Legislação simbólica e imperativos de gozo na sociedade líquida - Por Adir Freire Freitas

21/12/2017

O presente texto discute o embate que surge no âmbito externo ao Direito Constitucional acerca de qual seria o papel do Estado na sociedade, o que também implica pensar e problematizar as próprias características da sociedade contemporânea.

Como se verá a seguir, o Parlamento torna-se espaço de conflito entre distintos interesses e visões ideológicas que tentam se afirmar ou na defesa de mais leis e mais direitos ou, ao revés, na defesa da abolição de direitos ou potencialização de determinados direitos em desfavor de outros.

Em todo caso, a constitucionalização dos direitos não pode ocorrer em detrimento da própria Constituição já existente, a qual estabeleceu objetivos para o Estado Democrático de Direito.

Somente a consolidação do Estado Democrático de Direito garantirá uma jurisdição constitucional que não dependa da visão solipsista de juízes e tribunais, como mostra Streck (2013), mas não basta para tal consolidação apenas a constitucionalização de direitos e demandas sociais, por mais legítimas e urgentes que sejam; faz-se necessário que as normas criadas sejam devidamente concretizadas na realidade fática, solucionando conflitos e promovendo a justiça.              

O fenômeno da constitucionalização simbólica estudado por Marcelo Neves (1994) denuncia uma importante característica da sociedade contemporânea, a saber, que cria-se leis que possuem pouca efetividade jurídico-normativa. Filho (2007), comentando a obra do eminente jurista, observa que: 

Neves define a constitucionalização simbólica em termos de déficit de concretização jurídico-normativa do texto constitucional que, por essa razão, perderia sua capacidade de orientação generalizada das expectativas normativas. Entretanto, o autor também observa que, no plano da fundamentação político-ideológica, constitucionalização simbólica serviria para encobrir problemas sociais, obstruindo transformações efetivas na sociedade. (FILHO, 2007, p. 382).

De acordo com a teoria da constitucionalização simbólica de Marcelo Neves (1994), pode-se afirmar que uma lei como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência seria um exemplar da “legislação simbólica”, caso note-se a ausência de concreção, de efetividade desta na realidade fática.

Ora, se a decisão é um ato complexo, por envolver n variáveis, uma das tais, sem dúvida, é aquela externa ao universo hermenêutico-jurídico, a própria escala de valores do indivíduo. Esta é também a tese defendida por Streck (2013) quando pergunta: “Que é isto, decido conforme minha consciência?”

Neste sentido, o discurso da constitucionalização simbólica torna-se uma espécie de “argumento de autoridade” com o qual o intérprete deixa claro a presença do solipsismo jurídico contra o qual tanto combate Streck (2013). Neves (1994, p.32) esclarece este ponto quando afirma: 

Pode-se definir a legislação simbólica como produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primaria e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico.

Ora, a definição supra abre a possibilidade de pensar a atuação do Legislativo simplesmente como “sobreposição do político sobre o jurídico” e, portanto, a atuação do Judiciário na defesa de direitos fundamentais sociais, como ativismo judicial, já que as liberdades individuais são para assegurar o absenteísmo do Estado.

Esta hipótese se fortalece, sobretudo, quando se pensa no não dito. O autor nada diz de uma sobreposição do econômico sobre o político e sobre o jurídico como constantemente se observa.

Os agentes econômicos tratam a sua atuação no mercado como se este fosse independente da regulamentação estatal, isto é, como eles gostariam que fosse tal regulação e, neste caso, assume a postura “ética” típica da sociedade pós-moralista de que fala Lipovetsky (2005).

Decorre daí uma perigosa consequência, a saber, a ideia de que o sistema econômico é infenso à regulamentação estatal na defesa dos direitos fundamentais sociais, porque o Estado não tem como custear a efetivação desses direitos, transmite a mensagem para a sociedade de que os agentes econômicos não precisam cumprir as leis a todos imposta, fortalecendo a produção de subjetividades perversas.

Nesta perspectiva, o agente econômico faz do “econômico” o significante-mestre, capaz de explicar quando e porque ignorará o poder de império do Estado. Por outro lado, o intérprete também faz do econômico o significante-mestre, o princípio maior de interpretação da norma.

Ademais, a justificação cultural do próprio constitucionalismo e das instituições restam abaladas pela ação de agentes políticos e públicos que atuam desde as entranhas do próprio Estado editando normas que parecem inúteis ou apenas simbolicamente eficazes. Por outro lado, agentes econômicos que atuam e auferem lucros com a oferta do serviço educacional, estão sob a ordem jurídica nacional e não podem, à margem desta, atuar como se dela pudessem prescindir em favor de seus próprios imperativos morais.

Lipovetsky (1994, p. 15) propõe para esta “hipermodernidade”, uma “ética indolor”, suave, destituída da noção de dever e de imperativos categóricos. Esta ética do pós-dever é endereçada ao indivíduo que já não mais se sacrifica em nome de um imperativo transcendente, mas se empenha e se compromete segundo um “processo de reorganização da ética que se estabelece desde normas individualistas em si mesmas”.

Bauman (2001) critica essa ética do pós-dever porque tem como centro o individualismo hedonista e narcisista, de deveres subjetivos (portanto de negação do direito), de satisfação dos desejos individuais, e o faz não porque seu autor defenda a total irresponsabilidade em relação ao outro, mas porque deseja a ética que for necessária à sociedade contemporânea.

Roudinesco (2006, p. 51) afirma que assistimos ao surgimento “de uma cultura do narcisismo” que se refere “a um sujeito desprovido de sentido histórico, atemporal, sem passado nem futuro; um sujeito limitado ao claustro de sua imagem no espelho”.

As implicações dessas palavras contribuem para ampliar outras análises acerca do atual estágio de modernidade e suas instituições mais caras como a família, a escola e o próprio Direito. “A figura de Narciso” – observa a psicanalista francesa – “vem substituir a de um Édipo soberano e ressentido” e assevera: “Narciso é o mito de uma humanidade sem interdito e fascinada pelo poder ilimitado de seu eu” (Idem, p. 52).

Freud (1923) sublinhou uma grande característica do Super-eu pouco conhecida, mas útil à compreensão dos imperativos de gozo em voga em nossa cultura atualmente, a saber, sua dimensão inconsciente que tende a fazer exigências exageradas ao eu.  Ora, nisto pode-se perceber a lógica paradoxal: é herdeiro do complexo de Édipo, mas tem origem no Id, sendo seu advogado!

O Super-eu, portanto, não é apenas um agente psíquico agindo em função da ordem, controlando a influência do Eu e adaptando o indivíduo ao sistema de normas e relações estabelecido na sociedade, como se costuma pensar.

Os imperativos de gozo se expressam em discursos que circulam nos meios de comunicação de massa, como aqueles que aparecem no modo imperativo dos verbos utilizados em textos publicitários: “Compre batom”; “Beba Coca-cola”; e coisas semelhantes a estas a respeito do corpo esbelto, da eterna juventude, da performance sexual, etc. Para quem não consegue atender a tais imperativos, o mercado oferece opções como a auto-medicalização: “Tomou doril, a dor sumiu”.

Lacan (1972) ressalta que o gozo não pode ser confundido ou tratado como um termo equivalente ao prazer sexual, mas o gozo que, numa ilustração um tanto grosseira, experimenta o toxicômano quando vai além do prazer proporcionado pelo uso “recreativo” da droga em direção ao extremo da overdose.

A midiatização de promessas dirigidas ao indivíduo vem fortalecer os imperativos de gozo de subjetividades narcisistas pelas suas características específicas. E, a outro giro, esta cultura narcisista que forja subjetividades com traços perversos, encontra nos pressupostos do discurso ideológico um aliado - não porque este possua, em si, um elemento patógeno, mas por sua ênfase na radicalização de certos valores que o torna atraente ao perverso - racionaliza as posturas hiperindividualistas e solipsistas.

A implementação de um ideário valorativo extrínseco ao sistema constitucional encontra na própria Constituição de 1988 seu maior obstáculo, pois enquanto se defende, por exemplo, o Estado mínimo e os direitos individuais do cidadão, a Lex Fundamentalis institui o Estado Democrático de Direito e o rol de direitos fundamentais sociais, sem excluir os direitos individuais.

A incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas é fato que não se coaduna ao sujeito contemporâneo que vê na cultura do sucesso individual o imperativo de gozo ao que o Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição Federal de 1988 faz oposição.

Com efeito, enquanto a dogmática tradicional concebe os direitos fundamentais como um limite ao poder público frente ao indivíduo, impondo-se o dever jurídico do Estado de abster-se de invadir a esfera das relações privadas; a teoria geral dos direitos fundamentais indica que estes devem ter pronta aplicação em face de entidades privadas.

Eis um entendimento  coerente com a Constituição da República, a qual vincula os direitos fundamentais aos poderes públicos e visa proteger os particulares em face dos poderes privados.

Os direitos fundamentais não estão à mercê de nenhuma interpretação baseada em paradigmas de pensamento, quer do liberalismo, quer do socialismo ou de quaisquer outros pressupostos da cosmovisão do intérprete, uma vez que valem os que já estão positivados no texto magno, cabendo qualquer interpretação deste levá-los em conta.

 

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1999.

________. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade: adi 5357 df - distrito federal000518775.2015.1.00.0000. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.aspnumero=5357&classe=ADI&rigem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M  Acesso em 15 dez. 2017. 

FILHO, Orlando Villas Bôas. Resenha de "A constitucionalização simbólica" de Marcelo Neves. Prisma Jurídico, núm. 6, 2007, pp. 381-384. 

FREUD, Sigmund. O Eu, O Id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). Trad. Paulo César de Sousa. Obras completas, volume 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 

LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 20: Mais, Ainda (1972-1973). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 

LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. 1ªed. Trad. Therezinha Monteiro Deutsch. São Paulo: Manole, 2005. 

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994. 

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 3. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. 

 

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