Minicurso abolicionista no V Seminário de Humanidades – IFES Linhares (Espírito Santo) – Por Guilherme Moreira Pires

10/11/2015

O curso livre realiza interesses singulares, não só de professores, pesquisadores e estudantes, mas de pessoas antenadas num tema, numa específica maneira de interferir. Ele não exige pré-requisitos, pode ocorrer numa universidade ou em qualquer lugar. No curso livre não estão em jogo a frequência, a avaliação final [...] uma determinada retórica para ser entendida de maneira uniforme. [...] Ele provoca e se destina aos irrequietos

Passetti, 2012, p.9.

Nos dias 27 a 29 de outubro de 2015, foi realizado no IFES Linhares (Espírito Santo) o  V Seminário de Humanidades - política, poder e resistência no contemporâneo, contando com um minicurso abolicionista sobre prisões, controles e capturas, com reflexões sobre a extensão, fluxos e influxos das (nossas) culturas repressivas.

Juntamente com o advogado Breno Zanotelli e o psicólogo Vinícius Zocateli (que se uniu a nós na parte da tarde), tensionamos e buscamos suscitar reflexões críticas sobre o que sintetizamos como "poder punitivo", como provocadores dispostos a ouvir e compartilhar, sem grandes formalidades nas interações e intervenções, ativando sensibilidades e complexidades antes do filme previsto.

Acerca da limitada apropriação de situações problemáticas codificadas como "crime", comprimindo a complexidade da vida em caixas com fluxos pré-estabelecidos (que giram em torno do cárcere), destacamos mecânicas de funcionamento, operacionalidades e nuances atreladas a (e reveladoras de) inúmeros problemas, repensando fissuras, distanciamentos e complicações da linguagem analisada; e no próprio espaço jurídico, por vezes praticamente inútil (se pensarmos em minimização de danos, dores e sofrimentos, solução de conflitos etc.),  e ainda assim tantas vezes automaticamente replicado e invocado quando nos deparamos com problemas reais, uma zona de fascínios.

Limitamos sobremaneira as opções e possibilidades quando já pensamos dentro desses quadrículos, dentro do sistema penal, ancorado em discursos legitimantes tão limitados quanto cínicos, a ponto de incluírem em seu leque de discursos validações pautadas em sujeitos e desejos universais, promessas de conter uma espiral de violências que supostamente eclodiria sem austero controle de um poder tecedor de respostas construídas verticalmente. Verdadeiros disparos destrutivos, ludibriosos e estéreis se pensarmos em muitas das promessas oferecidas, e não raro na própria arbitrariedade presente nas promessas (para além do seu não cumprimento).

E, como se tudo nutrisse enorme sentido, na constituição e coroamento  de fluxos caracteriza-dores de mundos descaracterizados, inflados pelo poder punitivo, ingredientes tautológicos e retóricos são instituídos, remexidos, sendo finalmente descarregados como verdades incutidas em triste tom de naturalidade, borbulhando no caldeirão ativador de massacres e torturas que é o sistema penal.

Após breves considerações iniciais (históricas, sociológicas, criminológicas etc.), optarmos pela exibição do filme francês Les Neiges du Kilimandjaro, seguido de debate e conversas, que transpareceram satisfatória interpretação das ideias gerais, e uma potente atenção a detalhes bem eloquentes, sutilezas importantíssimas que demandam sensibilidade e criticidade para serem trabalhadas com a complexidade que merecem.

Nesse momento, as associações estabelecidas pelos alunos evidenciaram e confirmaram a relevância de muitas de nossas escolhas, na medida em que o conteúdo antecedente sobre o poder punitivo e problemas dos múltiplos sequestros e capturas simplificantes, incidentes sobre a concretude e potência da vida, ajudou nas reflexões sobre o filme, dilatando a percepção do que denominamos cultura repressiva, em que hierarquia, controle e prisão mostram-se atores de destaque, (de)formando e influindo (n)o que tocam.

Problematizamos os fluxos totalizantes e limitantes da linguagem criminal, colonizadora, rasteira e arbitrária, mesmo a noção de vítima, cujo corte estático e retilíneo não dá conta da fluidez e complexidade sequer das situações aludidas no filme, e muito menos da vida, ampliando nossos mundos e referenciais.

Tecemos e (nos) encontramos (em) convergências dissidentes e de oposição-movimento às versáteis estratégias de controle e poder dissecadas e lanceadas, abrangendo saberes e poderes acopladores de dores e controles, sofrimentos ativados e instigados hierarquicamente mediante uma linguagem destrutiva e escravizadora, pautada em capturas e sobreposições totalizantes.

Já "mergulhados" num debate sensível, a exibição do documentário "A Casa dos Mortos" provavelmente conferiu ainda mais angústias, energizando e realimentando reflexões, atreladas à luta antimanicomial e abolicionista.

Na dúvida sincera entre iluminar ou não algumas das associações e percepções relacionadas ao filme, expondo detalhes importantes do mesmo, que acrescentariam, mas possivelmente estragariam a experiência do filme para alguns, opto meramente por indicar esse excelente filme, além do documentário mencionado.

Para quem desconhecer o filme (como eu até poucos dias), eis uma ótima dica para suscitar reflexões e (re)pensar os impactos destrutivos das múltiplas capturas e sequestros aludidos, replicados como se normais, naturais e mesmo lógicos fossem, no interior de culturas repressivas em que a prisão permanece vendida como uma arma para se lidar com a concretude da vida.

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E infelizmente muitos gostam de armas...

Talvez especialmente os que acreditam que não serão atingidos.

E os que vivem da venda destes produtos: medos, armas, munições.


Notas e Referências:

[Documentário] A Casa dos Mortos. Disponível em: <http://saudementalecidadania.blogspot.com.br/2010/05/documentario-casa-dos-mortos.html>. Último acesso: 4 de nov. 2015.

AUGUSTO, Acácio. Política e polícia: Cuidados, controles e penalizações de jovens. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2013.

TEDESCO, Ignacio. El acusado en ritual judicial: ficción e imagen cultural. 1ª edição, Cuidad Autónoma de Buenos Aires: Del Puerto, 2007.

PASSETTI, Edson (coord.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2ª edição, 2012.

PIRES, Guilherme Moreira. Textos. Empório do Direito, 2015, ISSN 2446-7405. Disponíveis em: <http://emporiododireito.com.br/tag/guilherme-moreira-pires/>. Último acesso em: 04/10/2015.


Imagem Ilustrativa: Inscrições abertas para o V Seminário de Humanidades do Ifes Linhares// Foto de: Fotografia André Alves // Com alterações

Disponível em: http://www.linhares.ifes.edu.br/noticias/470-v-seminario-de-humanidades

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