O Cheiro

31/10/2015

“Um simples aspirar e basta — qualquer cheiro é suficiente para despertar fome, provocar atração ou repulsa, trazer de volta cenas do passado. Cheirar é se emocionar sempre. Mas na maioria das vezes isso é tão sutil que não se dá importância e se acaba torcendo o nariz para o olfato — o mais primitivo e intrigante dos sentidos, e com certeza o menos conhecido pela ciência. Poucos percebem que, num mundo onde quase tudo tem odor, é esse sentido que decifra as mensagens químicas — das quais frequentemente depende a própria sobrevivência — passadas pelos animais, vegetais, minerais e objetos manufaturados.”

Lúcia Helena de Oliveira

Na obra “O Perfume: história de um assassino”, Patrick Süskind narra em tom de fábula, entre Paris e a Provença, na primeira metade do século XVIII, a vida de Jean-Baptiste Grenouille, dono de uma prodigiosa capacidade de perceber e distinguir os aromas.

“Aos seis anos, já havia captado olfativamente todas as suas redondezas. Não havia na casa de Madame Gaillard nenhum objeto, na Rue de Charonne, ao norte, não havia lugar, ser humano, pedra, árvore, arbusto ou cerca de ripas, nenhuma superfície, por menor que fosse que ele não conhecesse pelo cheiro…” Um pouco mais velho Grenouille podia perceber individual ou conjuntamente todos os cheiros da cidade de Paris. Conseguia, portanto cheirar individualmente cada pessoa ou a rua como um todo. “Misturavam-se odores de pessoas e de animais, vapores de comidas e de doenças, de água e pedra e cinza e couro, de sabão e de pão recém-assado e de ovos fritos no azeite, de massas e de latão esfregado até o branco, de salva e cerveja e lágrimas, de gordura e de palha molhada e seca. Milhares e milhares de odores constituíam um mingau invisível, que enchia a garganta das ruazinhas, volatizando-se só raramente por cima dos telhados, jamais embaixo, no chão”. (O Perfume: história de um assassino. Patrick Süskind)

O ser humano é capaz de perceber mais de 10 mil diferentes odores, cada qual definido por uma estrutura química diferente.

Quando uma substância química entra em contato com a mucosa olfativa, ela é dissolvida, resultando numa molécula do cheiro que reage com os cílios das células sensoriais. Esse contato provoca uma reação química, produzindo um impulso elétrico. Os nervos olfatórios, feixes formados por milhões de fibras, fazem esse impulso elétrico chegar até os lobos frontal e temporal, duas regiões do cérebro que traduzem a substância em cheiro.

O sistema olfativo tem características únicas. As mensagens de cheiro não atingem uma região específica do cérebro. Tampouco as informações olfativas parecem trafegar por meio da “estação de transmissão sensorial”, o tálamo. Cientistas especulam que o sistema olfativo evoluiu separadamente e anteriormente aos outros sistemas sensoriais. A tarefa de discriminar os odores e organizá-los no imenso arquivo de cheiros em nosso cérebro cabe a várias estruturas localizadas no sistema límbico (amígdalas, hipotálamos, hipocampos, córtex entorrinal, tálamos). A amígdala e o hipotálamo são responsáveis pelos aspectos emocionais e o córtex frontal pela discriminação e percepção consciente dos odores. O hipocampo e o córtex frontal, por sua vez, também respondem pela fixação de outros significados como o valor social e o contexto espaço-temporal em que a ação ocorre. O fato de todas essas regiões do cérebro estarem conectadas faz com que o processamento do odor envolva tanto aspectos cognitivos quanto emocionais. Não são raras as vezes que cheiros nos remetem às boas ou más recordações.  Basta fechar os olhos para lembrar do cheiro da infância e do bolo da vovó, do pão de queijo assando, das flores no campo, da terra molhada pela chuva… Ou de outros aromas não tão agradáveis e tão pouco de boas recordações: cheiro do consultório dentário e do hospital, das flores que cobrem o morto, do formol, do esgoto…

Quando olhamos uma fotografia, assistimos a um documentário ou a um filme que se passa na prisão, geralmente superlotadas, não imaginamos o cheiro que é exalado do local. Nunca consegui e acho que jamais conseguirei definir o cheiro de uma prisão. Trata-se de um cheiro indescritível, indecifrável e peculiar. Talvez uma miscelânea de diversos odores.  Odores de pessoas que mal se banham; cheiro do suor; cheiro da comida, muitas vezes azeda; cheiro dos ratos e gatos que dividem o minguado espaço com os presos; cheiro de fezes e de urina; cheiro das roupas (pedaços de pano) que secam na própria cela; cheiro de creolina; cheiro do gás de pimenta que insiste em permanece no ar; cheiro de mofo; cheiro da água podre que em tempos chuvosos inunda as celas; cheiro da doença e da ferida ainda aberta; cheiro do sangue pisado e da lágrima que ainda resta.

O odor é tão forte e marcante que mesmo depois que saímos da prisão ele fica impregnado em nossas roupas, em nosso corpo e em nossa alma. O cheiro da desgraça, da humilhação, da falta de luz…  Cheiro da vergonha que nos acompanha por permitir que homens e mulheres sejam tratados como subespécie.

Os acusadores e julgadores deveriam, antes de acusar e condenar, sentir o cheiro da crueza humana. Os concursos para ingressar nas carreiras do Ministério Público e da magistratura deveriam ter mais uma fase: conhecer e conviver com o cheiro da desgraça e da miséria (des) humana que exala das prisões. Roberto Lyra recomendava aos colegas de Ministério Público que “antes de se pedir a prisão de alguém deveria se passar um dia na cadeia”. Antes de condenar, também. Contudo, infelizmente, muitos Promotores de Justiça e Juízes de Direito acusam e condenam sem jamais terem pisado num presídio ou mesmo numa cadeia pública. Não conhecem o cheiro. Os livros de direito penal e processo penal, por mais descritivos que sejam, são incapazes de transmitir o cheiro da prisão – causa de doenças e vícios. Os livros tem cheiro de livros. Prisão cheira a desgraça, a miséria, a podridão… Não pensem que quando o preso for libertado – liberdade sempre tardia – o cheiro, depois de muitos e muitos banhos e perfumes, esvaecerá. Não, o cheiro já faz parte do egresso, está em suas entranhas, já penetrou em sua alma. Cheiro que fará com que o egresso sempre se lembre do inferno.

Belo Horizonte, primavera de 2015.


Sem título-1

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Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).

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Imagem Ilustrativa do Post: nose // Foto de: Helen Cook // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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