Grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e Prisões: Política criminal e eleições: olhares sobre a questão criminal na corrida presidencial de 2018

06/10/2018

Este ensaio é um produto parcial do Observatório das Eleições para Presidente da República - 2018: uma leitura sobre perspectivas de política criminal. O observatório é construído pelas(os) pesquisadoras(es) Ana Luisa Leão de Aquino Barreto, Bruna Portella, Daniel Fernandes, Isadora Lins, Juliana de Athayde, Lucas Matos, Marcelo Coelho Oliveira, Txapuã Magalhães e Vinícius Romão, integrantes do Grupo Clandestino de Estudos em Controle, Cidade e Prisões.
A pesquisa, ainda em curso, tem acompanhado, ao longo do pleito de 2018, o discurso de candidatas(os) à Presidência da República escolhidas(os) a partir de critérios de representatividade ideológica e partidária, bem como considerando os critérios para participação em debates, contemplando as(os) seguintes candidatas(os): 1. Álvaro Dias (Podemos); 2. Cabo Daciolo (Patriotas); 3. Ciro Gomes (PDT); 4. Geraldo Alckmin (PSDB); 5. Guilherme Boulos (PSOL); 6. Henrique Meirelles (PMDB); 7. Jair Bolsonaro (PSL); 8. Luís Inácio Lula da Silva, e, posteriormente, Fernando Haddad (PT); 9. Marina Silva (Rede).
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A crise, na política, é o momento das possibilidades e disputas pelos caminhos do futuro. Observar como a política criminal tem sido mobilizada por cada campo político no processo eleitoral é uma tarefa que se inscreve de forma decisiva nas reflexões sobre os rumos da democracia no Brasil. Em outras palavras, a caótica conjuntura brasileira escancarou a centralidade da questão criminal para a luta política pela democratização do país.
A ruptura institucional, provocada pelo golpe de Estado de 2016, radicalizou um cenário de indefinição e polarização sócio-política no país, desenhando um quadro de inflexões nos discursos sobre conflitos sociais, direitos humanos e democracia. A articulação entre o choque ultraliberal nas relações econômicas e o reacionarismo nas dinâmicas da vida social e cultural constitui o sentido geral do golpe antidemocrático em curso, num contexto que anuncia o esgarçamento conservador do pacto político e social que fundou a Nova República.
Privilegiando o olhar sobre a questão criminal, o sentido de retrocesso na conjuntura remonta ao movimento de militarização da cena pública do país. Membros da alta patente das Forças Armadas voltam a assumir protagonismo no debate político nacional, manifestando-se sobre temas diversos – muitas vezes em tom ameaçador. A intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro é um marco decisivo nesse processo, em que temas como “violência urbana”, “crime organizado” e “combate à corrupção” foram crescentemente mobilizados pelas forças políticas, assumindo centralidade do debate público brasileiro.
O que parece ocorrer é a radicalização de um processo característico da política brasileira nos últimos trinta anos. A criminalização de condutas, o controle social de tipo policial e a punição têm sido transformadas em valiosas mercadorias políticas. A mobilização estratégica do discurso da “segurança” e da “ordem” pelas forças conservadoras encontrou seu mais recente ápice na candidatura de Jair Bolsonaro (PSL). O autoritarismo violento da campanha do capitão da reserva do Exército transforma o debate sobre segurança pública em ponte para discursos de contornos fascistas, recebidos com certa perplexidade pelo campo progressista.
O problema é que o discurso de Bolsonaro é a cristalização da perspectiva punitivista gestada no seio na democracia brasileira após 1988. A questão criminal – que pode ser entendida como uma constelação de problemas em torno do crime, processos de criminalização, sistemas policiais e justiça – é um nó do processo de democratização brasileiro e uma das grandes contradições do pacto social desenhado neste período.
O poder punitivo foi constantemente acionado como protagonista da barbárie social e política da nossa democracia. Mecanismos de controle penal foram ampliados e intensificados, em um processo de progressiva policização da vida social. A esquerda partidária e institucional não conseguiu escapar, em muitas situações, do consenso fabricado que erigiu o controle punitivo como receita simples para o enfrentamento da conflitividade social – desembocando no encarceramento massivo, profundamente seletivo, e o genocídio em ato do povo negro.
Uma das grandes ambivalências do governo de conciliação de classes que conduziu o ciclo petista foi justamente o campo da política criminal. Ao mesmo tempo em que a retórica dos “direitos humanos” era mobilizada pelo discurso institucional, a política criminal não escapou das armadilhas do autoritarismo punitivista. Nesse contexto, insere-se o apoio efusivo à militarização de territórios populares em cidades brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro, e o reforço do modelo de política de drogas bélico e proibicionista, que legitima o encarceramento e as políticas de morte.

Política criminal: o eixo orientador das campanhas
A campanha de Jair Bolsonaro centralizou de modo decisivo os rumos do debate sobre a questão criminal no primeiro turno, afetando a abordagem do tema pelas demais candidaturas. A campanha eleitoral do candidato da extrema direita apresenta o punitivismo e o moralismo como tônicas discursivas populistas imiscuídas em diversos temas. Assuntos diversos, como a desigualdade salarial entre homens e mulheres e o investimento no ensino básico, acabam canalizados pelo candidato para a questão da segurança pública.
O discurso de Bolsonaro coloca as outras candidaturas de direita em uma posição ambivalente. A afirmação reiterada de Álvaro Dias (Podemos) “não é com violência, à bala, a facadas que vamos resolver nossos problemas” ilustra a estratégia política de candidaturas conservadoras que, sem abrir mão da retórica punitiva, buscaram se vender como o equilíbrio entre os “extremos”.
Mas é a candidatura de Geraldo Alckmin (PSDB) que mais se esforçou nesse sentido. A segurança pública é um dos eixos centrais do cotidiano da campanha do tucano. O discurso parte de um autoelogio, que coloca seu governo como responsável direto pela redução de homicídios em São Paulo nos últimos anos, a partir da exaltação da política encarceradora, uma vez que o Estado possui a maior população prisional do país. Ao mesmo tempo, o ex-governador paulista tenta se situar em um terreno pretensamente “civilizado” e racional, se posicionando reiteradamente contra o armamento generalizado da população e reafirmando que nem tudo se resolve com violência.
O autoritarismo das propostas sobre política criminal do campo conservador não se restringe ao conteúdo punitivo. As campanhas assumem uma postura autorreferenciada e não demonstram pretensão de dialogar com concepções produzidas pela sociedade civil organizada e pelo discurso acadêmico. Há um profundo enraizamento em estereótipos e preconceitos, com forte tentativa de desmoralização da crítica e dos dados produzidos pela pesquisa social.
Neste aspecto, o caso de Bolsonaro é particularmente grave. Não apenas o candidato manifesta explicitamente seu desprezo pelos direitos humanos – e, essencialmente, por qualquer postura política que não faça coro à sua visão sombria para o futuro do país – como mesmo ao pautar a segurança pública, seu principal tema de campanha, limita-se a chavões vagos que envolvem a militarização da segurança pública, a atuação violenta das polícias e o armamento da população civil. Não existem, no plano de governo ou no cotidiano da campanha, propostas bem delineadas sobre o tema. Como fica evidente nos debates e em suas propostas de governo, o candidato tampouco demonstra expertise no assunto; se a possui, guarda-a para si a sete chaves.
A pauta autoritária de Bolsonaro também mobiliza candidaturas de centro e de esquerda, sendo notável que, em tais candidaturas, a questão criminal, embora apareça, não é tratada como questão central, não havendo uma aposta na resposta penal como solução primordial para a luta contra as opressões de gênero, raça e sexualidade, mesmo que existam algumas propostas em favor da criminalização ou aumento da gravidade da resposta penal nestes casos.
A campanha do PT, por exemplo, embora fale em temas como a criminalização da LGBTIfobia, apresenta uma preocupação em articular as questões relativas às populações vulneráveis a outras políticas públicas – que não apenas a punição -, como campanhas no campo da saúde e da educação. O discurso petista também se caracteriza – em seu plano de governo, por exemplo – pela utilização de conceitos do campo criminal crítico, denunciando extermínio da juventude negra nas periferias ou afirmando “atual política de repressão às drogas é equivocada, injusta e ineficaz”. Por outro lado, aponta que é “premente alterar a política de drogas, para combater o que de fato é prioritário, o poder local armado despótico exercido sobre territórios e comunidades vulneráveis”. Ou seja, defende uma política de “combate” às drogas nos territórios populares: nada muito diferente do que se tem hoje, portanto. A campanha do PDT, por sua vez, menciona a criminalização como meio eficaz para ampliar a proteção dos grupos vulneráveis, apesar de também apresentar o enfoque principal em uma série de políticas sociais.
Ao contrário das campanhas de Marina Silva (REDE), Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT), a campanha de Guilherme Boulos (PSOL) se caracteriza pela centralidade da questão criminal. As propostas de governo apresentam uma densa interpretação crítica sobre temas como política de drogas, segurança pública, genocídio da população negra e violência contra a mulher. O texto se aproxima das construções de movimentos sociais e perspectivas teóricas críticas ao punitivismo. O plano procura marcar a diferença de concepção das outras candidaturas (inclusive progressistas), especialmente na proposição de um modelo de segurança pública que escape da colonização militar e bélica.
No entanto, na análise das discussões durante a campanha eleitoral, o candidato do PSOL adota um discurso mais genérico de “valorização da inteligência nas atividades policiais”, comum a várias candidaturas – inclusive as conservadoras. No mesmo sentido, a discussão sobre modelo policial e desmilitarização da segurança pública, central no texto das propostas, não apareceu nos debates, programas eleitorais e Facebook.
Destaque-se ainda que a corrupção e seu enfrentamento representam um dos pontos mais importantes e frequentes nos discursos dos candidatos. Os quatro anos de Operação Lava-jato mobilizaram um cenário de judicialização da política, com centralidade na dinâmica prático-discursiva de combate à corrupção. Isso se reflete no pleito eleitoral de 2018. A cruzada moral, que não saiu da pauta da mídia tradicional brasileira neste período, já havia delineado um discurso inquisitorial que pintou um heroísmo do “judiciário combatente” e a vanguarda dos Procuradores da República.
No âmbito da política criminal, o combate à corrupção disputa o protagonismo com o tema da violência urbana e segurança pública. A candidatura de Álvaro Dias é uma alegoria de todo este processo, se valendo do chavão de “tolerância zero” como norteador deste combate criminal à corrupção, cujo resultado seria a mola propulsora de todos os avanços sociais e econômicos do país.
Apesar das referências a medidas juridicamente viáveis nas propostas de governo, Dias acaba por assumir a estratégia de vale-tudo, revelando um baixo compromisso com as garantias fundamentais que norteiam o direito e o processo penal brasileiros. É assim que se apresenta como a voz no Congresso que instrumentalizou as propostas do Ministério Público Federal que ficaram conhecidas como as “10 medidas contra a corrupção”, almejando a posição de uma candidatura adequada aos anseios das mobilizações anticorrupção.
Similarmente, Jair Bolsonaro traz a corrupção como a grande causa dos problemas sociais enfrentados no Brasil. Em sua campanha, reiteradamente a relaciona à insuficiência orçamentária e ineficiência do Estado e apresenta como sua raiz a política de acordos entre partidos que envolve a indicação a cargos públicos. O tema é utilizado como oportunidade para o candidato se apresentar como moralmente superior aos demais e como o único capaz de promover as mudanças necessárias (sem jamais debruçar-se sobre os pormenores de quais seriam tais mudanças). Seu plano de governo é lacônico sobre o tema, basicamente propondo encaminhar as “10 medidas contra a corrupção” para aprovação no Congresso Nacional.
Ciro Gomes, Henrique Meirelles (MDB) e Marina Silva se reafirmam constantemente como “ficha limpa”, como se esta categoria fosse autoexplicativa, carregando um valor positivo sobre suas trajetórias. Geraldo Alckmin, por outro lado, mobiliza esse discurso numa estratégia defensiva, declarando apoio em abstrato à Lava-Jato. Dias, por sua vez, se destaca por se contrapor de forma frequente a Lula, reforçando a associação entre os estereótipos de “bandido” e “corrupto”.
Já a campanha de Lula/Haddad foi marcada pela centralidade de crítica à atuação da Lava-Jato, especificamente em relação à prisão do ex-presidente Lula. A indefinição sobre a participação do ex-presidente no processo eleitoral orientou os posicionamentos da campanha presidencial do PT até meados de setembro, quando o partido oficializou Fernando Haddad como candidato a presidente e passou, então, a ter como enfoque de sua apresentação como o “candidato de Lula”. Ao longo deste período, a questão criminal foi indiretamente mobilizada pela denúncia à injusta prisão de Lula, que desencadeou uma ferrenha crítica ao judiciário, tornando-se um eixo norteador da campanha do PT.
É notável, entretanto, que esta crítica parece se limitar ao caso específico de Lula, não sendo acompanhada de um diagnóstico mais amplo sobre o funcionamento do judiciário ou órgãos de controle de um modo geral. O funcionamento do sistema de justiça criminal ao longo dos governos petistas manteve, de um modo geral, uma tendência conservadora.
É possível notar que a ruptura institucional e a crise política, no Brasil, têm influenciado os discursos e projetos sobre a política criminal nas eleições presidenciais de 2018. A centralidade do discurso reacionário de extrema direita e as operações de combate à corrupção são elementos centrais nas propostas apresentadas. A ascensão de um projeto de extrema direita parece impor parâmetros a estes candidatos: a promessa de rigor no combate ao crime e à corrupção, passando por investimentos em inteligência policial e a facilitação do armamento da população.
Os retrocessos anunciados na política criminal, com redução de garantias processuais e endurecimento das formas punitivas, têm se mostrado como um capital político disputado pela maioria dos candidatos. Compreender esses movimentos, que deslegitimam a politização da questão criminal, parece ser um passo fundamental aos movimentos de resistência e contraposição ao autoritarismo.

Imagem Ilustrativa do Post: Blind Justice // Foto de: Stuart Seeger // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/stuseeger/10030881495

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