Nossa complacência de rebanho e o potencial adormecido. Existe solução? – Por Guilherme Moreira Pires

14/03/2015

Leia a primeira parte aqui

Parte 2

Prisões: em busca de um denominador comum 

Mostra-se impensável, no meu caso, não (re)lembrar de Bakunin e Feyerabend quando deparo-me com a supressão da crítica presente em tantos especialistas que mergulharam majoritariamente em instituições e significações internas para estudar o Cárcere, mas que se perderam no processo (talvez antes mesmo disso), incorporando toda sorte de discursos legitimantes (vide parte 1).

Tornaram-se reféns de lindes semânticos escassos; mais do que isso: esses tornaram-se complacentes com as arbitrariedades nossas de cada dia, introduzindo justificações históricas, sociológicas, econômicas, filosóficas, políticas... algumas do positivismo naturalista e metodológico.

Em Deus e o Estado (p.30), já alertara Bakunin: “O maior gênio científico, no momento em que se torna acadêmico, um sábio oficial, reconhecido, decai inevitavelmente e adormece. Perde sua espontaneidade, sua ousadia revolucionária, e a energia incômoda e selvagem que caracteriza a natureza dos maiores gênios, sempre chamada a destruir os mundos caducos e a lançar os fundamentos dos novos mundos.”

Bakunin acrescenta que se perde em potência de pensamento o que se adquire em sabedoria utilitária e prática: ao mesmo tempo que se vê mais, se vê menos (novamente: pontos-cegos), relação do visível com o invisível.

É a esse embrutecimento da crítica, que cessa de ser (re)formulada e expandida, rasgando seus próprios limites; bem como a esse adormecimento derivado do status de sábio oficial, "o mestre", que se refere também Feyerabend em suas formulações, enxergando limitações grosseiras nos discursos dos especialistas, verdadeiras barbáries paralisantes do pensamento crítico, por acordo semântico que proponho, aquele tendente a rasgar e transcender limitações e contradições sistêmicas e inclusive paradigmáticas, norteado por uma constante reflexão libertária. No momento em que deixar de se movimentar, não mais será crítico.

Não há méritos, numa acepção libertária, em visões sociológicas e sistêmicas que negligenciam existências, reduzidas a dados e informações, invisibilizadas ou sacrificadas enquanto vidas.

Bakunin e Feyerabend desconfiavam dos especialistas. Se estivessem vivos hoje, enviaria o último golpe de especialistas, que criaram um rol de argumentos para a introdução do feminicídio; um show de horrores que engana especialmente quem deseja ser enganado. A barbárie dos especialistas nossos de cada dia, que constroem muros ao invés de pontes.

Para filtrarmos um pouco, é preciso recordar que tanto Feyerabend quanto Bakunin possuíam estilos intensos e mordazes de escrita; e defensável que estilos plenamente justificáveis pelos contextos e históricos de vida em que estavam inseridos .

Isto talvez confunda quem opera à luz do pensamento unidimensional, mas, ao mesmo tempo que contemplamos a barbárie dos especialistas, por exemplo, vendendo poder punitivo em cápsulas e invocando coringas, sacando cartas retóricas como "princípio da proibição da proteção deficiente" no apoio ao feminicídio; percebemos, como atesta Zaffaroni, que os verdadeiros especialistas não estão sendo ouvidos, o que debatíamos quando abordávamos os pensamentos de algumas pessoas, como Ulrich Beck (que infelizmente faleceu em 1 de janeiro de 2015).

Embora exista um grau de arbitrariedade na construção dos "verdadeiros especialistas", também é certo que existe uma montanha de atrocidades (re)ativada por tantos outros; e alguns especialistas escapam em maior ou menor medida de(re)produzir essas montanhas.

Nessa esteira, não podemos acatar um relativismo absoluto. É possível, sim, afirmarmos que nomes como Nilo Batista, Juarez Cirino dos Santos, Vera Regina Pereira de Andrade, Maria Lucia Karam, Vera Malaguti Batista, Amilton Bueno de Carvalho, dentre tantos outros, possuem mais a dizer do que aqueles que realimentam o senso comum teórico dos juristas (Warat). No ES, aponto os criminólogos Thiago Fabres de Carvalho e Clécio Lemos, bem como os mais novos - e com potencial enorme - Breno Zanotelli e Thayla Fernandes, jurista e socióloga, que felizmente pode buscar compensar as deformações dos sociólogos e juristas.

É preciso ouvirmos o que os especialistas possuem a nos dizer, mas não quaisquer especialistas, isso há que ficar muito claro.

A alcunha de mestre acompanha um núcleo de poder apto a se exercer, poder que também facilmente imbeciliza (Nietzsche), tendente a se expandir, se perpetuar; e todo poder, diria Foucault, depara-se com alguma resistência, ainda que enquanto rebelião em potência, acastelada mas passível de ativação.

No final, é uma questão de avaliarmos o que é dito e pensarmos, criticamente, se devemos, ser *amplificadores e reprodutores de arbitrariedades* (com ou sem ressalvas - como os que legitimam o sistema penal com ressalvas, criando um arquétipo de ius puniendi)...

Ou se devemos ser *resistência* ao que é apresentado.

Eu escolho a resistência, mas uma resistência que não se limite à contenção de danos, senão que tenha papel ativo numa reformulação sistêmica  e radical, com rupturas paradigmáticas.

"O mosteiro está em ruínas, o rei está nu, todos os discursos legitimantes foram obliterados e já caíram; mas sempre há quem reconstrua o mosteiro, jure que o rei está coberto (se necessário até produzem-lhe roupas), e busque salvar os discursos legitimantes: reformados, reconstruídos, revestidos com as novas roupas do rei." (Pensar Além do Castelo, 2015).

Ao mesmo tempo que abolicionismos rasgam as ciências e os saberes ditos científicos, possuem uma vasta gama de dados empíricos que lhes alicerçam, é dizer: são também cientificamente e metodologicamente incríveis, sem, contudo, buscarem o ser, sem um fascínio louco pela "razão", pela "ciência", pela "técnica", pelo "método", esses mantos retóricos de arbitrariedades.

Em outras palavras, sem nutrir um fascínio por tudo isso, e ao mesmo tempo entendendo a arbitrariedade de tudo isso - bem como do poder aqui instigado -, abolicionistas tendem a moer os argumentos capengas dos científicos, especialmente quando se tratam de penalistas coroadores da pena... ou sociólogos e historiadores afirmando que não devemos buscar muito além.  A morte da crítica libertária.

Abolicionismos devem desafiar ídolos alçados à condição de deuses; repelir o câncer do contratualismo , da mítica guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes), do pós-modernismo, do relativismo absoluto.

Devemos dilacerar a técnica pela técnica e sem a técnica, de todas as formas, em todos os pontos, promovendo fissuras em cada encouraçada parte arbitrária do todo.

O simples fato de pensar em autores como Nietzsche, Bakunin e Feyerabend, já conferiu ao presente texto um pouco de acidez. Esse é o poder dos pensadores, eles nos influenciam e nos moldam.

A pergunta é: por quem você prefere ser influenciado? Por um Kropotkin, Warat, um Foucault, um Zaffaroni? Emma Goldman? Talvez um Hulsman? Ou Datenas, Shere-não-sei-o-quês, e penalistas coroadores da pena, que gritam garantismo positivo/negativo  e "princípio da proibição da proteção deficiente"?

Essa é uma escolha de vocês.

E ninguém deve roubá-la de vocês.

C'est La Vie


Notas e Referências:

[1] BAKUNIN, Mikhail. Deus e o Estado. Trad. Plínio Augusto Coelho. Ano de publicação original 1882. Ano de digitalização: 2002.

 [2] CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a Marteladas (Algo sobre Nietzsche e o Direito). Rio de Janeiro: Lumen juris, 2013.

[3] FEYERABEND, Paul K. Against method. London: NLB, 7 Carlisle Street, Londres WI, 1975.

[4] FEYERABEND, Paul K. La ciencia en una sociedad livre. Buenos Aires: Paidós, 1988.

[5] FEYERABEND, Paul K. Límites de la ciencia. Buenos Aires: Paidós, 1991.

[6] FOUCAULT, Michel: “Omnes et singulatim: hacia una crítica de la razon política”, en Foucault,Michel:La Vida de los Hombres Infames, Nordan-Comunidad, BsAs-Montevideo, 1993, 265-306.

[7] FOUCAULT, Michael. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1996.

[8] FOUCAULT, Michael. O Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

[9] FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2002.

[10] KROPÓTKIN, Piotr. As Prisões. Trad. e diagramação: Barricada Libertaria. Campinas, 2012.

[11] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos Ídolos. Ou Como Filosofar com o Martelo (traduzido pt.).Buenos Aires: Colección Libertad, 2009.

[12]PIRES, Guilherme Moreira. Pensar além do castelo. Uma reflexão sobre furtos, roubos e o sistema penal. Empório do Direito, 2015.

[13] WARAT, Luís Alberto. O Saber Critico do Direito e Um Ponto de Partida Para Uma Epistemologia das significações. Revista de Ciências Sociais de Valparaiso, v. 23, n.2, p. 270-285, 1983.

[14] WARAT, Luís Alberto. Os Problemas da Metodologia do Ensino - Material de Metodologia Jurídica - UBA: Buenos Aires, 1972.

[15] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas. Deslegitimacion y Dogmatica Juridico-Penal. Buenos Aires: Ediar, 2013.

[16] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Palabra de los Muertos. Conferencias de Criminología Cautelar. Prólogo de Juan Gelman. Buenos Aires: Ediar, 2011.

[17] Música: C'est La Vie. Emerson, Lake And Palmer.

 

Imagem ilustrativa do post: Un diseño para camisetas con los rostros de los anarquistas Emma Goldman y Mijaíl Bakunin. // Autor: Nihilo // Sem alterações.

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