JESUS: PRIMEIRO DEFENSOR PÚBLICO E INSPIRAÇÃO PARA O DEFENSORAR.

25/12/2017

Não, este não é um texto religioso. É sobre o humano, demasiado humano em nós.

Não obstante ser clichê dizer que o Natal é época de reflexão sobre a vida e sobre o que dela fazemos, infindáveis questões são suscitadas a partir das ações e das ideias de Jesus, descritas em diversas passagens do Novo Testamento.

Em muitas das histórias retratadas por seus discípulos, Jesus pode ser considerado como o primeiro defensor público, na exata integralidade que o termo propõe, sendo nos apresentada uma atuação que buscava a tutela mais adequada dos necessitados e mais efetiva à consecução da dignidade humana, em favor de tantos quanto estivessem submetidos a uma situação de vulnerabilidade, e não somente daqueles que se encontrassem em condição de pobreza material. Embora fosse este o público preferencial de sua defesa, até porque a pobreza atrai uma multiplicidade de situações de vulnerabilidade, também exercia seu múnus em prol de grupos necessitados de proteção especial, como as crianças, os acusados e as mulheres. Jesus caminhou ao lado e deu vez e voz aos que tinham fome e sede, aos refugiados, aos despossuídos, aos enfermos e aos prisioneiros (Mateus 25: 35,36). Também hoje é este o público que busca e necessita do atuar atento da Defensoria Pública[1] - amicus ad vulnerable.

Atuou, por exemplo, em defesa daquelas pessoas submetidas à extrema vulnerabilidade causada pela situação de enfermidade (Mateus 15:30, 31), ainda quando pertencessem a famílias abastadas (Lucas 8:40) ou quando ocupassem cargos importantes (Mateus 8:5-13.). Ciente de que a debilidade na saúde[2] torna a pessoa especialmente vulnerável, atuou o carpinteiro em qualquer circunstância, inclusive naquelas em que a lei, ou mesmo a tradição, expressamente lhe vedava exercer tal mister, como aos sábados (Lucas 13:14). Assim também deve atuar o defensor público, pois o exercício de seu múnus exige não apenas conhecer e seguir as fórmulas legais predispostas, mas criar e reinventar o direito, construindo soluções novas (políticas, jurídicas ou culturais) aptas a responder às complexas questões que surgem diariamente na atividade defensorial. 

O defensor público é responsável institucionalmente pela promoção dos Direitos Humanos, não somente por meio do labor jurídico, mas com atividades político-institucionais que tenham como escopo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, liberta de qualquer discriminação. Em razão de ter sido constituída a Defensoria Púbica como expressão e instrumento do regime democrático, sua arena de lutas passou a ser também o espaço da discursividade das normas sociais, influindo nas decisões de orçamentos públicos, projetos e programas, e não apenas através de processos e procedimentos legais. A convocação de audiências públicas para discussão de matérias institucionais, a função de educação em direitos e o atendimento por equipe multidisciplinar levam a Defensoria Pública para além do teatro das normas, introduzindo-a no campo das políticas públicas, cuja finalidade é o pleno desenvolvimento da pessoa, conferindo cidadania e dignidade, num ambiente democrático.

Essa busca incessante da promoção da dignidade humana e da cidadania faz com que os designativos “assistido”, “necessitado”, “usuário” ou “destinatário dos serviços” se tornem inadequados para definir o beneficiário dos serviços da Instituição ou a relação entre ambos[3]. Neste sentido, criou-se o neologismo “defensorar”[4], hábil a definir esta conexão entre a pessoa ou grupo em situação de vulnerabilidade e a Defensoria Pública, dada em um plano horizontal. O fomento do diálogo, do respeito à autodeterminação, a atuação dirigida à superação das causas de exclusão a partir do empoderamento e do estímulo à emancipação, sem hierarquias, tutelas, assistencialismos ou autoritarismos, é o conceito de defensorar, consequentemente, é o atuar que relaciona a Defensoria Pública e o defensorado, constituindo este um novo e mais adequado termo para designar o titular do direito de acionamento da dimensão organizacional do princípio fundamental do acesso à Justiça[5].

O Cristo é a figura de um dos mais destacados ativista dos direitos humanos e exemplo de tratamento digno às pessoas, sejam prostitutas, pescadores, moradores de rua, marginalizados ou toda sorte de excluídos, sendo cada uma delas merecedora da atenção do poder público e da consideração da sociedade, daí a razão de suas disputas contra o Sinédrio e a dominação romana, mandando tomar o alforge ou vendar a capa para comprar uma espada (Lucas 22:36) - símbolo da luta que deve ser travada diretamente contra as causas da vulnerabilidade.

Atua assim o Cristo quando vai ao Templo de Jerusalém e ali passa a expulsar com um azorrague de cordas os que vendiam e compravam, derruba mesas e cadeiras e derrama pelo chão o dinheiro dos cambistas contra o que ele denominava casa de negócio (em João 2:15-16). Tal deve ser a Defensoria Pública como contra poder, sem conivência com os meios de alienação-dominação dos vulneráveis[6], que lhes retira a dignidade e a cidadania. Como assistência jurídica, ordinariamente pode atacar os efeitos da exclusão, mas como expressão e instrumento do regime democrático, o alvo deve ser as causas primevas das violações à condição humana.

Além disso, o Cristo era defensor público com primorosa atuação da defesa criminal, ao que se vê em algumas célebres passagens, parecendo claramente não acreditar na aplicação da pena como forma de reinserção social ou pacificação dos conflitos. Estava consciente da falência do sistema jurídico-penal de sua época, como de resto de todas as demais, e que não poderia ocultar seu desbaratamento valendo-se do antiquado arsenal de racionalizações reiteradas[7] do Sinédrio.

Seu entendimento aparentemente corria no sentido de que a pena, enquanto violência a ser aplicada em face de outra violência - o crime -, não seria capaz de melhorar uma pessoa ou a sociedade em que este indivíduo vive, pois, o demônio não serve para expulsar o demônio e não é com o mal que se pode vencer o mal[8]. Assim, devem ser buscadas na atividade defensorial opções aos castigos e não castigos opcionais[9], humanização no curso do processo, sem desnecessárias ou alongadas prisões, e atendimento digno aos que estiverem presos, não os deixando esquecidos no cárcere (Mateus 25:36).

No transcurso de sua vida, Cristo, ao ser confrontado com situações de cometimento de delitos penais, muitas vezes se mostrou contra a aplicação da punição prescrita na lei, talvez entendendo que a humanidade do indivíduo e da sociedade se restaurariam se forma muito mais eficaz com a estruturação de outras formas de tratamento das infrações. Não permitira, há que se lembrar, que fosse cumprida a sanção de apedrejamento contra a mulher que foi apanhada em flagrante adultério (João 8:4), conduta que se configurava como crime há até poucos anos no ordenamento jurídico brasileiro. Ao se deparar com a mulher adúltera, não a julgou ou condenou, consciente das agruras que uma vida desigual em oportunidades pode acarretar, simplesmente a defendeu e, com amor, a exortou a abandonar sua vida de pecado (João 8:11), firme no pensamento da redução da percepção da necessidade de imposição de dor com o propósito de controle social[10].

Efetivamente, podemos verificar que Jesus, nos estertores da morte, protagonizou uma cena em que a aplicação da pena não agiu sobre o homem restaurando nele o humano perdido, pois, mesmo crucificados – punidos - em razão de seus delitos, apenas um dos dois ladrões que ladearam Cristo no Calvário faz correções mentais de vida (Lucas 23:39-43), não tendo a pena agido sobre ele, mas o amor, a lembrar Virgílio: omnia vincit amor. No Sermão da Montanha, concita a que cada um seja rigoroso consigo mesmo, em sua reforma íntima, mas tolerante e benevolente para com o erro do outro (Mateus 5).

Há dois mil anos, para Jesus já não parecia certo deixar as crianças maltratadas, as mulheres violentadas, os doentes abandonados e os presos condenados à morte. Desde o Calvário, aos cristãos, não se lhes parece certo exultar ao ver alguém amarrado e sangrando devido à coroa de espinho, ou gritar ensandecidamente no momento do Ecce Homo: crucifica-o! Mas ainda hoje os cambistas do Templo, os senhores do Sinédrio e os apedrejadores gritam “bandido bom é bandido morto” nos programas policialescos e nos palanques políticos.

O desejo deste Natal é que o posicionamento de Jesus diante das múltiplas vulnerabilidades seja inspiração para nós, os defensores públicos modernos, e seu ativismo em direitos humanos – o amor – seja o projeto de vida de cada um dos que se proclamam cristãos em relação ao próximo, principalmente aquele submetido a toda sorte de exclusões.

 

[1] ROCHA, Jorge Bheron. Legitimidade a Defensoria Pública para Ajuizamento de Ação Civil Pública Tendo por Objeto Direitos Transindividuais. Fortaleza: Boulesis. 2017 p. 19/20.

[2]  TARTUCE, Fernanda. Forense: Rio de Janeiro. 2012. p195.

[3] KETTERMANN, Patrícia. Defensoria Pública. São Paulo: Estúdio Editores, 2015

[4] DEVISATE, Rogério dos Reis. Categorização: Um Ensaio sobre a Defensoria Pública. In: Revista de Direito da Defensoria Pública (RJ), n. 19, Centro de Estudos Jurídicos: Rio de Janeiro, 2004

[5] FENSTERSEIFER, Thiago. Defensoria Pública na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Forense. 2017, p. 226

[6] CARVALHO, Amilton Bueno de. Defensoria Pública: entre o velho e o novo. In Autonomia & Defensoria Pública. Aspectos Constitucionais, Históricos e Processuais. Bheron Rocha et ali (org). Salvador: Juspodivm. 2017. p22.

[7]  ZAFFARONNI, Eugênio Raul. Em Busca das Penas Perdidas. Revan: Rio de Janeiro. 2015, p12.

[8]  CANELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. Pilares: São Paulo. 2009. p. 26.

[9]  CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. Saraiva: São Paulo. 2015. p. 250.

[10] CHRISTIE, Nils. Limites à dor: O Papel da Punição na Política Criminal. Belo Horizonte: Editora d'Plácido. 2016. p.26.

 

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