Dogmática jurídico-penal e tautologias sociopolíticas: “imaginário punitivo” X “imaginação não-punitiva” – Por Guilherme Moreira Pires

12/06/2015

Como diferenciar "imaginário punitivo" de "imaginação não-punitiva", sem incorrer em unidades fictícias desatreladas da realidade?

Há muitas formas de se explicar isso, entre elas, a imaginação não-punitiva enquanto resistência às categorias e referenciais regentes dos imaginários punitivos, com suas tautologias "sofisticadas" e demais construções retóricas do senso comum; logo, imaginação não-punitiva enquanto resistência aos discursos legitimantes do poder punitivo (e da punição propriamente).

Imaginação não-punitiva como oposição radical aos discursos legitimantes e saberes validadores (e ativa-dores) de sofrimento estéril, mas principalmente de um poder, cuja manifestação - brutal ou sutil, macro ou micro, incidência nua ou mediante simulacros gloriosos, nos tribunais ou nas favelas - permanece ensejando poderosas violências ante carcaças humanas, transformadas em - e reduzidas à condição de - alimento político-sacrificial, a ser consumido pelas operacionalidades regentes dominantes; sacrifícios para um sistema simbólico que tão-somente cria, recria e amplia o que jura combater; um sistema que não soluciona conflitos nem sobrepuja as emergências que profetiza (e que, consequentemente, constrói, sempre agravando problemas estruturais e institucionalizando violências, danos e dores.

Claro, não se trata de uma singularidade, mas de imaginários (punitivos), respeitando a complexidade. Imaginários, no entanto, que contemplam denominadores comuns, constantes simplórias atreladas aos referenciais eleitos, que vão repercutir no moldar das respectivas estruturas de pensamento, determinados ideários punitivos, sistemas e sub-sistemas dos conectados e imersos nisso (descrição que não significa compactuar com a validação da ideia de "sistemas").

Nunca é demais frisar que os abolicionismos nutrem uma peculiaridade confirmada em todas as suas formas e imagens, na medida em que buscam a destruição do próprio objeto de estudo; buscam transcender a linguagem punitiva, o imaginário punitivo, a cultura punitiva, e evidentemente o sistema penal, que é parte integrante disso tudo; almejam desvelar o Direito Penal, despi-lo de suas roupagens legitimantes e revelá-lo enquanto a técnica insanamente destrutiva, brutalizante e inócua que é (embora bem sucedida a depender do referencial); visam despi-lo de suas mentiras e incongruências para com os discursos,  operacionalidades, mecânicas, objetivos e promessas oficiais e declaradas, que reiteradamente molda e maneja, reciclando-se em sua legitimação ao longo da história.

Isso dito, em suas bases, o imaginário punitivo é relativamente estático, embora constantemente banhado e energizado, renovando-se com as novas formas, claro, do velho. Em alguma medida, trata-se de um conteúdo congelado, imerso em velhos paradigmas repintados com cores "novas"; e, de fato, comumente algum jurista aparece, enunciando ter criado uma nova cor, mas uma criação dentro da "caixinha", um pensar dentro da "caixinha", com as cartas do jogo, no jogo, e com as limitações do jogo, que constrói sua morada semântica em simplórios lindes lingüísticos; que constrói sua morada sacrificando, ejetando e mesmo não incorporando elementos que deveriam estar inclusos na análise; elementos que deveriam ser considerados e não são.

A imaginação não-punitiva não se trata de mera oposição estática a esse conteúdo enraizado, rasteiro e inerme em suas limitações, energizado e retroalimentado; imaginação não-punitiva é movimento, demanda construção, transcendência do (im)posto! É (re)pensar crítico, um capaz de fazê-lo para além da "caixinha", com elementos de fora, com novas cartas desde o referencial interno, essas, sim, passíveis de destruir o jogo, o objeto de estudo; capazes de sacudir e (re)formular as regras explícitas e implícitas, dilacerar sentidos arbitrários, edificar caminhos ao invés de muros e prisões; ao invés de danos, dores e sofrimentos.

"Para dar cuenta de una posible teoría de la 'no pena' es necesario volver la vista a aquellos autores que, a partir de los años ochenta del siglo XX y en el seno de la criminología crítica, aportaron originales ideas que fueron comúnmente denominadas como abolicionistas. Aunque ese nombre es tomado de la lucha histórica contra la esclavitud, primero, y contra la pena de muerte, luego; en aquellos años recibió tal denominación la más radical deslegitimación del sistema carcelario y de la propia lógica punitiva que se ha conocido en la historia de aquel y de ésta." (ANITUA, Gabriel Ignacio, 2012,  p. 01).

Como escrevi na descrição do grupo Abolicionismo Penal - América Latina em sua criação:

"Mais do que uma teoria, o abolicionismo constitui, na minha percepção, uma práxis existencial que reflete a rejeição dum background simbólico de categorias fundantes que apostam no controle do corpo e da mente, do tempo e do ser. Representa a rejeição de um sistema cuja mecânica de funcionamento é precisamente o não-funcionamento dos objetivos declarados e oficiais; seu sucesso é um fracasso e vice-versa, dependerá do referencial semântico. Os criminólogos críticos percebem que há algo errado; as colossais discrepâncias resultantes duma comparação entre os discursos legitimantes postos e a realidade operacional do "sistema" penal, especialmente na América Latina, são demasiado grosseiras, elas gritam... e cabe-nos ouvir esses gritos, (re)pensar as premissas e bases desse (des)controle, dessa irracionalidade institucionalizada e validada sob as vestes da técnica, da ciência, da razão. Os discursos legitimantes que nos (de)formam sempre se amoldaram cinicamente conforme o tempo e a situação. Cabe-nos desconstruí-los, desmistificá-los, destruí-los; a obliteração do sistema penal pressupõe, também, a obliteração das reentrantes mentiras e falácias que regem nossas vidas, circularmente (re)alimentadas por um imaginário punitivo repleto de elementos estruturais-estruturantes, que influem e mesmo regem um pensar engessado e brutalizante; um sofrimento nonsense."

Para transcender imaginários punitivos, sobre os quais tantos ventos foram depositados em seus fluxos, rumos e sentidos, mostra-se insuficiente a mera resistência estática; é dizer, mostra-se imprescindível a construção da oposição radical, que não está dada, cabendo-nos construí-la com inteligência e habilidade,  criticidade, indignação para com a complacência, mas, talvez, principalmente imaginação, evidentemente que não-punitiva, uma que não repita nossos erros enquanto humanidade.

"Quando usamos outra linguagem, ensinamos esta linguagem a outras pessoas. Nós as convidamos, de uma certa maneira, para também abolirem a justiça criminal." (HULSMAN, Louk, 2003, p. 213).

"Você foi roubado, condicionado, manipulado, argumentado, persuadido, trabalhado de todas as formas possíveis para que não pudesse chegar a você mesmo. Isso é o que a cultura chama de socialização. Nossa proposta é destrutiva, um modo de desaprender o aprendido de forma imposta, destruir o imposto em você, para dessa maneira ativar o espaço vazio para a sua criatividade. As descobertas são feitas por você, o que o torna um ser diferente, por pequenas e simples que essas descobertas sejam. Na realidade nenhuma chave pode ser entregue. Não existem chaves para abrir a porta, quando o que se pede é a própria porta." (WARAT, Luís Alberto, 2001, p. 18)

DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL E TAUTOLOGIAS SOCIOPOLÍTICAS.

Sistemas, construções e arquétipos tautológicos são aqueles que não apresentam saídas às mecânicas e enunciados eleitos pelo referencial interno. Grosso modo, não apresentam saídas verdadeiras à própria lógica interna e seus funcionamentos, (re)produzidos visceralmente e atrelados aos mecanismos de poder; assim, as possibilidades são sempre brutalmente limitadas pela lógica regente, que impede oposições radicais ao todo, tolerando, no máximo, reformistas com um pouco de liberdade, cujas reformas energizarão a legitimidade e mesmo perpetuação dos sistemas (im)postos. Não há muito espaço para a crítica radical, portanto. Não no interior dessa lógica totalizante, e não nas redes marginais que orbitam o todo; não nas zonas já engolidas e regidas por esse todo, totalizante e auto-expansivo que é, com suas categorias e funcionamentos colonizadores de linguagem, imaginário, espaço, tempo, discurso, poder.

Se, conforme Foucault, "onde há poder há resistência", cabe pontuar que  "as resistências" dentro do sistema penal e suas edificações jurídicas (inclusive sob as vestes da técnica, a exemplo do Direito Penal), constituem efêmeras chamas diante de labaredas, tendo em vista que colidem precisamente com todo um conjunto de mecânicas e operacionalidades poderosas; deparamo-nos com dilemas nesse espectro semântico, especialmente os que atuam concretamente enquanto opera-dores: advogados, defensores públicos, juízes, promotores, delegados etc., que atuam nos lindes de um jogo arbitrário, com as cartas disponíveis, sem grandes capacidades de sacudir  o jogo, de modificá-lo profundamente, de chacoalhá-lo, de destroçá-lo; caso busquem tal reformulação, serão afastados, atacados, excluídos, sacrificados, destruídos (todos os dias temos exemplos disso); rupturas radicais não são bem-vindas do referencial dessa descrição, isso bem sabemos...

Em alguma medida, trata-se de peculiaridade sistêmica a tendência da manutenção: é dizer, as mecânicas e funcionamentos de um sistema não buscam sua própria desconstrução, mas a auto-preservação, sendo essa a tendência sistêmica e mesmo semântica; não adianta esperar "pena para proteger" (o conteúdo protegido é outro, diverso do sustentado nos discursos criminológicos do cotidiano, amparados num senso comum criminológico), como não adianta esperar suicídio do poder; não adianta aguardar a superação da brutalizante linguagem empregada; transcender demais a linguagem e a crítica pode operar na desconstrução, o que, frise-se, não é a tendência do campo comunicativo sistêmico. (Sobre isso, escrevi no livro "Brasil em Crise", 2015).

Sistemicamente, as saídas são fechadas, não há saídas radicais.

Por outro lado, em contrariedade a esses sistemas, fora de seus referenciais e estruturas sequestradoras - que visam se energizar e se perpetuar (como tendência), engolir e apropriar-se de tudo -, muito é possível.

Daí a necessidade de construir o novo, promovendo fissuras a partir de múltiplas vias e formas; movimentar-se na construção da contagiante imaginação não-punitiva; dessa práxis libertária e existencial; dilacerando a técnica com a técnica, mas especialmente para além da técnica, destroçando sua pretensa neutralidade e legitimidade, dissecando seus discursos rasteiros justificadores de poderes insanamente destrutivos e inócuos para os fins declarados.

CRIME = CRIME. DOGMÁTICA, TAUTOLOGIA E LÓGICA CIRCULAR.

Simplificando o acordo semântico, tem-se a construção tautológica como aquela que não apresenta saídas à sua própria lógica interna, no caso mais "sofisticada" do que o pleonasmo: mais sutil, enquanto todos mostram-se ocupados analisando os pacotes forjados introduzidos e incorporados no jogo.

Desde a graduação, os estudantes de Direito apresentados ao Direito Penal ingressam o aprendizado de termos que manusearão, como tipicidade, ilicitude, culpabilidade e punibilidade, remetendo-se ao básico.

Discutem o que é cada pacote; o que está e o que não está em cada uma dessas aberrações; em cada uma dessa ficções retóricas. São confrontados com inúmeras divergências de configurações organizacionais de todos esses pacotes; são apresentados às divergências de pacotes e seus usos, chamados de teorias, correntes, modelos, paradigmas etc., sendo, no final, uma questão de configuração e adequação de um quebra-cabeças para com estruturas de pensamento, com seus elementos incorporados conceituados, distribuídos  explicados em observâncias às finalidades que apontam, em regra desvinculada do conteúdo sociopolítico, para dizer o mínimo dos reducionismos sustentados e defendidos com unhas e dentes pelos "dogmáticos", especialmente os que nutrem dificuldade em lidar com críticas "externas" ao jogo, os que, no fundo, comumente gostam do jogo, os que regozijam-se com o manuseio e participação do (e no) poder punitivo, manifestação do poder por excelência.

Estudam Teoria do Crime. "Aprendem", conforme cada configuração organizacional, dos requisitos indispensáveis à caracterização do arquétipo-crime às implicâncias de paradigmas filosóficos e efeitos na realidade, sempre dentro da "caixa", a partir da linguagem totalizante da "caixa", manuseando termos sobre os quais eles e seus mestres debatem, ignorantes do conteúdo sociopolítico correspondente, consideravelmente ignorantes dos complexos e destrutivos efeitos na realidade dos termos que manejam e estudam, não raro com ares de encanto, repetindo que "adoram Direito Penal". Uma técnica de destruição e sofrimento estéril, fábrica de deviants, inimigos e  emergências; fábrica de tortura (Sobre Fábrica de Tortura, leia aqui: http://emporiododireito.com.br/carcere-enquanto-fabrica-de-tortura-por-guilherme-moreira-pires/). Como adorar isso?

Comumente fascinados pelas discussões e raciocínios nesse mundinho engessado, negligenciam o que verdadeiramente estudam; legitimam e energizam os efeitos sociopolíticos que (re)produzem, sobretudo com ares de encanto, entorpecidos por toda essa atmosfera de estupor da técnica, do pertencimento ao círculo dotado do conhecimento necessário para tanto, com o manuseio dos pacotes, o ativar e exercer de poderes, mediante validação através de saberes, apresentados - e apresentáveis - como e enquanto honrosas construções de contenção do poder punitivo, da barbárie, da guerra-total etc.

Inequivocamente, o senso comum criminológico é sobremaneira poderoso, abrangente e influente, refletindo um conteúdo brutalmente incutido e irradiado, derivado de um bombardeamento não só midiático, mas predominantemente emanado em todas as esferas, espaços e núcleos de poder; afinal, até os juristas, penalistas, criminalistas (ou como designem-se), inserem-se nesse senso comum criminológico.

Aliás, a maioria dos cursos de Direito nem sequer ministra Criminologia na grade (e que grade!); e há muita crítica e conteúdo para além mesmo da Criminologia Crítica (se entendida em sua acepção mais restrita). Assim, como regra, não alcançam nem mesmo esse fragmento da crítica, que, embora limitado, revela-se enorme se comparado ao conteúdo disponibilizado, o pouco fornecido e oferecido, que forma e deforma, engessa e adestra, silencia e mata.

Professores de todos as regiões escrevem no quadro o famoso "Crime = Fato Típico, Ilícito, Culpável" do espectro analítico (com ressalvas e menção a outros pacotes e configurações organizacionais, às vezes nem isso). Ingressam numa lógica circular de legitimação, repleta de tautologias intermináveis. No exemplo dado, muitos se encantam, começam mesmo a enxergar a lógica e a reproduzi-la, julgando tratar-se de construções muito sofisticadas e interessantes, que conferem, inclusive, senso de autoridade e poder... julgam que disseram muito, e que tudo nutre enorme sentido, eis que desenvolvido por grandes gênios... quando, em verdade, apenas se disse que Crime = Crime...  o que, convenhamos... não é dizer muito, tampouco é genial.


Notas e Referências:

[01] ANITUA, Gabriel Ignacio. Fundamentos para la construcción de una teoría de la no pena. In: POSTAY, Maximiliano (compilador). El abolicionismo penal en América Latina. Imaginación no punitiva y militancia. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2012.

[02] BARATTA, Alesandro. Criminología Crítica y Crítica del Derecho Penal - introducción a la sociología jurídico-penal. Traducción de Álvaro Búnster. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011.

[03] BAKUNIN, Mikhail. Deus e o Estado. Trad. Plínio Augusto Coelho. Ano de publicação original: 1882. Ano de digitalização: 2002.

[04] HULSMAN, Louk. Temas e conceitos numa abordagem abolicionista da justiça criminal. In Revista Verve, São Paulo, v. 3, 2003, pp. 190-219.

[05] HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas. O sistema penal em questão. Ano de publicação original: 1982.Tradução de Maria Lúcia Karam. Niterói, LUAM, 1993.

[06] KARAM, Maria Lucia. La efectivización de los derechos fundamentales, la profundización de la democracia y la consecuente abolición del sistema penal. In: POSTAY, Maximiliano (compilador). El abolicionismo penal en América Latina. Imaginación no punitiva y militancia. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2012.

[07] KROPÓTKIN, Piotr. As Prisões. Trad. e diagramação: Barricada Libertaria. Campinas, 2012.

[08] WARAT, Luís Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001.

[09] WARAT, Luís Alberto. Os Problemas da Metodologia do Ensino – Material de Metodologia Jurídica – UBA: Buenos Aires, 1972.


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