EM TEMPOS SOMBRIOS, O QUE TEMOS A APRENDER COM ARENDT E LESSING?

11/01/2019

                                               Hanna Arendt, ao receber o Prêmio Lessing da Cidade Livre de Hamburgo, proferiu um discurso que está incluído em seu livro “Homens em Tempos Sombrios”, obra que foi escrita “ao longo de um período de doze anos, no impulso do momento ou da oportunidade.”[1]

                                               Em suma, como ela própria deixa claro no prefácio, trata-se de uma “coletânea de ensaios e artigos referentes basicamente a pessoas – como viveram suas vidas, como se moveram no mundo e como foram afetadas pelo tempo histórico.”

                                               Ainda no prefácio, Arendt nos alenta com a afirmação de que “mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra. Olhos tão habituados às sombras, como os nossos, dificilmente conseguirão dizer se sua luz era de uma vela ou a de um sol resplandecente. Mas tal avaliação objetiva me parece uma questão de importância secundária que pode ser seguramente legada à posteridade.”

                                               Lembrando, então, Lessing – que emprestava o seu nome ao prêmio – Arendt dizia que o poeta e filósofo alemão do século XVIII “nunca se sentiu à vontade (e provavelmente nunca o quis) no mundo tal como então existia, e mesmo assim sempre se manteve comprometido com ele à sua própria maneira.

                                               A atitude de Lessing, “em relação ao mundo, não era positiva nem negativa, mas radicalmente crítica e, quanto ao âmbito público de sua época, totalmente revolucionária.” Esta sua “têmpera revolucionária” provocou, ao longo de sua vida, “muitos mal-entendidos”, o que o levou a não ter “maior crédito na Alemanha, país onde a verdadeira natureza crítica é menos entendida do que em qualquer outro lugar.”

                                               Lessing - “mestre de todo o polemismo em língua alemã”, como adjetivou Arendt - certamente por isso, “nunca se reconciliou com o mundo em que viveu.” Ele se comprazia “em desafiar preconceitos e contar a verdade aos apaniguados da corte” e, “por mais caro que pagasse por esses prazeres, eram literalmente prazeres.

                                               Certa vez, a este respeito, ele disse “que todas as paixões, mesmo as mais desagradáveis, são, como paixões, agradáveis, pois nos tornam mais conscientes de nossa existência, fazem-nos sentir mais reais.

                                               Duas questões representavam preocupações para Lessing: uma delas era a liberdade, “muito mais ameaçada por aqueles que pretendiam  ´obrigar à fé por demonstrações` do que por aqueles que viam a fé como um presente da graça divina.” Uma outra dele preocupação era o próprio mundo, “onde achava que deveriam caber, em lugares separados, tanto a religião como a filosofia, de modo que, após a ´partilha`, cada uma possa seguir seu próprio caminho, sem atrapalhar a outra.” Disse ele certa vez:

                                               “Não tenho obrigação de resolver as dificuldades que crio. Talvez minhas ideias sejam sempre um tanto díspares, ou até pareçam se contradizer entre si, basta que sejam ideias onde os leitores encontrem material que os incite apenas por eles mesmos.

                                               Para Lessing, o pensamento não era algo que brotava do homem ou da mulher, tampouco era a manifestação “de um eu.” Ao contrário, “o indivíduo escolhe tal pensamento porque descobre no pensar um outro modo de se mover em liberdade no mundo.”

                                               Arendt tratou, então, daquela que ela considerava, “historicamente, a mais antiga e também a mais elementar” das liberdades: a liberdade de movimento, a que nos permite “partir para onde quisermos”, razão pela qual “a limitação da liberdade de movimento, desde tempos imemoriais, tem sido a pré-condição da escravização.” Quando se perde esta liberdade, nós nos recolhemos para a nossa “liberdade de pensamento”, esta sempre inviolável.[2] É como se fora uma retirada para o estoicismo, “uma fuga do mundo para o eu que, espera-se, será capaz de se manter em soberana independência em relação ao mundo exterior.”

                                               Lessing não era daqueles que pretendiam estabelecer, com o seu pensamento, conclusões definitvas, “mas estimular outras pessoas ao pensamento independente, e isso sem nenhum outro propósito senão o de suscitar um discurso entre pensadores.” O seu pensamento, portanto, não era “o diálogo silencioso (platônico) entre mim e mim mesmo, mas um diálogo antecipado com outros, e é essa a razão de ser essencialmente polêmico”, sobretudo porque “o que estava errado, e que nenhum diálogo nem pensamento independente jamais poderia resolver, era o mundo.”

                                                Quando o homem, afirma Arendt, “se abstém de pensar e deposita sua confiança em velhas ou mesmo novas verdades – lançando-as como se fossem moedas com que se avaliassem todas as experiências -, a própria humanidade do homem perde sua vitalidade”, tornando-se um “mundo inumano, inóspito para as necessidades humanas.

                                               Para ela, e muito a propósito de nosso País, “a história conheceu muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à política além de que mostre a devida consideração pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal.”

                                               Mas, paradoxalmente, em tempos como estes – sombrios! – é comum a fraternidade se manifestar mais plenamente, como um aspecto mesmo da humanidade: “esse tipo de humanidade (que se realiza via fraternidade) realmente se torna inevitável quando os tempos se tornam tão extremadamente sombrios para certos grupos de pessoas que não mais lhes cabe, à sua percepção ou à sua escolha, retirar-se do mundo”, diz ela.

                                               De uma tal maneira que “a humanidade sob a forma de fraternidade, de modo invariável, aparece historicamente entre povos perseguidos e grupos escravizados”, entre os párias, enfim. Aliás, possivelmente é uma das únicas vantagens “que os párias deste mundo, sempre e em todas as circunstâncias, podem ter sobre os outros.” 

                                               Ocorre algo “como se, sob a pressão da perseguição, os perseguidos tivessem se aproximado tanto entre si que o espaço intermediário que chamamos mundo simplesmente desaparecesse”, passando a “nutrir uma generosidade e uma pura bondade de que os seres humanos, de outra forma, dificilmente seriam capazes”, sendo também “fonte de uma vitalidade e alegria pelo simples fato de estarem vivos, antes sugerindo que a vida só se realiza plenamente entre os que, em termos mundanos, são os insultados e injuriados.”

                                              Em seguida, Arendt trata da compaixão “como parte inseparável e inequívoca da história das revoluções europeias”, desde a Revolução Francesa. Para ela, trata-se a compaixão, “inquestionavelmente, de um afeto material natural que toca, de forma involuntária, qualquer pessoa normal, à vista do sofrimento, por mais estranho que possa ser o sofredor, e portanto poderia ser considerada como base ideal para um sentimento que, ao atingir toda a humanidade, estabeleceria uma sociedade onde os homens realmente poderiam se tornar irmãos.”

                                               Então, Arendt compara – a partir da antiguidade até os tempos modernos – a compaixão com o medo, ambos como algo “totalmente natural.” Talvez por isso, já “Aristóteles tratava a compaixão e o medo juntos.”

                                                E qual seria a antítese da compaixão?

                                               A crueldade, responde Arendt (e não a inveja, “o pior vício na esfera da humanidade”), que não deixa de ser, assim como a compaixão, “um afeto, pois é uma perversão, um sentimento de prazer ali onde naturalmente se sentiria dor.” 

                                               Arendt, a filósofa alemã de origem judaica, trata depois do que ela chama de “emigração interna”, fenômeno (“curiosamente ambíguo”) que ela identificou muito claramente na Alemanha nazista (onde se viveu “o mais sombrio dos tempos”), consistente no fato de “haver pessoas dentro da Alemanha que se comportavam como se não mais pertencessem ao país, que se sentiam como emigrantes.” Mas, por outro lado (daí a ambiguidade referida pela autora), “indicava que não haviam realmente emigrado, mas se retirado para um âmbito interior, na invisibilidade do pensar e do sentir.”

                                               A emigração interna dá-se justamente em face de que, dada “uma realidade aparentemente insuportável”, o homem “desvia-se do mundo e de seu espaço público para uma vida interior, ou ainda simplesmente ignora aquele mundo em favor de um mundo imaginário, ´como deveria ser` ou como alguma vez fora.”

                                               Trata-se, sem dúvidas, de uma fuga do mundo, justificável apenas “na medida em que não se ignore a realidade.” Neste caso, “a força pessoal dos fugitivos cresce à medida que crescem a perseguição e o perigo.” 

                                               Quase ao final do texto, Arendt debruça-se sobre o tema da amizade, lembrando que já “os antigos consideravam os amigos indispensáveis à vida humana, e na verdade uma vida sem amigos não era realmente digna de ser vivida[3], inclusive “para partilhar sua alegria” e não apenas os “momentos de infortúnio.

                                               Assim, nada obstante aquela “máxima segundo a qual é apenas no infortúnio que descobrimos os verdadeiros amigos”, o mais certo é que os “nossos verdadeiros amigos são em geral as pessoas a quem revelamos sem hesitar nossa felicidade e de quem esperamos que compartilhem de nosso regozijo.”

                                               Enfim, chega-se ao tema da verdade, inicialmente fazendo uma diferença entre os que acreditam possuir a verdade e os que estão seguros de estarem certos.[4] Assim, no tempo de Lessing (meados do século XVIII), a verdade “era uma questão filosófica e religiosa, ao passo que nosso problema de estarmos certos surge no interior da ciência e é sempre decidido por um modo de pensamento orientado para a ciência.”

                                               Arendt lembra que Lessing “tinha opiniões altamente pouco ortodoxas a respeito da verdade”; por exemplo, “recusava-se a aceitar quaisquer verdades, mesmo as presumivelmente enviadas pela Providência, e nunca se sentiu compelido pela verdade, fosse ela imposta pelos processos de raciocínio seus ou de outras pessoas.” Contentava-se ele com o “número infinito de opiniões que surgem quando os homens discutem os assuntos deste mundo.”

                                               Alegrava-o também o fato de que a verdade, “tão logo enunciada, imediatamente se transformava numa opinião entre muitas outras, era contestada, reformulada, reduzida a um tema de discurso entre outros.”

                                               Para ele não poderia “existir uma verdade única no mundo humano”, razão pela qual – e isso também o contentava –, “enquanto os homens existirem, o discurso interminável entre eles nunca cessará.” Do contrário, se, efetivamente, existisse “uma única verdade absoluta, se pudesse existir, seria a morte de todas aquelas discussões”, seria então “o fim da humanidade”...

                                               Lessing, “polêmico a ponto de brigar”, no entanto, “nunca realmente ansiou por brigar com alguém com quem estivesse discutindo”, pois o que lhe interessava era “humanizar o mundo com o discurso incessante e contínuo sobre seus assuntos e as coisas que nele se encontravam.” E, como ele era “uma pessoa totalmente política, insistia que a verdade só pode existir onde é humanizada pelo discurso, onde cada homem diz, não o que acaba de lhe ocorrer naquele momento, mas o que ´acha que é verdade.`

                                  

                                               Por fim, como uma lição para nós brasileiros que, de certa maneira, vivemos em tempos sombrios, é necessário que nos aproximemos entre nós, como numa fraternidade, e busquemos “no calor da intimidade o substituto para aquela luz e iluminação que só podem ser oferecidas pelo âmbito público.

 

                                               Recomendo muito a leitura desse livro.

                                              

Notas e Referências                                                

[1] São Paulo: Editora Schwarcz, 2010.

[2] Aqui lembrei de George Steiner, para quem “o pensamento é ilimitado”, que “podemos pensar sobre tudo e qualquer coisa” e de que “aquilo que fica fora ou para além do pensamento é rigorosamente impensável” – “esta possibilidade situa-se fora da existência humana.” Para ele, “a infinitude do pensamento é um marcador crucial da eminência humana”, pois “possibilita o domínio do homem sobre a natureza e, dentro de certas limitações, tais como a enfermidade e o sofrimento mental, sobre o seu próprio ser. Ele apoia a liberdade radical do suicídio, de interromper voluntariamente, e no momento escolhido, o pensamento.” Logo, “a infinitude do pensamento é também uma ´infinitude incompleta`.” Daí uma contradição insuperável: “Nunca saberemos até onde o pensamento pode ir no que diz respeito à soma da realidade. Não sabemos se aquilo que nos parece sem limite não é, na realidade, absurdamente estreito e irrelevante. Quem nos poderá dizer se a grande parte da nossa racionalidade, análise e percepção organizada não é constituída por ficções pueris?” (“Dez Razões – Possíveis - para a Tristeza do Pensamento”, Lisboa: Relógio D`Água Editores, 2015, páginas 15 e seguintes).

[3] Para os gregos, por exemplo, “a essência da amizade consistia no discurso, pois apenas o intercâmbio constante de conversas unia os cidadãos numa polis.” Eles chamavam “essa qualidade humana que se realiza no discurso da amizade de philanthopia, ´amor dos homens`, pois se manifesta numa presteza em partilhar o mundo com outros homens”, ao contrário da misantropia, onde o homem (o misantropo) “não encontra ninguém com quem trate de partilhar o mundo, não considera ninguém digno de se regozijar com ele no mundo, na natureza e no cosmo.

[4] Nada obstante a diferença entre estes dois pontos de vista, havia algo entre eles em comum: “os que assumem um ou outro geralmente não estão preparados, em caso de conflito, para sacrificar seu ponto de vista à humanidade ou à amizade.”

 

 

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