Mulheres no poder e a intolerância

02/01/2016

 Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 02/01/2016

“É pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que a separava do homem, somente o trabalho poderá garantir-lhe uma independência concreta”. 

Simone de Beauvoir

O que LUIZA ERUNDINA DE SOUZA, BENEDITA SOUZA DA SILVA SAMPAIO e DILMA VANA ROUSSEFF[1] têm em comum? Além de serem mulheres e políticas - exerceram ou exercem cargos no poder – sofreram e sofrem preconceitos e ataques vis, vindos de todas as classes sociais, partindo de homens e, até, de outras mulheres. São vítimas do machismo, do racismo e da intolerância.

A paraibana, natural de Uiraúna, LUIZA ERUNDINA DE SOUZA no ano de 1988, pelo Partido dos Trabalhadores, em eleição surpreendente, derrotou o candidato PAULO MALUF e tornou-se prefeita de São Paulo, governando a maior cidade do país de 1989 até 1993.

Apesar de São Paulo ser a cidade do Brasil que mais recebe nordestinos, LUIZA ERUNDINA, mulher e nordestina, foi vítima de vários ataques preconceituosos e discriminatórios na campanha para prefeitura de São Paulo e durante o seu governo. Atualmente LUIZA ERUNDINA exerce o mandato de Deputada Federal.

 Lamentavelmente, os nordestinos e as nordestinas vêm sofrendo com atitudes fascistas principalmente durante períodos eleitorais. Na própria reeleição da Presidenta DILMA, em que ela obteve a maioria dos votos nos estados do nordeste, houve aqueles que propuseram a divisão do país e agrediram os nordestinos com os mais variados e impronunciáveis insultos.

BENEDITA SOUZA DA SILVA SAMPAIO exerceu seu primeiro mandato em 1986, como Deputada Federal constituinte, era a única deputada negra. Em 1994 foi eleita com mais de dois milhões de votos, pelo estado do Rio de Janeiro, a primeira mulher negra a chegar ao Senado Federal. Posteriormente, em 1998, foi eleita vice-governadora do Rio de Janeiro na chapa de ANTHONY GAROTINHO. Com a renúncia de GAROTINHO em abril de 2002 para concorrer a Presidência da República, BENEDITA DA SILVA assumiu o governo do estado do Rio de Janeiro. Além de ser mulher, BENEDITA DA SILVA – conhecida como BENÉ - é negra. Sofreu inúmeros ataques odiosos e racistas. Em 2014 BENEDITA DA SILVA foi reeleita para mais um mandato de Deputada Federal.

DILMA VANA ROUSSEFF, natural de Belo Horizonte MG, se tornou a primeira mulher a presidir o Brasil (1.1.2011). DILMA é uma sobrevivente. Tem o corpo e a alma marcada pela luta contra a ditadura militar. Foi vítima do chamado “Anos de Chumbo”, tendo sido presa e torturada. Antes de ser eleita Presidenta da República, foi ministra de Minas e Energia (2003) e ministra-chefe da Casa Civil (2005). Em 2014 DILMA ROUSSEFF foi reeleita Presidenta da República com mais de 54 milhões de votos.

A Presidenta DILMA ROUSSEFF é constantemente agredida e ofendida com palavras, gestos, imagens e “piadas” de péssimo gosto, machistas e preconceituosas.

No que pese as críticas ordinárias feitas a todos os políticos, sem exceção, as três políticas citadas foram e são atacadas, não apenas por suas atitudes políticas, mas por serem mulheres.  Não se pretende aqui, evidentemente, abonar qualquer ato praticado por mulheres na política ou livra-las da crítica e da oposição política em razão do gênero, mas, tão somente, exigir que elas sejam respeitadas como seres humanos independente de gênero, cor, sexo, religião, partido político etc.

Infelizmente, o discurso do ódio, do preconceito e da intolerância tem dominado o debate político recente.  Referindo-se ao que denomina “consumismo da linguagem” MARCIA TIBURI[2] observa que: “A linguagem é rebaixada à distribuição da violência pelos meios de comunicação, redes sociais inclusas. O caso Dilma Rousseff faz pensar na diferença entre crítica a um governo criticável – como qualquer governo – e o rebaixamento da crítica pela pura violência verbal que serve ao consumismo da linguagem manipulado por setores diversos (...)”.

Apesar do reconhecimento que vem sendo - não dado - mas conquistado pela mulher na sociedade moderna, principalmente nas últimas décadas, é inegável que o preconceito ainda está enraizado em boa parte da sociedade. As mulheres que vem ocupando espaços de poder, ainda, é uma minoria.

A história, como bem observou SIMONE DE BEAUVOIR[3], mostrou que “os homens sempre detiveram todos os poderes concretos; desde os primeiros tempos do patriarcado, julgaram útil manter a mulher em estado de dependência; seus códigos estabeleceram-se contra ela; e assim foi que ela se constituiu concretamente como Outro. Esta condição servia os interesses dos homens, mas convinha também a suas pretensões ontológicas e morais”.

A trajetória de luta da mulher é longa e árdua. No Brasil a mulher só adquiriu o direito de votar e ser votada em 1932. Se hodiernamente a mulher vem conseguindo ser vista e, pouco a pouco, vencendo a luta contra o preconceito, deve-se aos movimentos feministas e ao feminismo. Ao feminismo, como movimento social, deve-se boa parte destas conquistas, bem como o fato de ter colocado as mulheres no centro do debate político.

Embora representem mais da metade dos eleitores no Brasil as mulheres ocupam menos que 10% das cadeiras da Câmara, atualmente são apenas 51 deputadas Federais. No Senado Federal das 81 cadeiras 12 são ocupadas por mulheres. Apesar de ter uma presidenta mulher, a representação democrática está abaixo dos padrões internacionais.

No mercado de trabalho embora a participação da mulher venha aumentando timidamente - a ocupação formal ainda é bem menor que dos homens - 43% contra 57%. Os salários da mulher chegam a ser de 25% a 30% menor que do homem ocupando a mesma função.

Acontece com a mulher o que vem acontecendo com todos excluídos e invisíveis que passam a ser “incluídos” e “visíveis”. Na medida em que vão conquistando e ocupando espaços políticos e sociais são cada vez mais agredidas. A elite e o machismo não suportam as ascensões da classe baixa e da mulher.

Em relação aos excluídos AGOSTINHO RAMALHO[4] observou que: “Nos últimos anos, muitos deles têm sido vistos fora do ‘seu’ lugar: nos aeroportos, nos shopping centers, nos restaurantes. De repente, tornaram-se ‘visíveis’. E isso choca e ameaça a classe que se acostumou historicamente a olhá-los ‘de cima’ e que agora se sente ameaçada de ser ‘desalojada’ do que sempre se acostumou a enxergar como o ‘seu’ lugar. O sentimento, agora, já não é de indiferença (‘sou indiferente em relação a quem nem vejo’), mas de ódio (‘odeio a quem vejo como ameaça para mim’).

Este mesmo “ódio” contra os excluídos (negros e pobres) é, também, direcionado à mulher quando ela passa de coadjuvante a protagonista, passando a ocupar cargos de comando, de direção e de poder que antes eram exclusivos dos homens.  Quando a mulher começa a ser vista fora do lar, nas universidades, nas empresas, nas fábricas, nos tribunais, nos ministérios e na política, os ataques brotam e o preconceito aflora.

O machismo, compreendido como comportamentos que “reforçam relações de exploração, dominação e sujeição das mulheres em relação aos homens, em prol da manutenção de uma ordem social sexista[5], não tolera qualquer espécie de ascensão da mulher.

LUIZA ERUNDINA, BENEDITA DA SILVA e DILMA ROUSSEFF, assim como centena de milhares de mulheres - famosas ou inominadas - precisaram para chegar aonde chegaram, do mesmo modo que VIRGINIA WOOLF matar “O Anjo do Lar[6].

Em artigo intitulado “Profissões para mulheres[7] VIRGINA WOOLF revela que para se tornar uma escritora foi necessário matar “O Anjo do Lar” “que costumava aparecer entre mim e o papel quando eu fazia resenhas”. “O Anjo do Lar” é ironizado por VIRGINIA WOOLF como o modelo de “mulher perfeita” refém dos valores puritanos do patriarcado feito por Coventry.  Ao se dirigir as jovens mulheres que talvez não tenham ouvido falar do “O Anjo do Lar”, VIRGINIA[8] diz:

“Vou tentar resumir. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado, era ali que ia se sentar - em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, preferia sempre concordar com os outros. E acima de tudo - nem preciso dizer - ela era pura. Toda casa tinha seu anjo. E, quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras”.

Infelizmente, inúmeras mulheres por diversas circunstâncias e pela própria opressão da sociedade machista não conseguem enfrentar e matar “O Anjo do Lar”. Não tem sido tarefa fácil para as mulheres se libertarem do fantasma e do preconceito. E muitas que conseguem de algum modo matar “O Anjo do Lar” continuam sofrendo ataques por não terem cumprido o “papel” que a sociedade machista e patriarcal esperava delas. É justamente este “papel” – determinismo biológico - que vai ser questionado pela filósofa francesa SIMONE DE BEAUVOIR.

SIMONE LUCIE-ERNESTINE-MARIE BERTRAND DE BEAUVOIR ou simplesmente SIMONE DE BEAUVOIR escreveu em 1949 “O Segundo Sexo”, livro revolucionário e que se tornaria um manifesto feminista. “O Segundo Sexo”, resumidamente e em apertada síntese, pode ser definido como “uma análise histórica, social, psicológica e biológica sobre o papel da mulher na sociedade, já negava os estudos que defendiam uma suposta natureza feminina[9]. Na clássica e indispensável obra para se entender as raízes do feminismo SIMONE DE BEAUVOIR refutando o determinismo biológico demonstra que ser mulher é uma construção social. Em um dos trechos mais famosos e citados do livro, SIMONE DE BEAVOUIR[10] afirma que:

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um individuo como um Outro”.

Lamentavelmente, apesar do feminismo, como ideologia de gênero, ter avançado muito nas atuais sociedades democráticas, “quando o sujeito idealizado pelo liberalismo político passa a ser considerado na sua historicidade, as diferenças de posição e tratamento social que têm distinguido o poder do homem e da mulher na política são revelados com clareza[11]. A mulher continua a sofrer diferentes formas de discriminação.

Embora em muitos países do ocidente, as revindicações e lutas feministas tenham garantido muitos direitos às mulheres, não conseguiram, ainda, “levar à instituição de um espaço público revolucionado, em todas as suas dimensões, para realizar a efetiva igualdade do ser humano nas suas formas feminina e masculina[12].

Mas, como bem observou JUDITH BUTLER[13]a maioria das ativistas sabe que parte da tarefa do feminismo é precisamente acompanhar e exigir mudanças no sentido do que significa ser mulher. Uma mulher pode ser X e fazer Y? Essa é muitas vezes a pergunta com a qual começa qualquer dilema feminista. É quando a definição do gênero entra em crise. De fato sem essa crise, não haveria feminismo”. Assim, conclui BUTLER, “devemos estar felizes por o sujeito do feminismo ainda não estar definido. Isso significa que temos diante de nós um futuro de mudança política”.

Por tudo, enganam-se aqueles que pensam que a intolerância em relação à DILMA ROUSSEFF e a outras mulheres que exercem o poder é apenas política e partidária. A intolerância em relação a atual ocupante do Palácio do Planalto é maior em relação a ela porque ela é mulher e a sociedade, machista e fascista, não admite que uma mulher comande o país.

Belo Horizonte, 02 de janeiro de 2016.

Dedico este artigo a Bárbara Bastos, Magda Guadalupe, Zamira de Assis, Aline Gostinski, Maria Helena, Amanda, Andréa Bispo, Marcia Tiburi, Katie Arguello, Michelle, Tânia, Luciana Boiteux, Vicki, Simone, Maria Goretti, Beatriz Vargas, Andreia, Taysa Matos, Claudia Maciel, Vanessa Chiari, Camila, Julita, Fernanda, Fabiana, Marina Cerqueira, Maria Luiza e todas as mulheres guerreiras que lutam pela legalidade democrática.


Notas e Referências:

[1] A citação as três mulheres (Luiza Erundina, Benedita da Silva e Dilma Rousseff) é exemplificativa por entender que elas bem representam o que se pretende demonstrar no presente artigo. Outras tantas mulheres, igualmente vítimas do preconceito, também, poderiam e deveriam ser citadas, mas isto tornaria o artigo inviável para o fim proposto. Aqui, também, não é avaliado o mérito ou demérito político de cada uma das mulheres citadas.

[2] TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.

[3] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

[4] http://emporiododireito.com.br/sobre-a-rejeicao-aos-pobres/

[5] BORGES, Claudia Andréa Mayorga. Machismo. Dicionário feminino da infâmia: acolhimento e diagnóstico de mulheres em situação de violência. Organizado por Elizabeth Fleury-Teixeira e Stela N. Meneghel. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2015.

[6] Poema de Coventry Patmore (1832-1896) que celebrava o amor conjugal e idealizava o papel doméstico das mulheres.

[7] Texto lido por VIRGINA WOOLF para Sociedade Nacional de Auxílio às Mulheres em 21 de janeiro de 1931 e que foi publicado postumamente em “A morte da mariposa”, 1942. WOLF, Virginia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Trad. Denise Bottmann.  Porto Alegr: L&PM, 2015.

[8] WOLF, Virginia. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Trad. Denise Bottmann.  Porto Alegr: L&PM, 2015.

[9] FERREIRA, Luciana Pereira Queiroz Pimenta et al. Revisitação do gênero, através da literatura: uma análise do lugar marginal da mulher a partir do conto Fugitiva, da escritora canadense Alice Munro. Diferença sexual e desconstrução da subjetividade em perspectiva. Orgs. Zamira de Assis e Magda Guadalupe dos Santos. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.

[10] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Ob. cit.

[11] SILVA, Vera Alice Cardoso da. Ideologia de gênero. Dicionário feminino da infâmia: acolhimento e diagnóstico de mulheres em situação de violência. Organizado por Elizabeth Fleury-Teixeira e Stela N. Meneghel. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2015.

[12] SILVA, Vera Alice Cardoso da. Ideologia de gênero. Ob. cit.

[13] RODRIGUES, Carla e SANTOS, Magda Guadalupe dos. “Devemos estar felizes pelo sujeito do feminismo não estar definido” – Entrevista com Judith Butler.  Diferença sexual e desconstrução da subjetividade em perspectiva. Orgs. Zamira de Assis e Magda Guadalupe dos Santos. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.


Sem título-1

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).

 


Imagem Ilustrativa do Post: Mulher-Linda-1 // Foto de: portugalpictures // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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