Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

“oficiais do exército dispararam 80 TIROS, mataram Evaldo dos Santos Rosa, homem negro de 51 anos, que trabalhava como músico e segurança. Ele ia de carro com a família, acompanhado do filho de 7 anos, a mulher e uma amiga, para um chá de bebê, na comunidade de Guadalupe, zona norte do Rio de Janeiro”[1]

            Esta semana, assistimos inúmeras situações de violência[2] que possuem aspectos de coincidência: o discurso radical na segurança pública e o apelo do uso da violência, de forma justificada e incentivada pelo Estado. Uma verdadeira “licença para matar”. Exemplo fatídico é a situação da família que sofreu oitenta tiros por parte de militares do exército. Parte da mídia explicou os oitenta tiros teriam sido desferidos porque os militares pensaram se tratar de criminosos.

Essa trágica situação e várias outras são reflexo do uso incentivado à violência que temos assistido por parte do Estado, e que de forma abusiva e desmedida, faz com que a sociedade, já insegura, justifique atos extremos em nome da sua segurança.

.”[3]

O uso da violência como resposta à violência já é experiência em vários países, inclusive no Brasil. Poder-se-ia discorrer desde o século XVIII e as penas de caráter corporal, que em nada diminuíram atos “contrários à Lei” ou, até mesmo citar inúmeros países que tiveram a experiência de pena de morte, que tampouco diminuíram a criminalidade, mas, podemos nos pautar aqui mesmo na nossa legislação. Em 1990 entrou em vigor a Lei 8072/90, intitulada Lei de crimes hediondos, a qual, antes de ter artigos declarados incompatíveis com a Constituição Federal após 06 anos, em nada reduziram a violência.

Não há dados científicos ou experiências no direito comparado que comprovem que medidas punitivistas reduzem a violência. Mas sim o oposto, o efeito rebote.

Mas, a sociedade acuada e temerosa da violência ainda se apega a respostas rápidas e na  busca de solução para a segurança pública.

Por isso, o uso da violência como forma de segurança também ocupou parte do  projeto de lei intitulado “pacote anticrimes”onde o atual Ministro da Segurança busca fundamentos que, vale ressaltar, nem mesmo são compatíveis com a dogmática jurídica para justificar os excessos.

Dentre as medidas previstas, após o fuzilamento do pai de família com oitenta tiros, vale destacar àquelas relacionadas à legítima defesa.

O instituto jurídico da legítima defesa constitui umas das hipóteses de exclusão da ilicitude, prevista no artigo 23 do Código Penal. O Código prevê, também, limites para a excludente, pois, o agente responde pelos eventuais excessos culposos ou dolosos decorrentes de sua conduta (artigo 23, parágrafo único)[4].

Na hipótese de legítima defesa, conceituada no artigo 25 do referido diploma, reconhece-se que a conduta foi praticada em razão de uma injusta agressão humana, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio. O ato, nesse contexto, é praticado com o elemento subjetivo de cessar a agressão, e os meios utilizados devem ser apenas os suficientes para tal. 

Vale mencionar que alterações na legítima defesa já são discutidas há algum tempo.  Em 2014, o Projeto de Lei nº 7.105 indicava a supressão da necessidade de utilização apenas dos meios necessários para cessar a agressão, e excluía dos excessos puníveis aquele cometido culposamente. O Projeto de Lei do Senado nº 352/2017 propunha acrescentar o seguinte parágrafo único ao artigo 25 do Código Penal: “A legítima defesa se presume quando o agente de segurança pública mata ou lesiona quem porta, ilegal e ostensivamente, arma de fogo de uso restrito”.

O Projeto de Lei Anticrime prevê alterações nos artigos 23 e 25 do Código Penal.  A nova redação prevê a inclusão do seguinte parágrafo ao artigo 23,§ 2º: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

O medo, a surpresa e a emoção são inerentes a qualquer ser humano, e o erro também. Sim, em nenhum desses projetos de Lei se pensou na situação óbvia de que seja o agente de segurança pública, seja o civil, é passível de engano. Mas quando engano resulta da morte de alguém, seja esse alguém “criminoso”ou primário, é um caminho sem volta.

Na proposta, a realidade é que ficará a critério do julgador, igualmente humano, decidir sobre os sentimentos do autor no momento do crime. Além disso, o emprego da expressão “violenta emoção” é controverso, pois abre caminhos para o entendimento de que a conduta se justifica por raiva ou passionalidade, para além do estado de perturbação, fragilidade ou susto decorrente da agressão[5].

Termos como ‘violenta emoção’, ‘medo’ e ‘surpresa’ são genéricos, que causam a ampliação dos horizontes interpretativos e, por esta razão, o decisionismo judicial. Tais circunstâncias, na realidade em que vivemos, ampliam a letalidade policial, em especial contra pessoas periféricas, como o mencionado caso do “80 tiros”traduzem.

“A redução ou isenção de pena para quem cometer excessos sob “violenta emoção” também pode estimular ainda mais as mortes causadas por policiais. Em 2017, 5.144 pessoas foram mortas no Brasil em intervenções policiais, o equivalente a 8% do total de assassinatos, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2018”[6].

Essa proposta é a concretização de um projeto de segurança pública do governo eleito, que vem afirmando que os policiais devem ser protegidos por uma retaguarda jurídica”.[7] Isso nos leva ao questionamento: como provar que a morte de um indivíduo foi excesso do policial, ou foi somente a legítima defesa do mesmo, vez que ele estava se prevenindo da injusta agressão? Vale ressaltar que, atendidos os requisitos do caput, a legítima defesa é um direito de todos, sendo dispensável a regulamentação específica para agentes policiais. O uso dos termos “previne” e “conflito armado” também é questionável, tendo em vista que, sobre o primeiro, a prevenção não implica necessariamente na atualidade ou iminência da agressão, e sobre o segundo, não é possível assegurar a tecnicidade da conceituação adotada[8].

As medidas propostas possibilitam uma ampliação da discricionariedade judicial, na medida em que emprega uma semântica aberta, e não chegam a evocar avanços em políticas públicas de segurança pública. Seja pela superficialidade, seja pelos riscos de representar um álibi para o arbítrio, as medidas propostas para a legítima defesa não parecem necessárias ou promissoras para do Direito Penal.

“A violência destrói o que ela pretende defender: a dignidade e a liberdade do ser humano”.

 

 

 

Notas e Referências

[1] Fonte: http://negrobelchior.cartacapital.com.br/80-tiros-em-uma-familia-negra-de-quem-e-a-responsabilidade/ Acesso em 09.04.2019.

[2] Mulher leva “gravata” de bolsonaristas em SP e é algemada pela polícia . Vídeo do repórter Chico Prado, da CBN, registrou a agressão da mulher por três homens, apoiadores da Lava Jato, e, em seguida, ela sendo levada por policiais militares (Fonte: https://www.revistaforum.com.br/em-defesa-de-lula-livre-mulher-leva-gravata-de-bolsonaristas-em-sp-e-e-algemada-pela-policia/ acesso em 09.04.19); Vídeo mostra uma ação da Polícia Militar dentro da escola estadual Frederico de Barros Brotero, em Guarulhos (Grande São Paulo), no início da noite desta quinta-feira (4). As imagens mostram uma adolescente sendo empurrada pelo peito com a arma de um dos PMs. ( Fonte https://noticias.r7.com/sao-paulo/videos/policiais-entram-em-escola-e-empurram-aluna-04042019, acesso em 09.04.2019); “esses marginais que cometeram esse crime [morte de um açambarcador de terras] não merecem lei, não. Merecem é bala.” (Fonte: https://www.revistaforum.com.br/janio-de-freitas-bolsonaro-faz-o-incentivo-explicito-aos-assassinatos-e-deveria-estar-preso/, acesso em 09.04.2019).

[3] “(...) O presidente Jair Bolsonaro defende o exército na rua e diz que policial que não atira em ninguém não é policiaO ministro Sergio Moro defende lei que considera policiais que matam “por equívoco” perdoáveis, afinal, trabalham sob pressão e agem acometidos de forte emoção; O governador Wilson Witzel parabeniza PMs que cometem chacinas e orienta: “A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”. Segundo o Instituto de Segurança Pública, só em janeiro de 2019 a policia do Rio assassinou 160 pessoas.

FONTE: http://negrobelchior.cartacapital.com.br/80-tiros-em-uma-familia-negra-de-quem-e-a-responsabilidade/ Acesso em 09.04.2019.

[4] BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal.

[5] GRECO, Luís. Análise sobre propostas relativas à legítima defesa no Projeto de Lei Anticrime. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/analise-sobre-propostas-relativas-a-legitima-defesa-no-projeto-de-lei-anticrime-07022019#sdfootnote1sym. Acesso em 19 de fevereiro de 2019.

[6]  Fonte: https://www.conjur.com.br/2019-fev-06/governo-autorizar-homicidios-cometidos-violenta-emocao Acesso em 09.04.2019.

[7] CASTRO, Felipe. Lei Anticrime: mais poder para a elite jurídica. Disponível em

http://www.justificando.com/2019/02/15/lei-anticrime-mais-poder-para-a-elite-juridica/. Acesso em 19 de fevereiro de 2019.

[8] GRECO, Luís. Análise sobre propostas relativas à legítima defesa no Projeto de Lei Anticrime. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/analise-sobre-propostas-relativas-a-legitima-defesa-no-projeto-de-lei-anticrime-07022019#sdfootnote1sym. Acesso em 19 de fevereiro de 2019.

 

 

 

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