Medo cruel: a barbárie judicial em face ao direito dos condenados

24/01/2017

Por Samuel Lourenço Filho – 24/01/2017

Essas pessoas foram presas pelo Bope com fuzis, com explosivos. Somando a pena dos dois, chega a 160 anos. Ora, por que condenar a uma pena como essa e colocar para visitar a mãe e conceder progressão de regime? É a lei em vigor. O meu questionamento é: essa lei está atrelada ao grau de violência que eles praticam?"[1]

O texto da Lei nº 7.210/84, Lei de Execução Penal, passa a estabelecer por quais motivações as saídas temporárias são possíveis:

Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semiaberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos:

I – visita à família;

II – frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do segundo grau ou superior na Comarca do Juízo da Execução;

III – participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.

O discurso do atual Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro é o mesmo de seu antecessor[2], ou seja, ambos impulsionam o fim (ou revisão rígida) da progressão de regime e das saídas temporárias. Diante da reprodução do discurso, cabe uma singela contribuição relacionada à saída temporária e o medo que se tem “do grau de violência que eles praticam”.

Ao introduzir sua obra “Medo Líquido”, Zygmunt Bauman (2006) é categórico em afirmar: “O medo é um sentimento conhecido de toda criatura viva.” (p. 9) E não há como tratar de ambos os discursos dos chefes da pasta de segurança do Rio de Janeiro sem reconhecer esse sentimento, o medo é algo conhecido de todos. Essa relação da pasta de Segurança Pública e de agências criminais com a sua clientela mor – os criminosos e os presos – precisa ser observada pelo viés do medo, sentimento que ora neutraliza e em determinados momentos encoraja, o autor apresenta: “Todos nós já ouvimos histórias de covardes que se transformaram em intrépidos guerreiros quando confrontados por um perigo real (...)” (p.8). Aqui, “intrépidos guerreiros”, em função do poder punitivo estatal, diante do medo, buscam guerrear contra o Direito Penal, quando esse cumpre a função de limitador de tal poder.

O medo de pessoas que incidem criminalmente na sociedade, conduz muitos de nós a transitar na cidade com todas as precauções possível, ou seja, não é algo característico das agências criminais e da Secretaria de Segurança Pública do Estado, todos nós possuímos esse sentimento medonho, e há certo tipo de medo que o autor cita como sendo o “medo derivado” (p.9), pois a pessoa que já internalizou esse sentimento possui uma visão de mundo e de sociedade em que práticas criminais são habituais, e mesmo ausente de perigo passa a ter desconfiança e fará que tal pessoa tenha ou tome atitudes preventivas.  Com esse sentimento, a prevenção seria extinguir a saída temporária, segundo o entendimento dos chefes da pasta.

Entretanto estamos na cidade, território amplo, e não conseguimos ter a dimensão precisa ou local específico de onde pode vir a surgir uma pessoa criminosa ou onde possamos ser surpreendidos por incidências criminais, logo, andamos desconfiados ou inseguros, mas segundo o secretário, os criminosos das favelas são as ameaças. Em outro momento Bauman escreve “Confiança e Medo na Cidade” (2009), o autor é enfático:

“Poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas várias manifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos. Suspeitamos dos outros e de suas intenções, nos recusamos a confiar (ou não conseguimos fazê-lo) na constância e na regularidade da solidariedade humana” (p.16).

Contudo, uma vez o criminoso preso, precisamos olhar para a Justiça Criminal e a prisão. Ao citar o estabelecimento prisional, nós já sabemos onde está o perigo. Infelizmente a eventual possibilidade de assegurar ou imaginar que o perigo está nos estabelecimentos prisionais revela em nós o reflexo da estigmatização da população carcerária e das prisões:

“Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser - incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável - num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande - algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem - e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real.” (GOFFMAN, 2004. p. 6)

E nesse caso, inicia a recusa e a desconfiança citada por Bauman, e em se tratando da Justiça, na medida em que desconfia ou cogita a fuga como algo certo, se recusa a confiar e a garantir os direitos fundamentais e das saídas temporárias ao fundamentar decisões que não contribuem com a proposta da pena, tanto que indeferem pedidos de saídas temporárias justamente por entender como o secretário, vejamos uma das muitas decisões judiciais sobre a questão:

(...) deve-se levar em consideração que o apenado praticou crimes graves, como tráfico de drogas, extorsão, sequestro, cárcere privado e roubos, o que afasta, por ora, a concessão de benefícios extramuros, uma vez que as suas condições pessoais indicam que a sua liberdade poderá ensejar a reiteração criminosa, frustrando-se os objetivos da execução de sua pena e turbando a ordem pública. (...). Constato, destarte, que a concessão de saída extramuros no presente momento não se coaduna com o objetivo da pena, servindo, inclusive de estímulo para eventual evasão, razão pela qual INDEFIRO o pleito de VPL ao apenado, “D.F.G.”, ao menos no presente momento, podendo o pedido ser reapreciado posteriormente.  

(TJRJ/VEP, processo nº 036508707.2009.8.19.0001).

Talvez não seja de conhecimento do secretário que decisões que impedem as saídas temporárias acontecem e com muita frequência. Em meio a uma indústria cultural midiática e certo populismo penal cada vez mais sensacionalista e pela reputação que é dada aos cidadãos que estão com alguns direitos suspensos, essa é a saída, nesse caso para o secretário e para Justiça não deve haver saída, e o processo penal segue o rito populista e de efeitos horripilantes, Rubens Casara[3] (2015) incansavelmente nos adverte:

Vale insistir: para seguir agradando ao público, o processo penal passa a ser construído e dirigido a partir do “desejo de audiência” e a lei pode ser afastada. O espetáculo, como já foi dito, sempre aposta na exceção, uma vez que o respeito à legalidade estrita revela-se enfadonho e contraproducente. Nesse contexto espetacular, as formas processuais deixam de ser garantias dos indivíduos contra a opressão do Estado, uma vez que não devem existir limites à ação dos “mocinhos” contra os “bandidos” (a forma passa a ser um detalhe que pode ser afastada de acordo com a vontade do “diretor”). Com a desculpa de punir os “bandidos” que violaram a lei, os “mocinhos” também violam a lei, o que faz com que percam a superioridade ética que deveria distingui-los.

Mas retomando ao medo, uma vez identificado, torna-se mais assustador, por isso relacionado ao desejo de audiência comete atrocidades, Bauman (2006) nos explica o seguinte:

O medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivo claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la. (Bauman, 2006, p. 8)

E quando os atores do Direito afirmam que a ameaça está intramuros e resolve contê-la, como se fosse um velho baú que fechado não permite a saída de monstros que nos assustam tais como nos contos antigos? Disperso na redoma da criminalidade, mas identificável nos interiores das prisões e/ou nos processos criminais já julgados, as ameaças geram um possível medo assustador à algumas agências criminais, que, como já foi registrado por Bauman (2006) tornam-se “guerreiros intrépidos” (p.9) no combate a criminalidade.

Essa reação diante do medo é apreciada por Tzvetan Todorov (2010) que em sua obra “O medo dos Bárbaros: Para além do choque das civilizações” revela que o medo da barbaridade às vezes motiva reações bárbaras: “o medo dos bárbaros é o que ameaça converter-nos em bárbaros (...) o remédio pode ser pior que a enfermidade.” (p.15). Em sua obra, o autor introduz a questão do medo, discorre sobre a barbárie e as civilizações. A conceituação de bárbaro para ele é ampla, que nos permite entender que bárbaros não são apenas os que equivocadamente entendemos os que são capturados por cometerem delitos, ou seja, bárbaros não são os que estão em cadeias, prisões ou com um processo na Execução Penal. Bárbaro pode ser entendido também todos àqueles que retribuem à barbaridade ao arrepio da lei ou em uma interpretação legal que corresponda aos feitos já julgados do penitente, nesse sentido o remédio (Execução Penal) pode ser pior que a enfermidade (condenado).

Para o autor (2009) de origem búlgara e radicado na França, que além de linguista é filósofo, bárbaro pode ser:

“(...) aqueles que transgridem as leis fundamentais da vida comunitária por serem incapazes de respeitar a distância ajustada na relação com os próprios pais...”; “(...) são aqueles que estabelecem uma verdadeira ruptura entre eles próprios e os outros homens...”; “(...) aqueles que para executarem os atos mais íntimos, algumas pessoas não levam em consideração o ponto de vista dos outros...”; “(...) aqueles que vivem em famílias isoladas em vez de se agruparem em habitats comuns...”. (pp. 26-27.)

Havia uma compreensão inicial de bárbaro, distinguindo-se dos gregos, esses eram vistos como nós e bárbaros eram os demais, ou seja, os outros. Isso já nos ajuda na compreensão sobre ver o outro sempre como bárbaro, em especial o diferente, o que não entende e nem fala a mesma língua. Nesse mesmo diapasão sobre não reconhecer o outro, Todorov vai explicitar de seguinte maneira:

Os bárbaros são aqueles que negam a plena humanidade dos outros: em vez de significar que eles ignoram ou esquecem, realmente, a natureza humana dos outros, eles comportam-se como se os outros não fossem - ou, de qualquer modo, não inteiramente - seres humanos. (TODOROV, 2010. p.27)

As decisões em que a humanidade do outro é negada apontam para uma barbaridade judicial. Negar a humanidade do condenado acontece justamente quando há o entendimento que a pena aplicada não foi suficiente de acordo coma dosimetria capaz de fazê-lo retornar ao convívio social de maneira gradual, ou seja, através das saídas temporárias.

A Execução Penal ao apontar as barbaridades do sujeito, tais como: “deve-se levar em consideração que o apenado praticou crimes graves, como tráfico de drogas, extorsão, sequestro, cárcere privado e roubos...”[4] e “Paciente que foi condenado a 45 (quarenta e cinco) anos de prisão por três tentativas de homicídio e um delito de atentado violento ao pudor.[5] acaba por não reconhecer o condenado como um ser humano e sim eleva apenas os seus feitos, muito além daquilo que ele possa ser, ou seja, um cidadão munido de humanidade, dignidade e direitos e mais, torna-se bárbaro ao não reconhecer o direito do outro, no caso, do condenado, e é dessa forma que a Justiça realça o sujeito, bem como o  responsável pela Segurança Pública no Rio de Janeiro.

Para Todorov (2010), reações enérgicas e totalitárias diante de ações individuais é uma política, que segundo ele destruímos e menosprezamos valores democráticos que por nós são tão apreciados e mais adiante o texto nos convida para a seguinte reflexão: “Como será possível regozijar-se com a vitória sobre um inimigo hediondo se, para vencê-lo, o vencedor acaba assumindo atitudes semelhantes ao adversário?” (p.16). Réus com uma condenação elevada por crimes de sequestro e cárcere privado ao chegar no regime semiaberto e pleitear as saídas temporárias podem continuar preso sem o direito à saídas, ora o que é isso se não um sequestro institucional? Por força, o Estado o obriga a ficar preso quando ele tem o direito de ir à rua e voltar.

Ao que parece o medo dos bárbaros que estão condenados torna a Execução Penal e o Secretário de Segurança tão bárbaros quanto. Os réus condenados por sequestros, extermínios e por violar as leis do Código Penal são estigmatizado por uma Execução Penal que insiste em manter preso quem deveria estar solto, isso configura um crime de sequestro? Anula a possibilidade de sonho e de vida de quem poderia viver e estar entre os familiares nas saídas temporárias. Isso seria exterminar a expectativa de vida do outro? Sem expectativa a pessoa vegeta ou morre. Com medo dos bárbaros, os demais bárbaros creem que a privação de liberdade e a matança dos sonhos em retomar a vida extramuros sejam a melhor saída. Isso é que querem para os condenados: que fiquem sem saídas. E o medo cruel encarcera e mata tanto quanto os feitos bárbaros dos criminosos. Mas criminosos não são aqueles que não obedecem à lei? Ecoando a afirmação de Casara, encerro: Com a desculpa de punir os “bandidos” que violaram a lei, os “mocinhos” também violam a lei, o que faz com que percam a superioridade ética que deveria distingui-los.


Notas e Referências:

[1] http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/quem-esta-condenado-a-25-anos-pode-visitar-a-mae-questiona-secretario-de-seguranca-do-rj.ghtml

[2] http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/10/beltrame-o-rio-nao-tem-condicoes-de-acabar-com-desordem-que-deixou-acontecer.html

[3] http://emporiododireito.com.br/queda-de-audiencia-e-prisao-novas-miradas-no-processo-penal-do-espetaculo-por-rubens-r-r-casara/

[4] (TJRJ/VEP, nº 036508707.2009.8.19.0001).

[5] (TJRJ/VEP, nº 033406951.1998.8.19.0001)

BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar. 2009.

BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar. 2008.

BRASIL. Lei de Execução Penal nº Lei 7.210. 1984.

GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos. 7ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

TODOROV, T. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Rio de Janeiro: Vozes. 2010.


Samuel Lourenço Filho. . Samuel Lourenço Filho é Aluno de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - UFRJ. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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