Liberdades de papel: algo sobre controle institucional, pressões e censura – Por Guilherme Moreira Pires

26/04/2016

"As significações ideológicas, buscando a uniformidade significativa a qualquer preço, consagram-se como formas totalitárias de expressão."  (WARAT, Luis Alberto, p. 123, 2004)

Recentes episódios como a nota técnica sobre grampos, censurada pela OAB/ES (caso destacado nas mídias Empório do Direito, ConJur e Justificando, dentre outras.) energizou no país discussões já em curso sobre controle institucional, pressões e censura; coesão forjada e sem coerência. Muito se escreveu, inclusive, acerca das últimas movimentações da OAB.

Sobre a edificação e instrumentalização do legítimo porte da palavra, do manto de verdades construído discursivamente, costurado pelo fascínio da palavra institucional e do poder, deparamo-nos com ataques, controles e capturas na tentativa de instituir e assegurar a manutenção de uma pretensa coesão institucional, fabricada, obediente à mecânicas e operacionalidades dilaceradoras de fissuras, resistências e dissidências.

Movimentações que fazem de inimigas posturas contra-hegemônicas, que até são válidas (dizem), desde que não incomodem a unidade, que não interfiram imageticamente inclusive nos efeitos pretendidos na produção institucional, desde da subjetividade à da ordem interna, também da aparência; na concretude, atolados na ordem institucional da Ordem, também do brutalizante verbo "ordenar", este, colonizador de mundos e imaginários gosmificados,  sedimentados, naturalizados e incorporados, coroadores e representantes de culturas repressivas.

Podemos nos movimentar sonhando que ostentamos muitas liberdades, mas facilmente essas "liberdades" são trituradas quando incomodam suficientemente os amigos do poder.  Liberdades de papel.

Diante do incômodo, ocorrem absurdos, como os perpetrados contra Kenarik Boujikian, ao expedir alvarás de soltura para réus que estavam presos preventivamente por mais tempo do que a pena fixada em sentença (novamente: liberdades de papel), sendo pressionada por supostamente ter descumprido um tal "princípio da colegialidade"; após o choque da onda, mais do mesmo: violações variadas são inventadas, e violadores colocam-se como afrontados, reforçando que são institucionalmente íntegros e leais "ao Direito".

Maquiagem barata, obediente ao exercício de um poder castrador, emburrecedor, cristalizado nas armas institucionais ("funcionais") que muitos passaram a adorar; os lindes vão esmorecendo, desaparecendo, e em determinado momento de fato os novos burocratas sentem que se já tornaram parte do arsenal de armas, cuja proteção e autopreservação passa a ser encarada como a própria proteção.

Cessa de importar mais o "fazer história" (numa acepção libertária), que cede espaço àquele objetivo há muito conhecido pelos anarquistas: o de evitar que o arsenal de armas enferruje, tão ratificado por toda sorte de burocratas e carreiristas energizadores das culturas repressivas (com a ludibriosa insígnia de dissidentes, para melhor legitimar cada controle, captura e sequestro).

Seja no governo, nos partidos, nos corredores dos fóruns, em cada instituição: fascinados pela preservação (personificada) do arsenal de armas institucionais (aguardando a sedimentação total que marcaria o fim da distinção dessa extensão) até conseguem salvar algumas armas da ferrugem, energizando a força e o reperpetuar do arsenal, mas encontram como óbice à purificação total, no somatório das sujeiras intrínsecas daquele espaço, as sujeiras e ferrugens próprias, que foram toleradas, também gradativamente ampliando a tolerância para com essas fétidas facetas. Novamente, lindes esmorecem. Violências, controles, hierarquias, pressões relativizadas. Inércia mórbida (para com todas essas coisas relativizadas, e para consigo mesmo).

Crítica domesticada. Obedecer dócil. Potencial perdido.

(Nasce mais um burocrata).

Já enferrujados, respiram para evitar a ferrugens do arsenal (naturalizado e incorporado) que agora precisam freneticamente resguardar, acima de tudo, eis que o arsenal gradativamente passa a representar a totalidade, num redesenho da hegemonia das significações, sobrepujando mesmo antigas convicções sobre a necessidade de um contra-poder acerca desses referenciais introduzidos e introjetados, que reverberam profundamente cada nuance da vida institucional, num ritmo que destoa daquelas potências perdidas, em frequências tão tragicamente nostálgicas.

Há quem siga preservando as imundices do arsenal, acreditando que assim conferirão algum sentido para si. Há quem vislumbre e entenda-o como extensão de si e vice-versa, de modo que atribuir (e mais especialmente acreditar) nos sentidos forjados passa a ser inclusive uma expressão da crença desesperada de si próprio.

O instante em que admitir a integralidade das sujeiras de um espaço se torna inconcebível, é dizer, a primeira certeza sedimentada dessa (im)possibilidade,   costuma anteceder a um conjunto de momentos e instantes ainda mais decisivos, referentes às batalha interiores (perdidas), em que se optou pela preservação de si enquanto sujeira necessária; uma autopreservação do arsenal enquanto de si mesmo.

Abraçar os tentáculos institucionais e chamá-los de amigos, doce conto, pobre engano. Afetos artificiais, ficções de um espelho quebrado carente de validação e reconhecimento. Claro, sempre há quem acredite nas distorções do reflexo, louve e se sinta fascinado por sua pretensa simetria.

Evidentemente que os tentáculos e controles institucionais não influem somente dentro das respectivas instituições. Na semana do episódio descrito, a revista eletrônica Consultor Jurídico ConJur sofreu ataque do MPF, em 17 de março, após publicar que 25 advogados foram grampeados. E poderíamos tranquilamente seguir nominando episódios lamentáveis de repercussão nacional ou até internacional.

Pode ser mesmo o momento de tecer críticas a tais episódios, como muitos outros, mas não nos esqueçamos daqueles que são devorados diariamente pelas instituições, dos que são meros números engavetados, ensanguentados, encarcerados. Das potências suprimidas, dilaceradas, empacotadas, limitadas.

Podemos nos enganar com a ordem das coisas, e as ordens que incidem sobre tais e sobre nós; como também podemos ser resistências e visar rupturas desestabilizadoras.

O vento que nos toca simulando harmonia e ordem é o mesmo vento dilacerador de carnes e colonizador de mundos, instituidor da pretensiosa máscara de vento libertário. Fetiche democrático energizador de uma mentira (validada nas atuais formatações e diagramações do poder!), cujas significações reverberam nas simbologias e combos de artificialidades de um "Estado Democrático de Direito", em toda sua ostentação e legitimação discursiva.


Notas e Referências:

CONJUR, Consultor Jurídico. Advogados renunciam a comissões da OAB-ES após nota de repúdio ser censurada. Publicado em: 23/03/2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-23/nota-censurada-advogados-renunciam-comissoes-oab-es>. Acesso em: 24/03/2016.

CONJUR, Consultor Jurídico. MPF ataca ConJur por noticiar como "lava jato" grampeou 25 advogados de banca. Publicado em: 17/03/2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-17/mpf-ataca-conjur-noticiar-lava-jato-grampeou-25-advogados>. Acesso em: 24/03/2016.

CONJUR, Consultor Jurídico. TJ-SP abre processo contra juíza que soltou presos sem ouvir colegiado. Publicado em: 09/03/2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-09/tj-abre-processo-juiza-soltou-presos-ouvir-colegiado>. Acesso em: 23/03/2016.

CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. ‘O professor’ perante as instituições de ensino e a produção institucional da subjetividade. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/o-professor-perante-as-instituicoes-de-ensino-e-a-producao-institucional-da-subjetividade-por-patricia-cordeiro-e-guilherme-moreira-pires/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 16/03/2016.

EMPÓRIO, do Direito. Nota pública e renúncia coletiva de membros da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/ES. Publicado em: 22/03/2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/nota-publica-e-renuncia-coletiva-de-membros-da-comissao-de-direitos-humanos-e-da-comissao-de-politica-criminal-e-penitenciaria-da-oabes/>.  Acesso em: 24/03/2016.

JUSTIFICANDO. OAB-ES censura comissões que se posicionaram contra Moro e membros pedem renúncia coletiva. Publicado em: 23/03/2016. Disponível em: <http://justificando.com/2016/03/23/oab-es-censura-comissoes-que-se-posicionaram-contra-moro-e-membros-pedem-renuncia-coletiva/>. Acesso em: 24/03/2016.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Anarquismos: potências, dissidências e resistências. Complexidades para além das leis e da Prisão-Prédio. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/abolicionismos-e-anarquismos-potencias-dissidencias-e-resistencias-complexidades-para-alem-das-leis-e-da-prisao-predio-por-guilherme-moreira-pires/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 17/03/2016.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos entre disputas, controles, capturas e cruzadas: militantes ou militares? Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/abolicionismos-entre-disputas-controles-capturas-e-cruzadas/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 17/03/2016.

PIRES, Guilherme Moreira. Símbolos, linguagem e poder: análise da coesão forjada a partir de uma perspectiva anarquista (e abolicionista). Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/simbolos-linguagem-e-poder-analise-da-coesao-forjada-a-partir-de-uma-perspectiva-anarquista-e-abolicionista-por-guilherme-moreira-pires/> ISSN 2446-7405. Acesso em: 17/03/2016.

STRECK, Lenio Luiz. O fator stoic mujic, a juíza Kenarik e o papel dos advogados, hoje! CONJUR, Consultor Jurídico. Publicado em: 11/02/2016. Disponível em: <www.conjur.com.br/2016-fev-11/senso-incomum-fator-stoic-mujic-juiza-kenarik-papel-advogados-hoje>. Acesso em: 23/03/2016.

WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista  pelos  lugares  do  abandono  do sentido  e  da  reconstrução  da  subjetividade.  Florianópolis: Fundação Boietux, 2004.


 

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