Não seja preguiçoso, não minta e não furte

28/04/2015

Por Germano Schwartz - 28/04/2015

Eram essas as três leis básicas da sociedade inca. Claro, existiam outras. Todas elas, de alguma maneira ou de outra, a comprovar que se estava diante de uma sociedade que, como dizia Luhmann, em seu Sociologia do Direito[1], poderia ser classificada como complexa.

A tese básica do sociólogo alemão a respeito é a de que o Direito seja uma aquisição evolutiva da sociedade, significando que, quanto mais possibilidades existam de escolhas no sistema social, mais complexa será a diferenciação de seus subsistemas (Direito).

A organização social – e jurídica – dos incas, império que se estendeu desde o atual Equador, passando pelo Peru e Bolívia, até chegar ao norte do país que hoje se denomina Chile, poderia ser classificada como tudo, menos de simples, tendo em vista suas características.

No plano de vista jurídico, por exemplo, à semelhança dos romanos, os incas submetiam os povos conquistados ao jugo de suas leis. Eles eram conquistados ou aderidos, pagando tributos aos incas em troca dos serviços ofertados, alguns de altíssima qualidade, como, por exemplo, os correios e as estradas.  Daí que, na esteira de Luhmann, estar-se-ia diante de uma sociedade complexa. E isso em plena América do Sul dos anos 1100 a 1535 DC!

O escritor mestiço Inca Garcilaso, filho de uma princesa inca e de um capitão espanhol, demonstra que o processo de “entrada“ no império, raras vezes era feito por guerra. A tática preferida era a da assimilação dos costumes e das leis[2]:

... llevaban al Cuzco al cacique principal y a todos sus hijos, para los acariciar y regalar, y para que ellos, frecuentando la corte, aprendiesen, no solamente las leyes y costumbres y la propriedad de la lengua, mas también sus ritos, ceremonias y supersticiones.

Outra característica relativa aos incas era o fato de que falavam uma língua que era corrente em todo o império (havia outras, como o aimará). O quéchua, ainda hoje utilizado por seus descendentes, era a base da comunicação – sempre ela (Luhmann) – e da coesão de dita sociedade.

Conquistados por Pizarro e seus pouco mais de cento e sessenta homens, o Império Inca, à época dividido por uma guerra civil entre seus dois herdeiros, rendeu-se aos espanhóis. Tal situação ocorreu em função de vários fatores, incluídos, entre eles, a briga mencionada, a insatisfação dos povos conquistados, o poderio militar espanhol e as doenças (gripes) trazidas pelos invasores.

Ao contrário do Império Inca, os espanhóis, assim como os portugueses, não poderiam ser caracterizados como uma sociedade complexa. A estratificação social, a ligação a um direito natural e a conexão Estado-Religião na época fez com que as conquistas espanholas da América Latina fossem praticadas sem o mesmo requinte dos Incas. Colonização.

Tratou-se, na verdade, de uma imposição (também de uma ordem jurídica) por meio do uso da força e da tecnologia. A religião ocupou um papel central, seja por meio do sincretismo (O Deus Sol e o Deus católico), seja por meio da catequização forçada.  As glórias de um povo avançadíssimo em Engenharia, Arquitetura e Astronomia foram deixadas de lado, e o Direito tornou-se mais “simples”, um sonho de vários brasileiros com os quais eu discordo veementemente. A produção acentuada da diferença (Luhmann) é o melhor sinal de avanço de uma sociedade.

E o que restou? A língua. O quéchua sobrevive nos Andes, a relembrar os tempos imemoriais dos antepassados e de suas crenças maiores: o Condor, o Puma e a Serpente. A trilogia simbolizava, respectivamente, aquilo que está acima,  o que está na terra (o agora) e o que está abaixo. Cuzco, o umbigo do mundo e capital do império Inca, foi construída com o formato do puma. Se o Condor passa e a serpente fere, o puma impera.

Não por acaso, o resgate do reconhecimentos dessas ordem jurídicas complexas que os povos indígenas da América Latina praticavam antes do “descobrimento” está reaparecendo no denominado novo constitucionalismo sul-americano do qual o Sérgio Cademartori tanto se orgulha de estudar. É o caso da inclusão da Pacha Mama na Constituição da Bolívia e do Summa Kwasay, na Constituição do Equador.

Note-se, entretanto, que o Peru, o país que herdou a maior parte do território Inca, parece um pouco distante desse fenômeno, que, por sinal, vai ser discutido amiúde durante o congresso Sociology of Law on the Move, no Unilasalle-Canoas, de 05 a 08 de Maio de 2015, na cidade de Canoas. A mesa comandada pela Juliana Neueschwander tem o título de “Justiça, Descolonialidade e América Latina” e agrega uma série de trabalhos[3] que, ao final, procuram entender a temática de uma maneira mais complexa (como ela merece!).

Mas e o rock dessa coluna? Já venho, há algum tempo, demonstrando em meus trabalhos, em especial na obra Direito & Rock, publicada pela Livraria do Advogado Editora, que uma das conexões entre ambos é o fato de que o primeiro é status quo e o segundo, é uma espécie de comunicação que o irrita, proporcionando-lhe ação.

Ouvi de vários andinos do Peru nos dias em que lá estive, na semana passada, a seguinte frase: “a única coisa que os espanhóis não nos tomaram foi o quéchua“. Natural, portanto, dentro de minha linha de pesquisa, que houvesse rock cantado nessa língua e que retratasse toda a situação anteriormente narrada.

Nessa linha de raciocínio, o UCHPA, banda  fundada em Ayacucho, tornou-se uma das grandes do rock peruano. Iniciando por covers de grandes músicos do estilo, o grupo se dirigiu, com algum vagar, ao coração dos peruanos, especialmente por usar o quéchua para lembrar da unidade que o Sendero Luminoso dos anos 80/90 do século passado pretendia reduzir a cinzas (uchpa).

Não se trata de flautistas tocando “El Condor Pasa“ e sim, de andinos usando o rock para expressar aquilo que o Direito lhes negou: o sentimento de pertença a um povo. Peruano, Inca, ou o que seja. É o rock resgatando a complexidade (jurídica) de uma população que se situava no umbigo do mundo e que hoje resta em sua periferia. Assim como a história possui um pêndulo, o Direito tem sua balança. Nesse momento, ela está pesando mais para o lado dos colonizadores; os colonizados, por seu turno, seguem chorando (Peru Llacta – UCHPA)

Caíam muitas lágrimas de seus olhos

Era constante a dor e o lamento

Seu filho morreu trabalhando

Sua culpa foi ter morrido onde nasceu

E chorou

E chorou

Povo peruano

Já estamos vivendo a paz?

Chorando esperamos pela paz.


Notas e Referências:

[1] LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

[1] DE LA VEGA, Inca Garcilaso. Comentarios Reales de los Incas. Piki: Cusco, 2014, p. 103.

[3] http://sociologyoflaw2015.com.br/LOCAIS-APRESENTACOES-05-06-07-MAIO.pdf


GermanoGermano Schwartz é Diretor Executivo Acadêmico da Escola de Direito das FMU e Coordenador do Mestrado em Direito do Unilasalle. Bolsista Nível 2 em Produtividade e Pesquisa do CNPq. Secretário do Research Committee on Sociology of Law da International Sociological Association. Vice-Presidente da World Complexity Science Academy.                                                                                                                                                                                                                                                                                          


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