Guarda compartilhada: direitos e deveres decorrentes da obrigação alimentar

27/02/2017

Por Fernando Salzer e Silva – 27/02/2017

Área do direito que passou por grandes transformações nos últimos anos, sociais, legais e jurisprudenciais, sem dúvida, foi o direito de família, especificamente no que tange aos direitos e obrigações derivados das relações de parentesco. Entre os fatores condutores de tais mudanças podemos citar, exemplificativamente, a inserção da mulher no mercado de trabalho, a existência de uma geração de pais mais participativos e conscientes de seu papel na vida dos filhos, os movimentos sociais em defesa do empoderamento feminino, da igualdade de gêneros, o reconhecimento pelo Judiciário dos direitos dos casais homoafetivos (união civil, adoção, etc), da multiparentalidade e, no campo legal, a guarda compartilhada passando de exceção à regra em nosso ordenamento.

Ante as referidas transformações, as relações de parentesco, notadamente os direitos e deveres derivados do vínculo jurídico de filiação, seja esta biológica ou socioafetiva, não podem mais ser analisados sob o prisma das funções e papéis que historicamente eram carreados, de forma bem definida e delineada, a pai e mãe em tempos passados, uma vez que a organização social atual exige o fim das rígidas divisões de papéis antes definidas pelo gênero dos pais[1]. Atualmente tais relações têm que ser aferidas a partir da ótica da igualdade absoluta de direitos e deveres entre os pais[2], sem qualquer distinção, privilégio ou discriminação por sexo ou opção sexual[3], uma vez que o núcleo familiar nos dias atuais pode ser composto por pai e mãe, dois pais, duas mães, duas mães e um pai, dois pais e uma mãe e por aí vai.

Entre os direitos e deveres derivados do vínculo jurídico de filiação, biológica ou socioafetiva, uma questão que merece ser analisada com todo o cuidado, sob a nova ótica, é a referente à obrigação alimentar dos pais em relação aos filhos, a popularmente conhecida pensão alimentícia.

A obrigação alimentar para com os filhos menores e maiores incapazes[4], verdadeiro dever familiar, incondicional, previsto constitucionalmente[5], é carreada a todos os pais[6], sendo que todos, conjuntamente, deverão contribuir, em pecúnia ou na forma de hospedagem e sustento[7], na proporção de seus recursos[8], a fim de prover, sempre que possível, as necessidades dos filhos[9], assegurando a estes os recursos e meios que assegurem sua subsistência, saúde, educação, segurança, vestuário e lazer, da forma mais compatível possível com a condição social experimentada por sua família[10], permitindo seu sadio e pleno desenvolvimento físico, psíquico e mental.

Ao fixar a verba alimentar, encargo conjunto de todos os pais em favor dos filhos, o Judiciário, para chegar ao quantum mensal devido, deverá aferir o seguinte quadrinômio: necessidade do alimentando, proporcionalidade, razoabilidade e possibilidade dos alimentantes, sempre tendo em mente que o montante mensal nunca poderá ser superior às reais necessidades dos filhos, sob pena de servir de fomento ao ócio,  desestimular os estudos e a formação profissional e gerar o enriquecimento sem causa dos alimentandos.

Importante ressaltar que as necessidades que devem ser levadas em conta no arbitramento dos alimentos são exclusivamente a dos filhos, não podendo ser considerada em tal aferição as carências de terceiros, quem quer que seja, pois, a obrigação alimentar é direito personalíssimo, destinando-se os alimentos a suprir unicamente as necessidades vitais dos filhos[11]. Comprovação cabal de tal assertiva é o fato de que a morte do alimentando implica na extinção da obrigação alimentar e de eventuais créditos ainda não satisfeitos[12]. Além disso, se a verba alimentar não pode fomentar o ócio e gerar o enriquecimento ilícito do alimentando, muito menos poderá gerar tais resultados em relação a terceiros.

Assim, o primeiro passo para apuração do valor dos alimentos é perquirir quais são as reais necessidades do alimentando, pois apesar destas serem presumidas, indispensável se faz que as mesmas sejam quantificadas[13], permitindo que o valor que atenda suas demandas seja aferido com a maior transparência, segurança e certeza possíveis[14].

Definido montante que se mostra suficiente para fazer frente à integralidade das necessidades do alimentando, a pesquisa é direcionada ao levantamento das reais possibilidades de todos os alimentantes envolvidos, do somatório das capacidades de todos os pais. Neste ponto, o novo Código de Processo Civil, prestigiando as normas legais que preveem que a contribuição para o sustento dos filhos é obrigação conjunta de todos os pais, buscando facilitar a tarefa dos Juízes no justo arbitramento dos alimentos, expressamente determina que nas ações de divórcio ou separação consensual deverá ser informado, via petição, o valor com que cada um dos pais contribuirá para criação e educação dos filhos[15]. Indiscutível se mostra que tal exigência também se faz presente nas ações cujo objeto seja a definição ou alteração da guarda dos filhos menores ou maiores incapazes.

Computadas e aferidas as reais necessidades dos alimentandos e as possibilidades dos alimentantes, faz-se o cotejo entre estas, com a aplicação dos critérios da proporcionalidade e razoabilidade, tendo sempre em mente os ideais de justiça, equidade, bom senso, prudência e moderação[16], da seguinte forma: a) se o somatório das possibilidades dos pais se mostrar capaz, sem sacrifício excessivo que comprometa a própria subsistência destes[17], de suprir integralmente as necessidades dos filhos, os alimentos devem ser fixados no valor total das necessidades, sendo tal obrigação dividida entre os alimentantes, na proporção dos recursos de cada um; b) caso o produto das possibilidades dos pais não seja suficiente para suprir a integralidade das necessidades dos filhos, os alimentos deverão ser arbitrados em valor que, ao mesmo tempo, atenda a maior parcela possível de tais necessidades, ainda que às custas do sacrifício moderado dos pais, mas sem comprometer a subsistência destes, uma vez que o interesse dos menores deve sobrepor-se a qualquer outro[18].

Fixados os alimentos, sendo posteriormente detectada alteração que cause algum desiquilíbrio no justo arbitramento da verba alimentar, demonstrado que esta não retrata mais, por qualquer ângulo, a indispensável proporcionalidade e razoabilidade que deve haver entre as necessidades do alimentando e as possibilidades dos alimentantes, deverá o interessado se dirigir ao Judiciário, a fim de buscar a redução ou majoração da verba alimentar antes arbitrada[19].

Visto os objetivos, critérios e cautelas a serem sopesados na definição da verba alimentar, cabe agora analisar os direitos e deveres outorgados aos pais, decorrentes da obrigação alimentar, no regime da guarda compartilhada.

A guarda compartilhada, regra atual em nosso ordenamento jurídico, quando constatado que todos os pais estão aptos a exercer o poder familiar, exceto quando um deles declarar que não deseja a guarda do filho[20], consiste na responsabilização conjunta de todos os pais, exercendo estes, concomitantemente[21], todos os direitos e deveres inerentes ao poder familiar[22] em relação aos filhos comuns, participando efetivamente da educação e formação destes, possibilitando aos filhos usufruir do ideal psicológico de duplo referencial[23].  Em tal modalidade de guarda o tempo de convívio dos pais com os filhos deverá ser dividido de forma equilibrada[24], tendo os pais a custódia física conjunta dos menores, sempre almejando a satisfação da primazia dos interesses destes.

A obrigação alimentar, acarreta aos pais as seguinte obrigações e direitos: contribuir, concomitantemente e na proporção de seus recursos, para prover, na medida do possível, as necessidades dos filhos, bem como o múnus de administrar[25] e a prerrogativa fiscalizar o uso de tais valores arbitrados em favor destes, utilizando tal verba exclusivamente para fazer frente aos interesses dos filhos[26], assegurando-lhes sua subsistência, saúde, educação, etc, permitindo seu sadio e pleno desenvolvimento físico, psíquico e mental.

Na guarda unilateral tais direitos e deveres são usualmente cindidos, cabendo a cada um dos pais, exceto no que tange a obrigação de prestar os alimentos, que continua sendo conjunta,  funções distintas, pois quem detém a guarda fica com o múnus de administrar a utilização e destinação dos alimentos, sempre em benefício exclusivo dos interesses dos filhos, enquanto o não guardião fica com o encargo e a prerrogativa de fiscalizar e supervisionar os interesses dos filhos, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação destes[27].

Por outro lado, na guarda compartilhada, em regra, os mencionados deveres e obrigações são exercidos de forma concomitante, transparente e em plena igualdade de condições pelos pais, devendo todos contribuir na proporção de seus recursos, para prover, na medida do possível, as necessidades dos filhos, exercer a administração conjunta da verba alimentar, definindo e supervisionando qual a destinação dos alimentos que melhor atende aos interesses dos filhos, bem como fiscalizar a correta destinação dos alimentos em favor destes.

Atualmente existem meios tecnológicos que facilitam a transparente administração, supervisão e fiscalização conjunta do uso da verba alimentar, bastando, por exemplo, que os alimentos devidos em pecúnia sejam depositados em conta bancária, a qual todos os pais tenham acesso às movimentações ali realizadas (via bankline ou extrato) e que as despesas do menor, salvo impossibilidade justificada, sejam realizadas somente através de tal conta, por cartão de débito, pagamento ou transferência eletrônica.

Oportuno ressaltar que na guarda compartilhada, quando do arbitramento dos alimentos, não pode ser desconsiderado, uma vez que todos pais possuem a custódia física dos filhos, tendo estes pluralidade de domicílio[28], que os pais já contribuem prestando alimentos in natura, uma vez que quando estão em companhia dos filhos, fornecem a estes moradia, alimentação, higiene, etc. A prestação de tais alimentos in natura deverá ser levada em conta quando do arbitramento dos alimentos em pecúnia.

Desta maneira, sendo todos os deveres e obrigações derivados da obrigação alimentar exercidos de forma transparente, conjunta e em igualdade de condições na guarda compartilhada, havendo divergência[29] ou colisão de interesses[30] em relação a questões relativas a destinação da verba alimentar ou sendo detectado que um dos pais abusou de sua autoridade, malversando ou se apropriando dos valores destinados aos filhos[31], o interessado deverá imediatamente recorrer à autoridade judiciária competente[32], para que a divergência seja solucionada e tomadas as medidas que melhor atendam aos interesses, a segurança e os haveres dos filhos.

É certo que em alguns casos pontuais o Judiciário pode determinar que alguns destes direitos e obrigações sejam exercidos de maneira diversa da acima exposta[33], mas nestes casos tal decisão deverá conter a indispensável fundamentação válida[34], sob pena de nulidade[35]. Um exemplo de tal situação seria quando nos autos fosse comprovado que um dos pais, mesmo apto a exercer a maior parte das atribuições decorrentes do poder familiar, seja pródigo. Neste caso, a guarda compartilhada não ficaria inviabilizada, mas tal pessoa ficaria alijada da administração dos alimentos, mantendo, porém, a prerrogativa de fiscalizar e supervisionar os interesses dos filhos e de prestar sua contribuição para o sustento destes.

Destarte, concluísse que na guarda compartilhada a obrigação alimentar, obrigatoriamente, sob pena de na verdade se tratar de guarda unilateral travestida de compartilhada, deverá, normalmente, estar calcada na absoluta transparência e na igualdade de direitos e deveres dos pais, respeitada a proporção dos recursos de cada um, não podendo haver desequilíbrio em tal relação que permita, ainda que por mera conjectura, concluir que houve prevalência de direito de qualquer outra pessoa que não seja o filho, pois todas as questões que envolvem menores ou maiores incapazes, devem prestigiar sempre e primordialmente os interesses destes.


Notas e Referências:

[1] “A guarda compartilhada busca a plena proteção do melhor interesse dos filhos, pois reflete, com muito mais acuidade, a realidade da organização social atual que caminha para o fim das rígidas divisões de papéis sociais definidas pelo gênero dos pais.” (STJ. REsp 1125100/MG).

[2] Constituição. Art. 5º, I.

[3] Constituição. Art. 3º, IV.

[4] Código Civil. Art. 1.590.

[5] Constituição Art. 227 e art. 229.

[6] Lei nº 8.069/1990. Art. 22.

[7] Código Civil. Art. 1.701.

[8] Código Civil. Art. 1.703.

[9] Código Civil. Art. 1.694, §1º.

[10] Código Civil. Art. 1.694.

[11] “O direito aos alimentos é personalíssimo, pois tem como objetivo suprir as necessidades vitais de quem não consegue prove-las com seus próprios meios.” (TJMG. Apelação Cível 1.0069.000234-5/001)

[12] “Os alimentos constituem direito personalíssimo e destinam-se à subsistência do beneficiário, estando diretamente ligados às características pessoais do credor e do devedor, sem cunho patrimonial. Assim, a morte do alimentado implica a extinção da obrigação alimentar e de eventuais créditos ainda não satisfeitos. (TJSC. Apelação Cível 2014.092772-3)

[13] “A presunção de existência de despesas de subsistência dos menores não retira seu dever probatório de pormenorizar a extensão de seus gastos.” (TJMG. Apelação Cível nº 1.0382.13.007074-3/001)

[14] “Malgrado gozem os menores imersos no poder familiar de presunção relativa quanto às suas necessidades, indispensável que as mesmas sejam quantificadas, com o escopo de se aferir com mais segurança o valor que atenda às suas demandas.” (TJMG. Apelação Cível nº 1.0433.11.032812-0/001).

[15] Código Processo Civil. Art. 731, IV.

[16] “Na análise da necessidade-possibilidade na prestação de alimentos, deve-se respeitar a proporcionalidade, que se consubstancia em um norte axiológico que emana das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência e moderação.” (TJMG. Agravo de Instrumento 1.0245.14.013986-7/001).

[17] “A fixação da pensão alimentícia não pode impor ao genitor sacrifício excessivo de forma a comprometer sua própria subsistência.” (TJMG. Apelação Cível .0024.11.057959-6/001).

[18] “Constitui verdadeiro dever familiar dos pais, incondicional, previsto constitucionalmente, prover o sustento e educação dos filhos. O interesse do menor deve sobrepor-se a qualquer outro. Se há de existir sacrifício de alguém, que não seja do filho menor.” (TJMG. 1.0105.03.089848-7/001).

[19] Código Civil. Art. 1.699.

[20] Código Civil. Art. 1.584, §2º.

[21] Código Civil. Art. 1.583, §1º.

[22] Lei nº 8.069/1990. Art. 21.

[23] “A guarda compartilhada é o ideal a ser buscado no exercício do Poder Familiar entre pais separados, mesmo que demandem deles reestruturações, concessões e adequações diversas, para que seus filhos possam usufruir, durante sua formação, do ideal psicológico de duplo referencial” (STJ. REsp 1125100/MG).

[24] Código Civil. Art. 1.583, §2º.

[25] Código Civil. Art. 1.634, VII e art. 1.690.

[26] “O Código Civil, apesar de outorgar aos pais amplos poderes de administração sobre os bens dos filhos, não autoriza a realização de atos que extrapolem a simples gerência e conservação do patrimônio do representado.” (STJ. AgRg no Ag 1.065.953/SP. Órgão Julgador: Terceira Turma. Relator: Ministro Sidnei Beneti. Data da Publicação/Fonte: DJe 28/10/2008).

[27] Código Civil. Art. 1.583, §5º.

[28] SILVA, Fernando. Guarda compartilhada – A questão da fixação do domicílio dos filhos. http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI253966,21048-Guarda+compartilhada+A+questao+da+fixacao+do+domicilio+dos+filhos

[29] Código Civil. Art. 1.690, Parágrafo único.

[30] Código Civil. Art. 1.692.

[31] Código Civil. Art. 1.637.

[32] Lei nº 8.069/1990. Art. 21.

[33] Código Civil. Art. 1.586.

[34] Código de Processo Civil. Art. 489, §1o e incisos.

[35] Constituição Federal. Art. 93, IX.


fernando-salzer-e-silva. . Fernando Salzer e Silva é Advogado e Procurador do Estado de Minas Gerais. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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