No Vale - tudo Judicial: atacar o adversário com a luta parada, dedo na ferida e golpe baixo intencional também são proibidos

17/03/2016

Por Bheron Rocha – 17/03/2016

Vale-tudo é esporte de contato, entretanto, apesar de o nome sugerir isso, nem tudo é válido, há regras, há limites e há proibições irrelativizáveis. Não pode por dedo na ferida ou no olho do adversário, não pode morder, não pode dar golpe baixo intencional, nem puxar o cabelo: são práticas completamente proibidas.

Ao jogo judicial a arte marcial tem muito a ensinar.

Evidentemente que, no combate à corrupção intestina e endêmica, as estratégias de busca da constituição das provas para a responsabilização dos agentes são mais duras, incisivas e invasivas. É que há uma proporcionalidade entre os meios de obtenção das provas e a gravidade das infrações cometidas, tanto que não são permitidas interceptações telefônicas para crimes menos graves (art. 2º, III,  lei nº 9.296/96). Contudo, não se admite a produção ilícita da prova, é que deve haver uma harmonização entre meios e fins. Fins justos requerem meios justos.

Na colheita probatória judicial, por exemplo, há vedações intransponíveis: nem todas os meios podem ser utilizados para obter a prova. Há um regramento, deve-se obedecer os ditames da Constituição e seus corolários nas normas processuais, a obtenção do conjunto de provas sofre  limitações perante a dignidade humana, a intimidade, a inviolabilidade do domicílio e o devido processo legal, entre outros.

O Estado não pode torturar para obter a informação necessária; não pode invadir a residência para apreender documentos sem mandado; não pode mentir para o acusado para induzi-lo a se incriminar; não  pode prender os entes queridos de um réu para forçá-lo a cooperar. Nem todas os meios podem ser utilizados no processo penal.

No vale-tudo, falo da arte marcial, não se pode atacar o adversário após a paralisação da luta pelo árbitro: é uma regra que precisa ser esclarecida ao Juiz da Operação Lavajato, que determinou a juntada de áudio de interceptação telefônica – e sua respectiva transcrição – captado após decisão de interrupção da colheita da dita prova, decisum por ele mesmo exarado e inserido nos autos às 11:12 da manhã do dia 16 de março.

A conversa entre o ex- presidente Lula e a Presidenta Dilma se deu às 13:32, de onde que se deflui que a colheita da prova se deu fora do lapso temporal abrangido pela decisão judicial. Sem decisão judicial autorizando a captação, a prova é ilícita.

Ademais,  no lastro do despacho que decidiu pelo levantamento do sigilo das provas colhidas nos apensos de interceptação, não há qualquer referência ao diálogo entre Lula e Dilma, qualquer palavra que seja para fundamentar sua manutenção nos autos.  Não se trata de qualquer interlocutor, mas da Chefe do Executivo Federal. Personagens de bem menor envergadura foram expressamente mencionados. E a inclusão de seus diálogos foi objeto de fundamentação. Talvez uma referência un passant ao Princípio da Serendipicidade fosse suficiente. Mas nem isso.

É curial que qualquer “gravação que não interessar à prova” deve ser inutilizada (daí a imprescindível referência à necessidade da interceptação para o conjunto probatório), assim determina a lei nº 9.296/96 (art. 9º). A incorporação desta gravação do citado diálogo ao processo sem o cuidado da fundamentação tem uma forte coloração extrajurídica. É o dedo na ferida.

Mas pode piorar: ainda tem o tal do golpe baixo intencional: após receber prova colhida ilicitamente, após incorporá-la aos autos sem a devida fundamentação de sua necessidade, em contrariedade à clara regra legal, o Magistrado determinou o levantamento do sigilo, empurrando a prova – ilícita e desnecessária ao processo – para o conhecimento do público. Era a faísca que faltava à gasolina derramada.

Mas quem manuseia fogo, pode acabar por ele consumido. É que constitui “crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”. Não se poderia imaginar a vida em sociedade se a intimidade das conversas telefônicas e das mensagens de whatsapp ou a privacidade do lar pudessem ser maculadas e expostas, sem a observância das regras estabelecidas pelo povo, através de seus representantes eleitos.

Nem tudo é válido para o processo, pois até o vale-tudo judicial tem regras, limitações e proibições claras, como dito lá no início, irrelativizáveis: é uma escolha civilizatória.

E a civilidade tem um preço. A barbárie também. Optamos por pagar o primeiro.


Bheron Rocha.

Jorge Bheron Rocha é Defensor Público do Estado do Ceará. Mestre em Ciências Jurídico-criminais pela Universidade de Coimbra. Sócio Fundador do Instituto Latino Americano de Estudos sobre Direito, Política e Democracia - ILAEDPD. .


Imagem Ilustrativa do Post: MMA fight // Foto de: Peter Gordon // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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