Impossibilidade do uso do polígrafo no processo penal brasileiro

19/01/2016

Coluna Espaço do Estudante

Na China antiga, existia um método de verificar a culpa baseado em servir grãos de arroz a suspeitos. O indivíduo deveria mastigar o arroz cru e cuspi-lo em seguida. Se o grão estivesse seco, era sinal de que o suspeito havia mentido, pois partia-se da ideia de que a pessoa ao mentir ficaria com a boca seca. Era esse um rudimentar polígrafo e, por mais ridículo que possa parecer, ainda hoje, as premissas desse teste continuam bem parecidas.

Criado por John Larson em 1921, o polígrafo, conhecido popularmente como detector de mentiras, consiste em um aparelho que analisa as reações fisiológicas, como alterações dos batimentos cardíacos ou do ritmo da respiração, de um sujeito ligado a sensores enquanto questionado.

Apesar de ser considerado o criador do dispositivo, sua patente não foi concedida a Larson, mas sim a seu aprendiz, Leonarde Keeler, em 1931, que aperfeiçoou o aparelho, chamando-o de “Emotograph”.

Em verdade, o polígrafo não chega a ser realmente um detector de mentiras, até porque não consegue reconhecê-las, apenas registra oscilações comportamentais enquanto alguém é submetido a interrogatório. Não tem a capacidade de concluir se uma pessoa inventa ou não aquilo que diz, podendo estar dizendo a verdade, mas apresentar alterações fisiológicas por conta do nervosismo decorrente da situação.

Em razão disso, eficácia desse dispositivo é muito questionada, pois carece de cientificidade, sendo vários os meios de burlar seu sistema e de alterar seus resultados.

Em 1998, a Suprema Corte norte-americana, no caso Estados Unidos v. Scheffer, julgou a constitucionalidade da proibição do uso do polígrafo como evidência em procedimentos legais, inclusive se em benefício do réu.

Edward G. Scheffer, até então integrante das Forças Armadas, trabalhava em uma investigação cujo objetivo era combater o tráfico de drogas. Durante esse período, foi submetido a testes laboratoriais para a verificação do consumo de drogas, bem como ao teste do polígrafo, como era de costume.

Embora o detector de mentiras tenha concluído que falava a verdade ao dizer que não consumiu drogas durante a investigação, um exame de urina detectou metanfetamina no organismo de Scheffer. Apesar das divergências, Scheffer foi condenado, vindo a alegar na justiça a inconstitucionalidade da Military Rule of Evidence 707, a qual proibia o uso do polígrafo como prova.

A Corte alegou não existir consenso acerca da exatidão do detector de mentiras, muito menos base científica que desse suporte ao teste, de forma que sua proibição não feriria nenhum preceito fundamental. Ademais, estabeleceu que proibir o réu de juntar ao processo resultado favorável no teste do polígrafo não seria caso de cerceamento de defesa.

Além disso, também não é mais possível aplicar o teste na seara trabalhista, com exceção do próprio governo norte-americano, que ainda utiliza o polígrafo no processo de admissão de seus funcionários.

Até mesmo defensores do uso do polígrafo admitem que o teste, apesar de altos índices de acerto, não é totalmente confiável nos seus resultados:

“The combination of all validated PDD techniques, excluding outlier results, produced a decision accuracy of 87% (confidence interval 80% - 94%) with an inconclusive rate of 13%. These findings were consistent with those of the National Research Council’s (2003) conclusions regarding polygraph accuracy, and provide additional support for the validity of polygraph testing when conducted in accordance with APA Standards of Practice”[1].

O polígrafo já foi causa de muitas confusões ao ser utilizado como prova no processo penal, trazendo um resultado contraditório ao conjunto probatório colhido nos autos. O famoso caso do serial killer Green River Killer é exemplo disso.

Gary Leon Ridgway, suspeito de matar dezenas de mulheres na década de 80 em Seattle, nos Estados Unidos, foi submetido ao teste do polígrafo em 1987 e “passou”. Apenas em 2001, por meio de exames de DNA, foi possível conectar Ridgway a algumas das vítimas do serial killer. Logo após, Ridgway acabou confessando o assassinato de 48 mulheres, sendo condenado à prisão perpétua, em dezembro de 2003.

O teste do detector de mentiras, portanto, já foi muito utilizado em todo o mundo como meio de produção de prova no sistema penal, sob a premissa de quase sempre funcionar, tendo uma alta probabilidade de acertos. O fato é que, no processo penal brasileiro, a palavra “quase” não se encaixa. Para condenar um indivíduo, é necessária certeza absoluta da materialidade e autoria do crime. Não havendo essa certeza, inocente é até que se prove o contrário.

No processo penal, então, a lógica do teste do polígrafo é bem simples: o nervosismo tem o condão de transformar o inocente e honesto em culpado, assim como manter a calma pode inocentar o culpado e mentiroso. Não há garantias e, em razão disso, o uso do polígrafo, principalmente como prova de acusação, é proibido no Brasil.

A prova no processo penal existe para esclarecer e ajudar o julgador a formar sua convicção a respeito do caso concreto apresentado. Quando produzida em desacordo com as normas processuais, estamos diante de uma prova ilegítima; se produzida com a “violação de uma norma de direito material ou da Constituição no momento de sua obtenção”[2], temos a prova ilícita.

Analisando sob essa perspectiva, o detector de mentiras, na seara processual penal, é uma prova ilícita, uma vez que é produzido sem observar a norma - até porque nosso país carece de legislação que regule seu uso -, principalmente no que diz respeito aos direitos e garantias fundamentais do acusado, não sendo permitido pelo ordenamento que este produza provas contra si mesmo. Dessa forma, a utilização dos resultados de teste de polígrafo em qualquer processo, penal ou não, fere a Constituição Federal (artigo 5º, inciso LVI).

A jurisprudência brasileira é precisa e pontual no que diz respeito ao uso do polígrafo no processo penal - e com razão. Por ser um teste não regulado por lei, torna-se inviável admiti-lo como prova.

Nesse sentido, é o entendimento dos tribunais brasileiros:

HABEAS CORPUS. AUDIÊNCIA DE JUSTIFICAÇÃO. INDEFERIMENTO DE PROVAS. PRISÃO DOMICILIAR. 1. De acordo com a doutrina, na ação cautelar de justificação somente se admite a produção de prova testemunhal e documental, não se prestando à produção de prova pericial. 2. Além de o detector de mentiras não ser prova prevista em lei e inexistir comprovação de sua eficácia, ninguém poderá ser compelido a submeter-se ao exame. Precedentes. 3. A quebra de sigilo telefônico somente pode ser requerida pela autoridade policial ou pelo representante do Ministério Público, não cabendo aos procuradores das partes solicitá-la. 4. Prova testemunhal não postulada no juízo de origem. Impossibilidade de inovação em habeas corpus. 5. Considerando que o processo nº 034/2130000718-8 apurou a prática de crime contra a dignidade sexual, o qual corre em segredo de justiça, nos termos do art. 234-B do CP, impertinente o pedido de vista dos autos. 6. O pedido de prisão domiciliar está ligado à execução da pena, matéria que não pode ser analisada no writ. Habeas corpus conhecido em parte. Ordem denegada. (TJRS, Habeas Corpus nº 70066609934, Rel. Jucelana Lurdes Pereira dos Santos, Sétima Câmara Criminal, julgado em 26/11/2015) (grifou-se).

No entanto, ainda é possível encontrar casos em que o aparelho é utilizado pela polícia - o que retira o crédito de quase todo o trabalho policial na medida em que a utilização do polígrafo produzirá provas que não serão admitidas no processo, além de contaminar todas as outras que forem geradas a partir desta, ressaltando, aqui, a teoria dos frutos árvore envenenada.

Um novo tipo de polígrafo, que, teoricamente, detecta a mentira a partir da análise da voz do interrogado, vem sendo usado no Brasil. Em 2014, o réu Leandro Boldrini, acusado por homicídio qualificado no caso Bernardo, juntou aos autos os resultados de teste do polígrafo como perícia, alegando sua inocência.

O Código de Processo Penal, em seu artigo 157, inadmite o uso de provas ilícitas, aquelas que violam normais materiais ou processuais. A utilização do polígrafo no processo transmite seu vício a todas as provas derivadas do teste, comprometendo-as.

A credibilidade do detector de mentiras pode ser afetada de diversos modos, como se observa, por exemplo, com as falsas memórias, descritas por Aury Lopes Jr como a situação em que “o agente crê honestamente no que está relatando, pois a sugestão é externa (ou interna, mas inconsciente)”[3], ou seja, “a testemunha ou vítima desliza no imaginário sem consciência disso”[4]. Diferem da mentira, pois o interrogado não manipula aquilo que diz; aquilo que, apesar de falso, é a sua verdade. Em outras palavras, “mentiras repetidas à exaustão viram verdades”, como disse Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda nazista.

Desse modo, o sujeito submetido ao teste do polígrafo provavelmente não sofrerá as mudanças comportamentais esperadas pelo teste, não sendo detectada a mentira.

Até mesmo o fato do interrogado não entender a pergunta que lhe é feita pode alterar os resultados do teste por conta de estresse mental causado pela confusão.

“Pessoas muito inteligentes costumam ter dúvidas sobre certas questões, ainda que relacionadas a uso de palavras ou construção de frases. Isso traz algumas implicações nos parâmetros testados: a dúvida por si só causa estresse mental. Se o entrevistado não se sentir completamente certo sobre a correção da linguagem utilizada, o detector de mentiras pode erroneamente determinar que o entrevistado mentiu”[5].

Por fim, outro motivo pelo qual se faz necessário manter a impossibilidade do submetimento de um indivíduo ao teste do polígrafo no âmbito jurídico é a provável criação de "antecedentes", por assim dizer. Os resultados de testes feitos no passado poderiam vir ser usados em um processo no futuro como motivos para desacreditar na palavra do réu ou da vítima, seguindo, talvez, uma lógica de "já que mentiu antes, por que não estaria mentindo agora?".

“Validity is further compromised when tests are used for what might be called prospective screening (for example, with people believed to be risks for future illegal activity), because such uses involve making inferences about future behavior on the basis of information about past behaviors that may be quite different. For example, does visiting a pornographic Web site or lying about such activity on a polygraph test predict future sex offending?”[6].

Mentir é algo inerente do ser humano, que, às vezes, mente sem sequer saber que está mentindo, acreditando cegamente naquilo que reproduz como verdade. Como diria Machado de Assis, "a mentira é muitas vezes tão involuntária como a respiração", e isso, aliado à falta de fundamentos científicos e jurídicos e à pouca exatidão dos resultados são motivos suficientes para entender por que o uso do polígrafo como prova no processo penal é, e deve continuar sendo, proibido no Brasil.


Notas e Referências:

[1] POLYGRAPH Validity Research. Disponível em: <http://www.polygraph.org/polygraph-validity-research>. Acesso em: 12 jan. 2016.

[2] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 428.

[3] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 487.

[4] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 487.

[5] LIMITAÇÕES de Ferramentas e Mecanismos de Detecção de Mentiras. Disponível em: <http://truster.com.br/usos-e-aplicacoes>. Acesso em: 12 jan. 2016.

[6] FAIGMAN, David L.; FIENBERG, Stephen E.; STERN, Paul C.. The Limits of the Polygraph: The time has come to be truthful about its reliability and usefulness.. Disponível em: <http://issues.org/20-1/faigman/>. Acesso em: 08 jan. 2016.

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Maria Victória Jaeger Gubert . Maria Victória Jaeger Gubert é acadêmica de Direito da UFSC. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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