órgãos quem cujas práticas sejam pouco (ou nada) republicanas e constituam ataques sistemáticos ao patrimônio que a todos e todas nós pertence. A democracia também depende de instituições fortes, mas na exata medida em que orientadas estritamente pelas garantias fundamentais eleitas pelo constituinte de 1988.

Nesse contexto, voltando os olhos para o Judiciário desde uma perspectiva garantista, pressupondo deva ser o/a juiz/a independente tanto frente a razões supostamente de Estado, quanto, mais ainda, ante interesses políticos contingenciais[7],  é de se perguntar como deve(ria) atuar um magistrado/a ante um acordo de delação premiada firmado quando o/a colaborador/a estiver cerceado de sua liberdade.

Embora a jurisdicionalidade, enquanto princípio orientador da práxis, seja, como ensina o próprio Ferrajoli[8], uma utopia liberal, ante a margem de discricionariedade aberta aos/às juiz/as em sua atividade de interpretação da lei, de valoração das provas, de determinação da pena e pelas opções ético-políticas implicadas nos conexos juízos de valor, por outro lado, a maior realização deste modelo, digamos, “ideal”, ainda que tendencialmente, é garantia também de maior igualdade formal entre cidadãos e cidadãs no plano jurisdicional e de redução dos espaços de arbítrio dos/as juízes/as. De tal sorte que, a negação pura e simples do modelo de jurisdicionalidade abre caminho para todo o arbítrio possível.

Desde esta perspectiva, será possível considerar satisfeita a necessidade de existência de voluntariedade, enquanto requisito para a homologação do acordo de delação premiada, quando cerceada a liberdade? Ou, mais claro ainda, quando sabido que o cerceamento da liberdade, temerariamente, em primeira e última instância, pode ser expressão de um poder capaz de obter “a verdade” (ou qualquer “verdade”) que ao final deseja no intuito de atender a razões supostamente de Estado ou interesses políticos contingenciais?

Tenho cá minhas inquietações sobre isso.

O requisito legal da voluntariedade não encontra outro parâmetro de verificação de sua existência que não nos limites da autonomia do/a delator/a que, por sua vez, deve refletir o modo de atuar de um agente, de suas ações e do conjunto de noções – ou valores –  que orientam o campo de uma ação que possa ser considerada ética.[9] Ou seja, por uma ação ancorada pelas ideias do que é bom e mau, justo e injusto, virtude e vício.

Enfim, por um conjunto de valores cujo conteúdo pode variar de uma sociedade para outra, ou na história de uma mesma sociedade, mas que propõem sempre uma diferença intrínseca entre condutas segundo o bem, o justo e o virtuoso.[10]

Uma ação só será ética se for consciente, livre e responsável, e só será virtuosa ser for livre. Liberdade pressupõe autonomia, isto é, deve resultar de uma decisão interior ao/à próprio/a agente, e não da obediência a uma ordem, a um comando ou a uma pressão externa.[11] E é nestes termos que se torna incompatível o expediente da prisão (temporária, preventiva e, agora, mesmo definitiva) e a obtenção da “colaboração” em acordos de investigados/as, réus/rés ou condenados/as com liberdade cerceada.

Na definição de Marilena Chauí “como a palavra autonomia indica, é autônomo aquele que é capaz de dar a si mesmo as regras e normas de sua ação”[12]. Eis aí o ponto fundamental que me faz pensar na voluntariedade somente enquanto uma decisão autônoma e, portanto, livre de pressões externas, como um requisito de existência do acordo de delação premiada que compete, sim, ao/à magistrado/a analisar, bem como declarar sua ausência quando diante de confissões/informações obtidas sob prisão.

A voluntariedade é o que define um ato pautado pela vontade do individuo ao praticar algo, seguindo sua própria iniciativa e autonomia em uma ação.  Sendo que o "respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros"[13].

Na linha do pensado por Paulo Freire, a autonomia, não é, digo eu, “negociável”  ou um pressuposto meramente formal que não corresponda ao/à juiz/a o dever de analisa-lo em substância.

Fora, de um lado, de uma ação ética que só é virtuosa se for livre, e livre se for autônoma no que concerne à conduta do/a colaborador/a (daí a voluntariedade); e, de outro canto, fora de uma compreensão que a autonomia não é um favor concedido como pressuposto implícito para o abreviar do tempo de prisão; de outra coisa não estamos falando senão de violência.

E violência é, mais uma vez nas magistrais lições de Marilena Chauí, “todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém”[14]. Um ato brutal, um abuso físico e/ou psíquico contra alguém e que se caracteriza por relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, medo e terror.

O que mais pode ser aterrorizante, intimidador, opressivo para um investigado/a, acusado/a ou condenado/a em um processo penal (de regra midiatizado) do que a possibilidade de ver sua liberdade cerceada por mais um dia, um mês (ou vários dias ou meses), caso não se transforme em um/a delator/a?

Especificamente, que é a prisão temporária, e mais propriamente a preventiva, senão um ato de força, de subjugação, de indução a uma eventual confissão/delação? Como se define senão como violência?

A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, capazes de linguagem e de liberdade, como se objetos fossem. Ou seja, como irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos.[15]

O respeito à autonomia, definida legalmente como voluntariedade, requisito fundamental para a eficácia da delação premiada, é essencial para a garantia de direitos ao/à acusado/a e, consequentemente, de uma persecução penal séria. A análise do acordo de delação/colaboração premiada exige que se transponha o método inquisitivo, ancorado em uma jurisdição em sentido lato, mediante a qual requer-se a existência tão só de um juízo, qualquer que seja.

Não. Mais do que um juízo cujos olhos percorram a negociação em seu aspecto aparente, é preciso que se adentre a substância do requisito formal da voluntariedade como um pressuposto de verificação da existência do acordo, posto que este disso depende.

O juiz/a é um/a garantidor/a de um sistema que não pode compactuar com violações ou ameaças de lesão aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados. Não podendo permanecer num estado de inércia ou de indiferença ante um quadro como esse. De fato, como aponta Alberto Silva Franco, a/o magistrado/a deve manter com o Texto Constitucional “uma relação de intimidade: direta, imediata, completa”[16].

É a partir dessa compreensão do papel do/a juiz/a no Estado Democrático de Direito e, portanto, do reconhecimento de sua função de garantia dos direitos fundamentais inseridos ou decorrentes da Constituição, que se busca fundamento à legitimação da jurisdição e da independência do Poder Judiciário.[17] E é crendo neste papel, que entendo serem a voluntariedade e o cerceamento da liberdade conceitos que se excluem, e que reconhecer tal fato é a própria razão de ser da função jurisdicional em um Estado de Direito pretensamente democrático.


Notas e Referências:

[1] CASARA, Rubens. Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Escritos Sobre Derecho Penal: nacimiento, evolución y estado actual del garantismo penal. Buenos Aires: Hamurabi, 2014.

[3] MENDES, Soraia da Rosa. BARBOSA, Kássia Cristina de Sousa. Anotações sobre o Requisito da Voluntariedade e o Papel do/a Juiz/a em Acordos de Colaboração Premiada envolvendo Investigados/as e/ou Réus/és Presos/as Provisoriamente. In: MENDES, Soraia da Rosa. (org.) A Delação/Colaboração Premiada em Perspectiva. Brasília: IDP, 2016.

[4] O livro encontra-se em pré-venda disponível por vendas.vozes@gmail.com.

[5] PAVARINI, Massimo. Punir os Inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Curitiba: LedZe Editora, 2012. Pp. 147.

[6] Talvez cause estranheza (ou incômodo) a alguns dos/as leitores/as o uso que faço da barra para designar o gênero de atores e atrizes que integram diferentes lugares no processo penal (p. ex: juiz/a, delator/a etc). Me explico. Compreendo que a linguagem por si só não é sexista, mas o uso que fazemos dela pode ser na medida em que oculta o feminino (algo muito comum no mundo jurídico). Tenho defendido publicamente a necessidade de visibilização das mulheres em eventos, na doutrina e todos os demais espaços de poder, razão pela qual, reconhecendo eu, então, que língua é um reflexo da sociedade, e que ela é capaz de transmitir e reforçar os estereótipos, papéis e lugares considerados “certos” para homens e mulheres nesta mesma sociedade, minha opção será sempre a de fonética e esteticamente utilizar meus textos também como uma forma de provocação pela lembrança de que a desigualdade entre homens e mulheres insiste e persiste em pelo século XXI.

[7] FERRAJOLI, Luigi. Escritos Sobre Derecho Penal: nacimiento, evolución y estado actual del garantismo penal. Buenos Aires: Hamurabi, 2014. Pp. 64.

[8] Ibidem.

[9] CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia e o Discurso Competente e Outras Falas. São Paulo: Cortez Editora, 2007. Pp. 340.

[10] Ibidem.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem, pp. 341.

[13] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (43ª. ed.). São Paulo: Paz e Terra, 2011. Pp. 24.

[14] CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia e o Discurso Competente e Outras Falas. São Paulo: Cortez Editora, 2007. Pp. 342.

[15] Ibidem.

[16] SILVA FRANCO, Alberto. O Juiz e o Modelo Garantista. IBCCrim. Boletim 56. Julho/1997.

[17] Ibidem.


* Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB.


Soraia da Rosa Mendes. . Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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