O Povo: Mais que um mero espectador (Considerações sobre a proposta de implantação do parlamentarismo no Brasil)

15/03/2016

Por Thomas Bustamante - 15/03/2016

Durante mais de cinquenta anos, o Supremo Tribunal Federal vinha adotado uma postura que eu recentemente considerei equivocada no âmbito do controle de constitucionalidade do processo legislativo. Por meio da doutrina das “questões interna corporis”, uma jurisprudência anacrônica e negligente com a proteção do debate parlamentar e dos ritos necessários para a formação racional da vontade popular, a corte vinha convalidando abusos e manipulações descaradas que costumam ocorrer no Congresso Nacional, como a famosa votação da denominada “PEC dos precatórios” no Senado Federal – em que um mesmo projeto de Emenda à Constituição foi votado em dois turnos com um intervalo de menos de uma hora, apesar de o Regimento Interno da Casa fixar um interstício mínimo de 5 dias entre uma votação e outra[1] – e a manipulação do processo legislativo para inserir “emendas aglutinativas” depois de concluído o processo de votação de Substitutivos a propostas de emenda à Constituição, com o nefasto propósito de reapresentar as propostas rejeitadas no dia anterior e aprová-las em desconformidade com o art. 60, § 5º, da Constituição Federal.[2] Foi assim, há aproximadamente um ano atrás, quando testemunhamos atônitos as manobras de Eduardo Cunha nas votações das PECs propondo o financiamento privado de campanhas eleitorais e a redução da menoridade penal para certos crimes. O Supremo Tribunal Federal, nesse tipo de caso, tem adotado o que chamei de um “passivismo procedimental” no âmbito da jurisdição constitucional.

Para piorar a situação, a Corte tem também combinado promiscuamente esse passivismo procedimental – que constitui uma tutela negligente do processo legislativo – com um perigoso ativismo substancialista, que se materializa quando a corte se sente autorizada a tomar decisões sobre matérias caracterizadas por um elevado grau de desacordo razoável, onde a sua autoridade moral para decidir sofre importantes questionamentos.[3] Tangenciando a arrogância, a Corte se sente autorizada a realizar juízos políticos e morais que seriam próprios do legislador, sem ter sequer a preocupação em discutir em plenário esses juízos. Nesse sentido, tenho em mente algumas liminares desastrosas do ponto de vista da legitimidade democrática do Supremo Tribunal Federal, como a decisão da Ministra Carmen Lúcia suspendendo a distribuição de royalties do petróleo feita pelo legislador,[4] a decisão do Ex-Ministro Joaquim Barbosa suspendendo a eficácia de uma Emenda à Constituição para criar novos Tribunais Regionais Federais com argumentos de cunho puramente econômicos,[5] e a decisão do Ministro Luiz Fux estendendo o controvertido auxílio-moradia para todos os magistrados do país.[6]

Não se pode deixar de reconhecer, porém, que recentemente o Supremo Tribunal Federal deu importantes passos na direção certa para recuperar o seu papel de garantidor dos procedimentos e prerrogativas necessárias para a manutenção do equilíbrio entre os demais poderes. Nesse sentido, o acórdão do STF que definiu o rito do impeachment na Câmara e no Senado Federal é um importante marco na história do Supremo Tribunal Federal. A decisão restaura não só o equilíbrio entre os Poderes Executivo e Legislativo, mas também o equilíbrio entre as duas Casas que compõem este último Poder. Sem expressar qualquer juízo sobre o mérito do impeachment, que compete apenas ao Poder Legislativo, a Corte fixou as balizas necessárias para o processo de impedimento tramitar segundo regras claras, preestabelecidas, aptas a garantir o direito de defesa e a proteger a manifestação do voto popular contra investidas apressadas e autoritárias. Se, por um lado, se reconhece ao Congresso Nacional a soberania para decidir com a última palavra o futuro da Presidente da República, por outro lado se impõe aos interessados em destituí-la o ônus de observar rigorosamente aos procedimentos e ritos previstos no documento constitucional. O voto do Ministro Luís Roberto Barroso, na ADPF 378/DF, é não apenas um primor de argumentação jurídica e uma reflexão cuidadosa sobre os procedimentos no âmbito do processo de impedimento, mas também uma mudança importante em direção a um novo paradigma, em que o Supremo Tribunal Federal esteja mais preocupado em zelar pela Ordem Jurídica e pelo equilíbrio entre os Poderes do que em tomar para si juízos políticos e morais estranhos à sua competência constitucional.

É com base nesse tipo de atitude que eu espero que o STF julgue, no próximo dia 16, o Mandado de Segurança nº 22.972/DF, que versa sobre a admissibilidade de proposta de emenda constitucional instituindo o regime parlamentarista no Brasil.  A questão é altamente relevante porque há poucos dias atrás foi apresentada no Senado Federal uma Proposta de Emenda à Constituição com profundas mudanças no sistema de governo adotado pela República Federativa do Brasil. A PEC 09/2016, do Senador Aloysio Nunes Ferreira, pretende implementar um parlamentarismo no Brasil sem qualquer espécie de referendum ou consulta popular por mecanismos de democracia direta. Da forma como foi apresentada a proposta é, com a devida vênia, um atentado grosseiro à democracia e ao Estado de Direito. Ela subordina um projeto de nação às contingências da política rasteira e permite desconstituir uma decisão política tomada pelo próprio povo, em referendo, com base em um compromisso político de ocasião cujo único propósito é derrubar um governo democraticamente eleito.

Mas poderia ser apresentada uma proposta melhor? A questão me parece muito semelhante à proposta de uma Constituinte Exclusiva apresentada pela Presidente Dilma Rousseff nos protestos de junho de 2013. Pela proposta, a Reforma Política deveria ser feita por uma Assembleia Constituinte eleita diretamente pelo povo, e precedida de uma Convocação por meio de plebiscito ou referendo popular. Seria ilegítima uma Constituinte Exclusiva com essas credenciais?

Minha intuição é de que seria tão legítima quanto uma Emenda à Constituição para instituir um novo plebiscito sobre o parlamentarismo, reconvocando-se o plebiscito previsto no art. 2º do ADCT.

Um dos maiores desafios do constitucionalismo contemporâneo é se “desjuridicizar”, e recuperar o seu papel de viabilizador do processo político, e não apenas limitador da vontade e da participação popular.

O conceito de “constitucionalismo” pode ser entendido em pelo menos três acepções, que encontram ampla ressonância na academia, na política, na dogmática jurídica e, por que não, na militância de modo geral.

É comum vislumbrá-lo a partir de uma perspectiva puramente sociológica, que entende a constituição como inteiramente determinada pelos denominados “fatores reais de poder”, contra os quais ela não passaria de uma “folha de papel” incapaz de instituir uma pauta juridicamente vinculante para a sociedade e para as instituições de modo geral.[7]

O mais comum, entretanto, é defender uma concepção jurídica de constitucionalismo, que está na base do Estado Liberal. O que se pretende aqui é conceber a constituição como um documento jurídico cuja função precípua é definir os limites do poder político, distribuindo-o entre os diferentes “poderes” e fixando não apenas competências, mas também direitos oponíveis contra o Estado e garantidores da autonomia individual. Essa é a ideia básica por detrás da noção de “legislador negativo”, que Kelsen tornou imortal. Sendo um documento jurídico que limita, proíbe, constringe o governo, é necessário uma Corte Constitucional para reprimir a tentação de romper com as balizas normativas fixadas no documento constitucional. A corte nada poderia inovar na ordem jurídica, mas teria poder para desconstituir qualquer ato que traspassasse os limites da ordem constitucional.[8]

Existe, porém, uma terceira acepção que tem ganhado força na filosofia política contemporânea, e que se autodenomina de constitucionalismo político. A ideia aqui é conceber a constituição como viabilizadora de um discurso político democrático, mais do que como limitadora desse processo.  Este tipo de constitucionalismo crê que o “processo democrático é mais legítimo e efetivo do que o judicial” para solucionar os nossos desacordos políticos fundamentais. Apenas quando o próprio povo exercer os seus juízos “por meio de um processo democrático” é que eles (os cidadãos) “podem ser considerados iguais e os seus multifacetados direitos e interesses podem receber igual respeito e consideração”.[9]

Quando voltamos nossa atenção para sistemas jurídicos reais, como o sistema jurídico brasileiro em vigor nos dias de hoje, é difícil subsumir esses sistemas em qualquer um desses modelos isoladamente. Mas é possível advogar propostas sobre qual deve ser a configuração de nossas instituições políticas e sobre como essas instituições devem se comportar a partir dessas (ou outras) concepções abstratas sobre o constitucionalismo.

É com esse espírito que se devem analisar propostas como uma emenda constitucional para implantar no Brasil um parlamentarismo ou uma espécie de “semipresidencialismo”, como parece estar advogando um grupo representativo de membros do Senado Federal. É também com esse espírito que se deve analisar propostas como a Reforma Política por meio de uma Constituinte Exclusiva.

A teoria constitucional evoluiu para um modelo em que não se concebe mais um único “momento constitucional”, um único instante onde o Poder Constituinte do povo se manifesta plenamente e de forma legítima. Em tempos de crise, como o que vivemos, qualquer saída tem que vir da política, e não de uma decisão técnica do judiciário. E qualquer saída política deve, acima de tudo, ter como protagonista o próprio povo, por meio da democracia direta, sem intermediários, salvadores da pátria ou intérpretes “autênticos” para falar em seu nome.

A proposta do Senador Aloysio Nunes Ferreira, portanto, é tão autoritária e antirrepublicana quanto seria uma decisão do Supremo Tribunal Federal que retirasse do próprio povo a oportunidade de decidir o sistema político que ele acredita ser melhor para governar a si prório. Numa República, é bom lembrar, “todo o poder emana do povo”, e a única coisa que não podemos admitir é que o povo seja infantilizado ou considerado um mero espectador de uma decisão tão crucial para o seu próprio destino.


Notas e Referências:

[1] Ver STF, ADI 4.425, Pleno, Rel. do Acórdão Min. Luiz Fux, j. 14.03.2013, DJE de 19.12.2013.

[2] STF, MS 22.503, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Maurício Corrêa, DJ de 06.06.1997.

[3] Bustamante, Thomas; Godoi Bustamante, Evanilda Nascimento. “Jurisdição constitucional na era Cunha: entre o Passivismo Procedimental e o Ativismo Substancialista no Supremo Tribunal Federal”. Revista Direito & Práxis (UERJ), vol. 7, num. 13, 2016, pp. 346-388. Disponível em http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/17530.

[4] STF, ADI 4917, Rel. Min. Cármen Lúcia. Decisão monocrática, j. 18.03.2013. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/adi4917liminar.pdf .

[5] STF, ADI 5017, Rel. Min. Luiz Fux, Decisão monocrática prolatada pelo Min. Joaquim Barbosa em plantão judicial. J. 17.07.2013.

[6] Ver http://www.conjur.com.br/2014-set-26/fux-estende-pagamento-auxilio-moradia-toda-magistratura , onde se tem acesso ao inteiro teor das liminares defendidas pelo Ministro.

[7] Por todos, ver Ferdinand Lassale, A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1985.

[8] Hans Kelsen, “A garantia constitucional da Constituição (Exposições e debates na sessãode 1928 do Instituto Internacional de Direito Público”, em, Jurisdição Constitucional, trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

[9] Richard Bellamy, Political Constitutionalism: A Republican Defense of the Constitutionality of Democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2007 , p. 4-5.


Thomas Bustamante. . Thomas Bustamante é Professor de Filosofia do Direito da UFMG. . . .. . . 

Imagem Ilustrativa do Post: Pense // Foto de: Dudu Viana // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/dudumvf/1808608717 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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