Imaginação libertária: abolicionismos, anarquismos e surrealismos – Por Guilherme Moreira Pires

20/10/2016

Os defensores fervorosos do jogo instituído, ao menos os verdadeiramente perspicazes e privilegiados (e não os sem capital que lhes defendem), movem-se e torcem, do alto de suas cadeiras, pela castração da imaginação, por seu achatamento e agrilhoamento; um triturar-matando, garantindo que a imaginação, uma vez encarcerada, suprimida, jamais volte a ser perigosa.

A supressão permanente da imaginação, bem como de todo potencial criativo, é um projeto de governo explícito ou implícito de toda teoria e razão (legitimante) de Estado, obviamente atrelado à manutenção da "questão criminal" como assunto de ordem pública; de modo que os empecilhos e limites à materialização e estruturação de tal projeto [de supressão da imaginação] são historicamente encarado como problemáticos às autoridades, com suas hierarquias e centralidades, seus controles e demais violências; é dizer, seus governos (em sentido amplo).

A imaginação é considerada inimiga do Estado, e me refiro, aqui, à imaginação libertária: não à inventividade e versatilidade dos controles; imaginação libertária que não se confunde com imaginação para os controles, produções do poder delineadoras de culturas repressivas.

Em "Senso comum democrático: ensaio abolicionista contra a pureza do poder (parte 2)", se apresenta um pouco de André Breton, La clara torre! (Le Libertaire, 1952), desenhando um pouco relações do surrealismo com o anarquismo, e como nossa imaginação seria muito mais miserável na ausência de singularidades anárquicas, prontas a fazerem ruir as estabilidades e balanços sedimentados, e a desafiarem as diagramações de poder detonadoras da vida, se opondo a cada aberração oxigenada pelos desenhos, pelas produções do poder (a exemplo das prisões).

Em 1924, emerge em Paris o "Primeiro Manifesto Surrealista" de André Breton, e desde então a poesia e a arte ressoariam com novas concepções de mundo. Escrito presente no livro "Manifiestos del surrealismo", com tradução, prólogo e notas do poeta e ensaísta Aldo Pellegrini (juntamente com escritos seguintes, de 1930 e 1942), pensador crítico que fundou em Buenos Aires o primeiro grupo surrealista da Argentina e América do Sul.

Publicado no idioma espanhol mais de 40 anos depois da publicação original (nessa tradução de Aldo Pellegrini), destaca o poeta, no prólogo, que, considerando tantas imbecilidades traduzidas e publicadas, essa demora de décadas para se conseguir a aludida publicação, reluz a qualidade altamente subversiva de um escrito com significativas ressonâncias nesse século; ao mesmo tempo, expressão contrária às complacências de rebanho, críticas domesticadas e tranquilidades forjadas; expressão de um século.

Inquietude para além dos lindes do permitido e do catalogado como real, valorização do inconsciente, contrariedade ao conformismo; contrariedade como característica de um movimento artístico desencarcerador da imaginação, que não reflete apenas uma escola literária ou artística, mas uma concepção de mundo, e talvez uma anti-escola.

"El sueño no es el contrario de la realidad. Es un aspecto real de la vida humana, así como la acción; uno y otra, lejos de excluirse, se complementan [...] contiene los fermentos de la revuelta más violenta por ser los más violentamente humanos. Se comprende que la voluntad de oscurantismo de los maîtres à penser se haya manifestado siempre por un desprecio total en relación con el sueño. Su inteligencia se limitó a tolerar (y tal vez a favorecer) la difusión de las 'Claves de los Sueños', obras desnaturalizadas, de carácter puramente supersticioso, fantasioso o idiota. Pero los pueblos que el odioso buen sentido europeo se obstina en denominar 'primitivos' (primitivo porque nunca conocieron los secretos de la bomba atómica, o simplemente de la hipocresía diplomática) conceden al sueño un lugar de primer orden. [...] Se sabe ahora que no existe sueño gratuito, que por el simples hecho de soñar el hombre cambia su destino, aun cuando ese cambio sea imperceptible. [...] Cuando, una noche, todos los explotados sueñen que es preciso terminar y cómo terminar con el sistema tiránico que los gobierna, entonces, tal vez, la aurora surgirá en todo el mundo, sobre las barricadas.  Jean Schuster - Le Libertaire, 26 de octubre de 1951 - compilado en "Surrealismo y Anarquismo".

Embora não seja necessário esperar tal cenário, o de que todos assim sonhem, bem como demais fechamentos insensatos dos que planejam planos para o futuro congelando as movimentações do presente (falhando da experimentação de potências libertárias mesmo no interior de culturas repressivas), a recuperação do inconsciente, bem como a compreensão dos desejos, se faz necessária.

O "homem" oxigenado nesse surrealismo não nos remete ao homem frustrado e violentado que oferecem as sociedades atuais, mas um potencializador de intensas realizações: a arte e liberdade de criar e amar, enquanto estremece e destrona as perversidades do poder, e seus representantes desmiolados, que optaram por inteligências para o controle, é dizer, para culturas repressivas.

Pellegrini sublinha como, da miséria desse homem domesticado (sobre o qual se direcionam intensas críticas), nascem tiranos!

A produção de tiranos e tiranias de toda sorte necessita desse modelo domesticado, associado também a uma supressão da imaginação, uma castração de nossas potências, desejos e sonhos, matando e implantando outros, formatando e deletando um turbilhão de questionamentos, ideias e movimentações trituradas, esmagadas, reprogramadas.

Em "Surrealismo y Anarquismo", organizado por Plínio Augusto Coelho, são recobradas colaborações dos surrealistas em Le Libertaire, periódico semanal da Federação Anarquista da França.

Em 12 de outubro de 1951, quando Le Libertaire publicou um manifesto sobre surrealismo e anarquismo, a surpresa foi grande, e muitas tensões ocorreram acerca dessa então estranha fusão, desagradando libertários que insistiam em uma arte realista e concreta, com participação popular, entendendo o surrealismo como problemático; e assim, os encontros foram majoritariamente tragados pelos desencontros, de modo que a participação desses surrealistas foi curta: colaboraram regularmente por cerca de 15 meses (de outubro de 1951 até janeiro de 1953), com o estopim da ruptura após uma reunião entre os surrealistas e os anarquistas (ainda que posteriormente surrealistas tenham seguido o diálogo com o anarquismo, e vice-versa - e com a importante ressalva de que existe uma pré-história em relação a esse marco de outubro de 1951, não se esgotando nesses marcos a história).

Sem a pretensão de me prolongar e aprofundar nos pensadores, encontros e influências entre anarquistas e surrealistas nesse breve escrito, venho sublinhar uma percepção ensejadora de problemas para alguns.

A possibilidade, fundada ou não, de que os surrealistas almejavam alçar a posição de arte oficial dos anarquistas, promoveu e potencializou tensões, desentendimentos, desconfianças, mágoas mútuas.

Surrealistas e anarquistas convergiam na dimensão abissal de uma revolta total, a anarquia como um todo refinado para as liberdades, estremecendo tiranias e arbitrariedades, abalando autoridades; entretanto, acerca das pretensões artísticas, algumas complicações emergiam, diferenças interpretativas.

Em 11 de setembro de 1952, um grupo de libertários destaca em Le Libertaire, de forma incisiva, que não suspeitam da sinceridade de seus companheiros surrealistas, e que não visualizam infiltração ou desonestidade.

Acrescentam que os encontros podem promover coisas excelentes, expandir horizontes libertários aos anarquistas, intelectualmente; artisticamente. Mas frisam que, de nenhuma maneira, pode o surrealismo converter nessa arte oficial do anarquismo - essa relação artística é maravilhosa, sublime, mas existem vários caminhos e potências a serem aproveitadas, não sendo benéfico fechamentos insensatos acerca dos verdadeiros e únicos caminhos, de forma totalizante e desnecessária.

Essa fantástica relação do homem com a arte, bem como a autocompreensão como artista, sendo a poesia feita por todos, essas e tantas outras percepções, e formas de ver o mundo, são tão frutíferas, quanto menos fechamentos imporem; é dizer, suas potências decaem no momento em que se colocam como forma colonizadora ou oficial de ver o mundo; existem pessoas distintas, com preferências distintas, e com tempos e momentos distintos.

De modo geral, existe uma simpatia enorme entre anarquismos e surrealismos (não por acaso, ler escritos como os de Warat libera a inventividade para o pensamento libertário), mas também algumas tensões. O surrealismo pode mostrar-se aliado na ruptura de correntes invisíveis, que achatam nossa imaginação e compreensão de mundo, e sua história dialoga com a anarquia (todavia, não como representação oficial ou bandeira totalizante de uma expressão artística apresentada como superior às demais - destacando-se ainda que, imposições e sacrifícios de tantas formas e conteúdos sublimes, não combina com pensamento libertário, não combina com minha perspectiva de anarquia).

Importante seguir - no despertar da imaginação acorrentada, liberando dos territórios acorrentados toda a revolta contra as terríveis opressões desse século, mas sem incorrer em capturas congeladoras da criticidade, do único e da multiplicidade.

Sem incorrer em bloqueios e métodos oficiais milagrosos. 

La revuelta y solamente la revuelta es creadora de la luz, y esta luz no puede tomar sino tres caminos: la poesía, la libertad o el amor.

André Bretón

Isso dito, no embalo dessa revolta, para com as prisões (!) e suas ressonâncias (!!!), me destino a uma iniciativa artística, do periódico Zarabatanas do TaCAP (Tamoios Coletivos de Assessoria Popular), em que o primeiro tema foi coordenado pelo abolicionista Fernando Henrique Cardoso: a greve prisional de 09 de setembro nos EUA, montando um mosaico com desenhos, frases, poesias, produções livres dos interessados.

Sobre a greve, Fernando Henrique Cardoso traduziu com Aline Passos o escrito: "Este é um chamado à ação contra a escravidão na América", disponível aqui: http://emporiododireito.com.br/este-e-um-chamado-a-acao-contra-a-escravidao-na-america-traducao-de-aline-passos-e-fernando-henrique-cardoso/ - embora pouco ou nada se divulgue na grande mídia, grupos anarquistas, antiprisionais e uma diversidade de interessados se esforçam para difundir acontecimentos, e mesmo acompanhar o que efetivamente se passa, compartilhando informações.

Replico abaixo o que enviei para compor o mosaico imediatamente após o convite (bem como sugiro a todos que tentem acompanhar o que se passa):

Extremadamente sublime o que floresce nesse instante nos EUA: ruptura incendiária para com as margens e regras do jogo instituído, sem condicionamentos regidos pela complacência e tranquilidade pregadas por uma razão de Estado (com seus acovardados e obedientes servos).

Paralelamente ao evidenciamento do esgotamento inventivo das esquerdas partidárias no Brasil (demasiado complacentes e submissas ao poder),  o ensaio vívido de um abolir no país com o maior número de presos do mundo, oxigenando greves e resistências ameaçadoras ao jogo sedimentado, se torna mais do que curioso: engendra e ativa toda uma inventividade para o presente, atualizando a própria concepção da imortalidade do poder, desvelada, permutada pela noção de morte (mortalidade desse poder), uma morte associada à vida livre (não metafísica, retórica ou no plano dos direitos e liberdades de papel dos Estados, mas nas concretudes e experimentações tensionadas, sentidas e potencializadas do presente).

Com suas lágrimas, suspiros, paixões, sonhos!, dores e prazeres, e sem abrir mão da luta, cada intransigente encarcerado-torturado reúne forças e esbanja movimentações imprevisíveis, não capturadas numa teia de participações ludibriosas costuradas à economia de fluxos do jogo instituído: um jogo em que a tortura de seres humanos é prática rotineira, institucionalizada e normal, legitimada pela razão de Estado.

O que ocorre nos EUA será minimizado, ridicularizado e distorcido a partir dos referenciais cristalizados obedientes à eternização das culturas repressivas.

Já aos que optam pela compreensão da mortalidade do poder (e suas urgências), penso tratar-se de uma potência de vidas lutando contra os poderes que lhes trituram.

De que lado estou? É claro que estou pela mortalidade do poder. 


Notas e Referências:

BRETON, André. Manifiestos del Surrealismo. Traducción, prólogo y notas de Aldo Pellegrini. Buenos Aires: Editorial Argonauta, 2012.

CARDOSO, Fernando Henrique; PASSOS, Aline (tradução). Este é um chamado à ação contra a escravidão na América. Empório do Direito, 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/este-e-um-chamado-a-acao-contra-a-escravidao-na-america-traducao-de-aline-passos-e-fernando-henrique-cardoso/>ISSN 2446-7405. Acesso em: 13/10/2016.

COELHO, Augusto Plínio (selección, presentación y notas). Surrealismo y Anarquismo: 'proclamas surrealistas' en Le Libertaire. Buenos Aires: Utopia Libertaria, 2005.

CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. A castração da imaginação e os Etapismos de um Amanhã prolongado, eternizado, que nunca vem: imaginação capturada e ativadora de novas-velhas capturas. Empório do Direito, 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/a-castracao-da-imaginacao/>ISSN 2446-7405. Acesso em: 13/10/2016.

PIRES, Guilherme Moreira. Senso comum democrático: ensaio abolicionista contra a pureza do poder (parte 2).

Empório do Direito, 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/senso-comum-democratico-ensaio-abolicionista-contra-a-pureza-do-poder-parte-2-por-guilherme-moreira-pires/>. Acesso em: 13/10/2016.

WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boietux, 2004.


 

Imagem Ilustrativa do Post: [ M ] René Magritte - Le faux miroir (The false mirror) (1935) // Foto de: cea + // Sem alterações

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